O LINKEDIN E O PROFISSIONALISMO TÓXICO
Trabalho é como sexo: quem mais fala a respeito é quem menos pratica.
Assim que o LinkedIn iniciou suas operações no Brasil, em 2011, eu corri pra fazer um perfil. (Bons tempos aqueles, em que ficávamos entusiasmados com a chegada de mais uma plataforma de rede social.) Parecia fazer sentido: um espaço virtual voltado ao networking e ao conteúdo do mundo corporativo em geral — cultura empresarial, governança, sustentabilidade, negócios, oportunidades. Mas confesso que nunca devotei muito tempo à rede. Um misto de preguiça (“Mais um lugar pra ter que postar coisas…”) e incompreensão (“Falar de trabalho em vez de ficar olhando memes no Twitter?”) me afastavam da plataforma.
Apenas em 2019 resolvi dedicar-me mais seriamente à parada. Muito por insistência de um amigo empreendedor (de verdade, sem aspas) que vivia a exaltar as possibilidades abertas pela rede e as boas chances de negócios surgidas nas interações online. Ainda meio desconfiado, passei a frequentar com mais regularidade, tentando criar posts, prestar atenção nos posts alheios e entabular conversas.
Não demorou para que eu percebesse que uns 99% dos usuários do LinkedIn podem ser divididos em duas categorias: os Troys e os Gils. Não se faça de besta: você sabe a quem me refiro.
E o Gil é Gil Gunderson, “fracassado e azarado empreendedor de Springfield”.
No LinkedIn, você é um Troy ou um Gil? Já deu pra sacar o raciocínio? Se não, segue o flow aí.
Como escrevi lá em cima, 99% dos perfis que vejo no LinkedIn se dividem em dois grupos: os Troys, gente tentando vender alguma coisa…
…e os Gils, gente tentando vender a si mesma.
Até aí, ok. Jogo jogado. É um espaço para fazer B I Z N E S S. Vender (e comprar) é o nome do negócio. Mas, antes de tudo, é uma rede social, e como toda rede social, oferece a seus usuários a chance de construir para si mesmos uma nova imagem pública… que nem sempre corresponde à realidade. No caso do LinkedIn, Troys e Gils são dois lados da mesma síndrome: o profissionalismo tóxico.
Cada rede social tem sua toxicidade. O Facebook nos expõe a egotrips e bate-bocas sem fim. O Twitter despeja em nossas cabeças o esgoto da humanidade. O Instagram é feito pra causar inveja. E o LinkedIn obriga seus usuários a manterem uma fachada “corporativa” que, cedo ou tarde, corrói as pessoas por dentro e inviabiliza a consolidação de conexões verdadeiras e construtivas.
Vejam bem. Longe de mim condenar quem deseja avançar na carreira. Ou quem tá na luta por um emprego e recorre a todos os meios ao alcance. Ou quem tem um projeto, um produto, um conteúdo pra vender. Cada um sabe do seu corre. E há muito conteúdo útil publicado lá, sem dúvida. A questão é o já referenciado profissionalismo tóxico. O LinkedIn tem a mesma falha de toda rede social, e a falha não é na parte da “rede", e sim na parte do “social”. O problema do Orkut, do MySpace, do Facebook, do Instagram, do Twitter e do LinkedIn não é a plataforma, e sim as pessoas.
Os Troys estão ali com a banquinha de camelô 24/7. Vendem de tudo: bens, serviços, livros, cursos, consultorias, palestras. E também conselhos, palestras, lições de moral, historinhas edificantes, recomendações de posturas. A ponta do iceberg são os ubíquos coaches, que prometem consertar a vida alheia em todos os aspectos. E seus primos (mais) gananciosos, os fiéis da seita daytrader, garantindo que qualquer um pode ser tornar milionário da noite pro dia.
Mas há muitos outros tipos de Troys à solta na rede. O gerente que posta sobre o sucesso do workshop do dia anterior é um Troy. O crossfiteiro que correlaciona esforço físico e atitude vencedora também. O picareta divulgando um esquema revolucionário de marketing multinível, idem. O mais tóxico dos Troys é o bully do empreendedorismo, com suas histórias de terror sobre jornadas de 20 horas diárias e chefes que acordam os subordinados aos gritos às 3h da manhã —mas tudo bem, pois é em nome do PROPÓSITO e da MISSÃO. O lance é tão caricatural que, bem, virou caricatura mesmo.
De forma semelhante, os Gils se apresentam em muitos disfarces. O pelego que elogia a empresa incondicionalmente; o puxa-saco que deixa clara sua admiração pelo chefe; o abnegado sem vida pessoal que comemora a chegada da segunda-feira, sempre pronto para mais um ~desafio~.
Entretanto, o tipo mais comum de Gil é o "profissional-entre-projetos", AKA desempregado. Com a economia rumo a um fundo do poço que nunca chega, os entre-projetos se multiplicam a milhão na rede. Um tipo particularmente patético é o que chamo de Pollyanna do auxílio emergencial. É o camarada que está na merda, chapéu na mão, mas não pode demonstrar seu desespero. Precisa mostrar que o corrente aperto é mais uma oportunidade para ele evidenciar sua (argh) resiliência.
Testemunhei o drama de um desses Pollyannas há pouco — um cara com quem trabalhei por um curto tempo no começo da década passada. Num longo post no LinkedIn, o camarada narrava sua trajetória nos últimos anos: demissões em série, que o obrigaram a depender de frilas cada vez mais incertos. Mas ele amarrava tudo com um desfecho bem auto-ajuda, no qual encarava as provações passadas como "lições” e se dizia pronto pra recomeçar… mais uma vez. E eu só pensei… caralho, tá o cara aí, obviamente numa pior, tentando transformar o desabafo público em um bônus para seu combalido perfil profissional.
Isso não é saudável. Travestir-se de Troy ou de Gil não é saudável.
Nossa presença online é um mosaico composto pelas personas que usamos em cada rede — juntas, elas constroem uma “marca pessoal", que promovemos com fotos, vídeos, tiradinhas & chistes, textões, links, likes, compartilhamentos. O desafio é lidar com os sentimentos ruins que as redes podem suscitar, sem que esses sentimentos quebrem a fachada pública que levamos tanto tempo para construir. Mas somos apenas humanos e mais dia, menos dia, a fachada trinca: um desabafo aqui, um bate-boca acolá, um ~cancelamento~ mais à frente.
O LinkedIn então configura-se mais tóxico que todas as outras redes, pois lá não temos o direito a desabafos e bate-bocas. A porção profissional da fachada deve ser a mais imaculada de todas. A pena para quem deixa uma rachadura à mostra lá é mais cruel do que em todas as outras plataformas. Facebook, Twitter et. al. nos permitem demonstrar ansiedade, raiva, tristeza, inveja. Sermos humanos, enfim. No LinkedIn, precisamos ressignificar a ansiedade, transformar a raiva em motivação, empoderar a tristeza e converter a inveja em metas quantitativas.
Tô fora disso.
(Os sabichões devem estar se perguntando qual é o perfil que EU encarno no LinkedIn. Não faço nem a linha Troy, nem a linha Gil, mas recorro de novo ao elenco d’Os Simpsons: estou mais para Frank Grimes, AKA “Grimey", o homem que "teve de dar duro por tudo que conquistou na vida… irritadiço, rabugento e que se incomodava com qualquer coisa”).