O GLOBO, A INTERVENÇÃO, O ANÚNCIO E A ANÁLISE DO DISCURSO.
Quando eu era repórter do jornal Extra, no comecinho da década passada, precisei escrever uma materinha sobre o filme O Sexto Dia, estrelado por Arnold Schwarzenegger. Materinha mesmo: o espaço disponível era só uma pequena faixa horizontal no alto da página (o que os diagramadores chamam de “tripa”). O resto todo da página estava ocupada por um anúncio, cuja imagem nós, na redação, não conseguíamos visualizar. No dia seguinte, peguei o jornal para dar uma olhada e me espantei. Minha tripa estava lá no alto, e o anúncio que tomava quase todo o resto da página era… do lançamento do filme O Sexto Dia, que estreava naquela data. Certamente não foi coincidência. “A matéria era de cinema, o anúncio é de cinema. Não tinha espaço pra por uma foto. Foi uma boa solução”, disse meu editor, quando indagado sobre a diagramação.
Esse tipo de coisa acontece muito, quem trabalha ou trabalhou em redação sabe bem. Nem sempre os editores têm ingerência sobre qual anúncio entra em qual página. Às vezes nem se sabe o teor do anúncio antes de se definir quais matérias entram na página. Por outro lado, se o timing calhar, editores e diagramadores têm certa liberdade para combinar o conteúdo e os anúncios… com resultados imprevisíveis. Provavelmente, algo do tipo aconteceu durante o processo de fechamento (jargão: a definição de todos os elementos de uma página — o espaço para as matérias, para as fotos, títulos, anúncios etc.) da página 11 da edição do jornal O Globo de 22 de fevereiro de 2018.
No alto, temos um registro sobre mais um policial assassinado no Rio de Janeiro, o 18º caso apenas em 2018. No pé, uma matéria apresentando as críticas da ONG Anistia Internacional ao modo como o governo vem tratando a segurança pública no país. E no meio do sanduíche, ocupando mais da metade da página, um anúncio garantindo que o governo federal vai “tirar o Rio das mãos da violência” por meio da intervenção federal na segurança pública fluminense, prevista para durar até o dia 31 de dezembro de 2018.
Eu não entendo nada de segurança pública. Mas entendo um pouco de jornalismo. Esta página 11 d’OGlobo apresenta tantas, mas tantas camadas possíveis de interpretação, que deveria ser usada como exemplo pelos professores de análise de discurso e semiótica nas faculdades de comunicação social. Tuitei a imagem na manhã do dia 22/02, e as interpretações do povo não tardaram a chegar. Quem entende um pouco dos meandros do relacionamento entre comercial e redação foi por essa linha aqui:
Outros, atentos ao design, fizeram uma correlação entre a arte do anúncio e a identidade visual das Organizações Globo, que andam dando uma mãozinha no trabalho de convencimento da população a respeito da intervenção:
Alguns enxergaram a diagramação como um ato de protesto consciente por parte da equipe editorial:
Muita, muita gente cornetou o anúncio, sem entrar no mérito das reportagens que o emolduravam:
Algumas pessoas enxergaram a página como um sintoma da suposta ingerência do governo Temer sobre o jornalismo d’O Globo.
Houve quem questionasse a gramática do anúncio (eu, pessoalmente, não usaria aquele monte de vírgulas).
Alguns detectaram, acertadamente a meu ver, as intenções populistas e eleitoreiras de Temer ao decretar a intervenção:
Houve quem fizesse uma análise ampla, mas sucinta:
E teve gente que ficou só na trollagem mesmo.
E eu, o que achei da página? A resposta não cabe em 1̶4̶0̶ 280 caracteres. As Organizações Globo mantêm um certo grau de comprometimento e apoio, implícito e explícito, com o governo federal (assim como tiveram com todos os governos federais anteriores, em menor ou maior escala). Esse apoio é recompensado, naturalmente, com verbas publicitárias como as que patrocinaram o anúncio em questão. Mas jornalista é um bicho tinhoso. Não é possível admitir que a redação “inocentemente” plantou essas duas notícias acima e abaixo do reclame. Parece ter sido um recado para o próprio governo: há a realidade e há a publicidade. A realidade é o que se espreme nos espacinhos que a publicidade deixa de fora.
Para os leitores, o recado da redação foi outro: não acredite em tudo que se publica nos jornais. Mesmo se for no nosso jornal.