PEDE PRA SAIR, RESENHA DE ‘Tropa de Elite’!

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
5 min readJan 25, 2019

(Publicado originalmente na revista Pipoca Moderna, novembro de 2007.)

Não deve ser por acaso que o filme brasileiro mais comentado, discutido e aguardado desde Cidade de Deus também verse sobre a violência no Rio de Janeiro. Tropa de elite reacende o debate indispensável sobre causas e conseqüências nessa história toda – e, é claro, também o debate sobre culpados e inocentes. Existem inocentes? A chapa é quente aqui na capital do “melhor e do pior do Brasil”. Expor esse calor no cinema já seria o suficiente para tornar o filme de José Padilha uma obra cercada de polêmica. Mesmo se não houvesse toda a grita sobre o lançamento antecipado do longa nas banquinhas dos camelôs amigos.

O difícil é conseguir analisar Tropa como um filme e não como um ensaio sociológico. Ainda mais para o público carioca. Padilha é narrador eficiente, sempre preocupado com a dimensão fílmica em primeiro lugar. As lições de História e Sociologia ficam fora da narrativa principal, assim como o viés partidário. (Alguém percebeu que o candidato ao Senado que mantém um comitê na favela é do PSDB?) Subentende-se que a realidade vista no filme vem das décadas (séculos?) de descaso/ausência do Estado e da propensão quase patológica que o carioca – de todas as classes sociais – tem de conviver numa boa com a ilegalidade e a marginalidade. Deu no que deu, deu na bandidagem que a PM combate e na bandidagem que se instalou também dentro da PM. Essa dicotomia é o que interessa a Padilha – e também a “terceira via” que o Bope representaria, uma elite que tenta navegar contra a ineficiência, a corrupção e o moral baixo. Ah, e se possível dar um pau nos traficantes, quando dá.

Padilha já tinha feito uma arrepiante crônica da violência carioca: Ônibus 174, documentário sobre o traumático sequestro do coletivo homônimo, em 2000. Em Tropa, o cineasta concentra-se na ação. Conta sua história por meio dos atos e palavras de seus personagens, sem impor didatismos ao espectador. As cenas de tiroteio nos morros são tensas e às vezes confusas, como devem ser as filmagens de um cinejornal cobrindo um conflito armado. Em sua estreia como diretor de ficção, o cineasta não se desvia do cânone do gênero policial. O roteiro é amarrado e repassa questões clássicas do gênero: tiras bons, tiras maus, corrupção, o perigo de se envolver demais com o trabalho, o estresse. O grande mérito do texto de Padilha, Bráulio Mantovani e Rodrigo Pimentel é apenas seu bom trabalho de observação. As ambiguidades e complexidades dos personagens nascem do dia-a-dia de cão a que um policial (bom ou mau) é submetido no Rio de Janeiro.

Por outro lado, há algumas situações forçadas, outras pouco plausíveis e terceiras que não passam de clichês. O PM (vivido por André Ramiro) que, por acaso, se envolve com uma turma de universotários maconheiros é um exemplo. Os dramas de consciência do capitão Nascimento (Wagner Moura) idem. Mas os achados suplantam os tropeços, como no esquema que Neto (Caio Junqueira, RIP) arma para desviar propinas e usar a verba arrecadada para… consertar viaturas quebradas.

Como matéria-prima para reflexão, Tropa é um paiol de pólvora com pavio curtinho. O mais provável é que ninguém fique feliz com o filme. A classe média que paga de libertária e ao mesmo tempo sustenta (e faz negócios com) o tráfico fica mal na fita. A PM nem se fala. Mesmo os soldados do Bope, supostos heróis da história, são na melhor das hipóteses um mal necessário. Eles torturam, atiram primeiro e perguntam depois, soam antipáticos até para os próprios companheiros “convencionais”, os PMs de farda azul (a do Bope é preta). Tudo em nome de uma ética resumida numa riminha, logo no começo do longa: “Bope: faca na caveira, nada na carteira”. É terrível pensar que a luta contra a marginalidade no Rio exija a existência de homens como aqueles. Mais terrível ainda é pensar que estamos mal com eles, e estaríamos pior ainda sem eles.

Muita gente andou chamando o filme de “fascista”. Pode haver uma, hum, “vontade de fascismo” a partir do momento em que se coloca os fardas-pretas (fala, Benito!) do Bope como remédio amargo, mas necessário, dentro da urgência de se por ordem na casa. Se há alguma pecha negativa a se colar em Tropa é o fato, inegável, de sua mensagem ser reacionária. Entretanto – eis aí o pulo do gato que confundiu alguns dos afoitos críticos do filme – o filme de Padilha não fotografa só a realidade carioca, mas também reflete com clareza o pensamento da imensa maioria dos brasileiros, independentemente de classe social. O desencanto e a falta de perspectiva levam o brasileiro a ser reacionário, no tocante ao combate ao crime. As pessoas acham MESMO que a marginalidade não é uma questão social. Acham MESMO que bandido bom é bandido morto. E acham MESMO que as organizações da sociedade civil, sejam elas do Estado ou do terceiro setor, são ineficazes e corruptas. Tropa espelha a indiferença e a avidez das elites, o rancor e o individualismo selvagem da classe média e a brutalidade a que os pobres se renderam (ou às vezes preferiram mesmo, voluntariamente). O filme é reacionário porque quem o vê também o é.

Independentemente de seus méritos ou da falta deles, Tropa de elite já fez história. É um filme sobre criminalidade que virou, ele mesmo, um caso de polícia – depois da pirataria, etc. É também uma boa resposta a quem ainda se pergunta pela “razão de ser” (sic!) do cinema brasileiro. Podem dizer, até com razão, que o filme não apresenta nada que não seja lugar-comum nos telejornais. Entretanto, (re)ver essas cenas na tela grande, organizadas em uma narrativa eficaz, dá outra ressonância a todo o contexto. Uma ressonância de que só o cinema é capaz. Mesmo se for (apenas) o cinema brasileiro.

--

--

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)