O “PRODUTO” DO STREAMING NÃO É A MÚSICA. É O OUVINTE

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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6 min readFeb 1, 2018
É batata: botou a palavra “top” no meio, vem merda aí.

No fim do ano passado, todo mundo pirou com o aplicativo 2017 Wrapped — uma retrospectiva personalizada que o Spotify montou para cada um de seus usuários e que sumarizava quantos artistas a pessoa ouviu no ano, quais músicas ela mais escutou e quanto tempo o ouvinte passou logado no serviço de streaming. Na primeira semana de dezembro, não se falava noutra coisa nas redes sociais, a galera a postar seus resultados, a comentar seus hit parades pessoais, a zoar as escolhas alheias etc. De modo a não me sentir um pária, entrei na brincadeirinha também, mesmo sabendo de antemão que meus resultados não seriam, de modo algum, representativos do conjunto de sons que escutei em 2017. Porque eu sabia, de antemão, que o Spotify não oferece esse álbum para streaming. Ou esse. Ou esse aqui. Enfim, discos que passaram a integrar o meu acervo e os quais eu ouvi não em meu celular ou meu laptop, mas no meu (uia) sistema de som estereofônico.

Acesso muito pouco o serviço, então não foi surpresa ver que escutei míseras 175 canções, enquanto alguns amigos exibiam placares com milhares, ou mesmo dezenas de milhares de faixas executadas no ano. O mais impressionante mesmo foi ver gente que tem, ou tinha, o hábito de comprar discos e manter coleções de CDs e/ou vinis (ou mesmo MP3s), completamente rendida ao streaming. Gente que deixou de adquirir álbuns físicos e passou a ouvir tudo online. Ou, mais exótico ainda, gente que continuou a comprar em formato físico, mas que — pela praticidade — não acessa mais a própria coleção e fica ligada o tempo todo no Spotify.

Nos últimos anos, engajamo-nos em infinitos debates sobre formatos de lançamentos musicais, modelos de negócio para o mercado fonográfico, qualidade sonora versus praticidade, vinil versus CD, streaming versus download, .flac versus .MP3, cassete versus… OK, cassete continua sendo indefensável. Mas, sem que nem tivéssemos tempo de refletir ou nos prepararmos para a nova realidade, todas essas discussões foram suplantadas por outra. As opções para o consumo de música passaram a ser apenas duas: online ou offline. A primeira opção implica no abandono de todos os formatos físicos (ou mesmo do hábito de baixar MP3) e escutar músicas exclusivamente via internet. A segunda reflete a opção de seguir fiel ao hábito de ter uma coleção pessoal, seja de vinis, CDs ou arquivos digitais. Claro que ainda deve ter gente na interseção entre as duas vertentes (usando o streaming E comprando/baixando discos). Mas, especialmente entre o público mais jovem, o streaming vem se transformando na forma dominante de acesso à música. (A mesma pesquisa aponta “outras” formas de consumo offline como acessadas apenas por 3% dos entrevistados.)

“Ora”, você pode se perguntar, “e qual é o problema?” Novos tempos, novas formas de escutar, certo? Nem tanto. Todas as outras plataformas sobre as quais essas novas formas de escutar se erguem NÃO estão interessadas de verdade na música. O negócio do Spotify não é música, é o próprio Spotify. E a forma como essas empresas exploram os artistas (o seu verdadeiro ganha-pão) faz com que a ganância das gravadoras pareça brincadeira de criança. Mais: as companhias de streaming querem não apenas controlar o que seus usuários ouvem, como ouvem e quando ouvem: também querem impedi-los de ouvir música de qualquer outro modo que não seja mediado por elas.

O streaming é uma ferramenta, um suporte tecnológico para a música. Nesse sentido, não é diferente do fonógrafo de manivela, do cilindro de cera, do disco 78 RPM, do LP, do single 45 RPM, do rádio AM e do rádio FM, do cassete, do CD. Cada uma dessas inovações foi, em algum momento, apresentada pela indústria como a “forma ideal” de consumir música, e seu desenvolvimento foi alavancado por motivações primariamente financeiras. Mas, mais do que com qualquer outra inovação anterior, a disrupção trazida pelo avanço do streaming botou o mercado de cabeça pra baixo com uma velocidade surpreendente. Assim como aconteceu com o smartphone, o Facebook, o Whatsapp e outras inovações, a adoção acelerada da nova plataformas pela indústria (e, consequentemente, pelos ouvintes) veio acompanhada de consequências imprevistas… e sinistras. Na lona depois de anos de queda de faturamento, as gravadoras se entregaram a essas plataformas, que agora detêm poder de vida e morte não apenas sobre elas mesmas, as gravadoras, mas também sobre os artistas e, finalmente, sobre o que ouvimos e o que deixamos de ouvir.

Exagero? Bem, não se levarmos em consideração os fatos pinçados neste texto, que mostra como o Spotify deslocou o foco do streaming para as playlists (em vez de focar em artistas e/ou álbuns ou mesmo em canções individuais). Essas playlists são a principal commodity dos serviços de streaming hoje, que usam as informações coletadas dos usuários para oferecer playlists temáticas e patrocinadas para marcas. O novo foco não apenas reduziu ainda mais a remuneração dos artistas pelas execuções; também impede que um artista tenha o direito de retirar suas músicas de uma playlist, mesmo que não queira ver seu nome associado à marca que patrocina a lista. Outras conclusões preocupantes podem ser extraídas desta outra reportagem, que mostra como a Amazon retirou dos usuários de seu serviço de streaming o direito de armazenar seus próprios arquivos de MP3 (mesmo comprados legalmente). Ou seja, quem quiser usar o serviço só pode ouvir o que eles oferecem, e nada mais. Quer mais problematização? Já existem produtores e artistas compondo e gravando músicas seguindo determinados formatos e sonoridades, de modo a maximizar o potencial de execução nos serviços de streaming. No YouTube, criou-se o jabá 2.0: artistas estão pagando para serem incluídos em playlists de sucesso, o meio mais rápido de garantir um grande número de execuções.

Tirado daqui: https://pitchfork.com/features/article/uncovering-how-streaming-is-changing-the-sound-of-pop/?mbid=social_twitter

Tudo isso converge para a desconfortável verdade revelada neste outro texto, possivelmente um ato falho cometido por um executivo da própria empresa: o produto do Spotify é o próprio Spotify. Não é a música que os usuários ouvem. Eu extrapolaria para a conclusão óbvia: o produto não é a música, mas os próprios usuários.

Não é difícil perceber que o Spotify passou a ocupar, em relação à música (ou à forma de consumir a música), o mesmo papel que o Facebook ocupa na interação social de… bem, de todo mundo com todo mundo. Assim como os veículos de mídia renderam-se ao Facebook na esperança de segurar o que ainda restou de público leitor, as gravadoras renderam-se aos serviços de streaming, na esperança de pegar alguns últimos trocados dos ouvintes. E assim como o Facebook mastigou e cuspiu os veículos de mídia, o Spotify, o Deezer, o Tidal, a Apple Music e todos os outros serviços captaram o único bem que as gravadoras ainda possuíam — a música — e puseram-na a seu serviço, empacotada em playlists formatadas algoritmicamente e vendidas para qualquer marca que pagar o preço pedido.

A analogia com o Facebook não para por aí. Assim como as pessoas obtêm na rede social um simulacro de relacionamentos verdadeiros, os serviços de streaming simulam o que antigamente era o hábito de ouvir rádio — seduzindo o ouvinte com a promessa de oferta ilimitada de música e, na prática, metendo-os em currais cuja trilha sonora são as ubíquas playlists. Assim como o Facebook finge apresentar às pessoas “aquilo que mais as interessa”, os algoritmos do streaming prometem entregar “sugestões” de audição que combinam com nosso perfil — e que na verdade são contaminadas por interesses comerciais. Assim como o Facebook se apresenta como um espaço de convivência e união (e na verdade só quer saber de nossos dados e nossa atenção), o streaming se apresenta como uma opção que “liberta” a música de suas limitações físicas (botar o CD na gaveta, baixar o MP3, virar o lado do disco) e na verdade quer nos aprisionar em caixinhas delimitadas pelo perfil que desenhamos de nós mesmos, ao passarmos horas e horas logados em suas plataformas.

Não há escapatória, então? Há. Ouça mais música offline. Compre o disco novo de seu artista favorito, em vez de ouvi-lo via streaming. Use a plataforma contra ela mesma: descubra artistas novos no Spotify e corra atrás do site oficial, do disco ou do MP3 dos caras. Descubra se eles têm Bandcamp, que em geral remunera os artistas de forma mais justa que o Spotify. Evite o quanto possível as playlists patrocinadas e pré-formatadas. E lembre-se sempre: a música não é o produto que eles vendem. VOCÊ é o produto que eles vendem.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)