QUEM LÊ TANTA NOTÍCIA, quer dizer, QUEM CONSOME TANTO CONTEÚDO?

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
12 min readDec 29, 2021
Imagine Van Gogh na era das redes sociais, lamentando a escassez de coraçõezinhos em seus stories do Insta.

O Jay-Z, cara. Ele sim sabe usar o Instagram.

No dia 3 de novembro de 2021, o rapper (comercialmente) mais bem-sucedido de todos os tempos criou um perfil na rede social de fotos do Zuckerberg. Ele entrou, seguiu uma única pessoa — Beyoncé, oras — e publicou um único post — promovendo o filme Vingança & Castigo, do qual ele foi um dos produtores. Foi o suficiente para conquistar, em menos de 24 horas, mais de 1 milhão de seguidores.

No dia 4 de novembro de 2021, Jay-Z deletou sua conta do Instagram.

Alguns especularam que o astro só entrou no Insta por obrigação contratual. Nesta matéria intitulada “Jay-Z deleta o Instagram imediatamente no primeiro uso correto das redes sociais na história”, o site Gawker levantou a lebre: é possível que o contrato de HOVA com o Netflix determine que o rapper deveria promover Vingança & Castigo nas redes. Ele não tem perfil oficial no Twitter, muito menos no Facebook. A aparição relâmpago no iG deve ter sido suficiente para cobrir os termos do contrato.

Mas no mesmo post, o Gawker levantou outra lebre, esta num estado muito mais adiantado de decomposição.

“Muita gente diz o seguinte sobre as redes sociais: ‘Oh, eu queria dispensar as redes, mas elas são parte do meu trabalho’. Isso, claro, é mentira (…) Jay-Z desmascarou essa farsa com o que ele fez no Instagram. Aparentemente, ele só usou as redes para promover seu trabalho, e depois caiu fora. ‘Bem, ele pode fazer isso porque ele é o Jay-Z’, você deve estar pensando. (…) OK, então o que você faz durante as 10 horas diárias que gasta nas redes? ‘Eu preciso interagir com as outras pessoas, para que elas interajam comigo’, você responde. ‘É TUDO UMA COISA SÓ…’ você grita. ‘NÃO FUNCIONA SE EU NÃO INTERAGIR… EU PRECISO ESTAR LÁ’, você chora, mas é sangue que corre em seu rosto em vez de lágrimas, ‘EU TENHO QUE POSTAR SACADINHAS PARA CONGREGAR… MINHA COMUNIDADE… EU QUERIA NÃO PRECISAR FAZER ISSO, MAS…!’

Congratulações a Jay-Z. E nenhuma congratulação a você.”

Mas este não é um texto a respeito de redes sociais. Quer dizer, é, mas não é só isso. É um texto a respeito de ~conteúdo~, arte, carreira, expectativas, realização e frustração. E como tudo isso, hoje, parece passar obrigatoriamente pelas redes sociais. É também uma admissão e uma pergunta. Como o personagem hipotético do Gawker, eu também digo a mim mesmo que só frequento as redes sociais para divulgar o que eu faço. Aí vem a pergunta: estamos nas redes para divulgar o que fazemos, ou fazemos o que fazemos para estar nas redes?

Eu fui revelado como ~produtor de conteúdo~ aos seis anos, no muito distante ano de 1980. Então no primeiro ano do ensino fundamental, eu participei de um concurso de redação e tirei o primeiro lugar. Lembro vagamente do teor do texto: algo a ver com animais numa floresta, que precisaram ajudar uns aos outros em meio a um incêndio. Fui submetido à vergonha máxima de ler minha redaçãozinha ao microfone, diante de um ginásio cheio de pais & mães invejosos & desdenhosos e seus filhos que não davam a mínima para minha conquista.

Eis aí o meu problema como ~criador de conteúdo~: eu comecei no topo. Dali em diante foi só ladeira abaixo.

Fiz da escrita minha vida. Formei-me jornalista, porque queria escrever sobre música. Escrevi sobre música em muitos lugares, com oscilantes níveis de leitorado e de remuneração. Conheci muita gente que dizia apreciar meus escritos, mas devido à relativamente baixa relevância (comercial) dos veículos que me davam espaço, não ganhei dinheiro, não fiquei famoso nem me tornei uma referência no mercado. Pelejei muito, virei noites, amarguei atrasos de salário e calotes. (Admito: também me diverti muito, fiz amizade com gente maravilhosa, ganhei milhares de discos e vi centenas de shows de graça.) Em 2010, cansei. Ou talvez o jornalismo tenha cansado de mim. Cedi a um convite do mundo da comunicação corporativa e larguei o “jornalismo de verdade”. Depois do primeiro convite, vieram outros, e outros, e a ideia do “jornalismo de verdade” ficou na poeira.

Só que não. Desde o começo dos anos 2000 eu publico textos na internet, em diversas encarnações deste Telhado de Vidro e em outros espaços. Abandonei o (ou fui abandonado pelo) “jornalismo de verdade” em 2010, mas segui insistindo nas pautas que me interessavam, na cultura em geral e na música em particular. Com o tempo, passei a escrever também sobre política, sociedade, comportamento humano. Achando pouco, resolvi também, a partir de 2015, gravar e lançar música eletrônica sob o nome artístico Borealis. Virei, aham, escritor oficialmente, com a publicação de dois e-books.

E aí surge a necessidade de mostrar pro mundo todo essa produção. Pra que escrever, lançar livros, lançar álbuns, se ninguém vai ler nem ouvir? É preciso divulgar. E aí entram as redes sociais. Depois de anos à margem da atenção do grande público, eu poderia mostrar meus trabalhos para “todo mundo”, com a democratização do alcance proporcionado por Facebook/Twitter/Instagram/YouTube. Mas não bastava criar um perfil e postar links, eles disseram. É preciso ter uma estratégia digital, táticas de engajamento, um plano de construção de imagem nas redes. E tratei de desbravar essa trilha, com um sentimento de empolgação alternado com estranhamento.

Só que, nesse ínterim, eu vi o meu trabalho — meus textos, minha música — deixarem de ser considerados simplesmente textos & música. Meu trabalho passou ser considerado…

…~conteúdo~.

Noutro dia, assisti no YouTube a uma live (uma gravação de podcast) na qual o convidado de honra era um cara cujo trabalho eu admiro. À determinada altura, um dos hosts, dirigindo-se ao convidado, soltou uma frase que me espantou: “Pô, eu consumo seu conteúdo há X anos.” Notem: o rapaz não lê os textos, nem vê os vídeos, ou compra os livros, ou curte os posts do cara. Ele consome o conteúdo que o outro publica. Foi naquele momento que a ficha, que já vinha caindo há anos, finalmente bateu no chão à minha frente, com enorme estrépito.

Não há mais leitores, ouvintes ou espectadores. Só há consumidores de conteúdo.

Em 1980, quando eu fiz minha estreia como ~criador de conteúdo~, os ~criadores de conteúdo~ eram conhecidos como “artistas”. Mas nem todo ~criador de conteúdo~ chegava a ser reconhecido como artista. Na verdade, os artistas eram uma minoria bem minoritária. Só chegavam a virar artistas aqueles ~criadores de conteúdo~ que passavam pelo funil da mídia.

Passar pelo funil da mídia era difícil. Ser talentoso ajudava, claro. Mas o talento não garantia coisa alguma. Era preciso também ser bonito e/ou diferente e/ou bem relacionado e/ou sedutor e/ou sortudo, de preferência uma combinação disso tudo aí. A outra alternativa era ter dinheiro para produzir o trabalho por conta própria e divulga-lo por conta própria. Em 1980, era necessário muito dinheiro pra fazer isso. Produção cultural independente há 40 anos era uma selva repleta de perigos, cuja travessia era raramente recompensada (pelo menos em termos financeiros).

Aí a coisa veio mudando. Os computadores pessoais facilitaram a produção editorial, a gravação de discos, a edição de vídeos. A internet tornou mais fácil divulgar essa produção, conectar-se com gente interessada, comercializar os lançamentos. De uma hora pra outra, multiplicaram-se os espaços (virtuais) dispostos a aceitar os trabalhos dos ~criadores~, quer dizer, artistas, e multiplicaram-se as formas de atingir nichos de públicos interessados no que os artistas tinham a oferecer. Falava-se até numa tal cauda longa, com “liberdade de escolha infinita criando demanda ilimitada”, lembram?

De uma hora pra outra, lá pelo começo dos anos 2000, o funil da mídia passou a parecer menos importante. A digitalização facilitou, na ponta dos artistas, a produção; no meio do processo, facilitou a difusão e a divulgação; e na ponta do público, fragmentou e multiplicou o alcance. Parecia haver um balde disponível pra pegar qualquer coisa que pingasse do chuveiro da web. Whoo-hooo!

Mas essa percepção se mostraria enganosamente otimista durante a consolidação da próxima fase da web: a fase das redes sociais. No início, as redes pareciam ter chegado para engrossar o fluxo do chuveiro da internet e aumentar a quantidade de baldes disponíveis. Afinal, a obsolescência do broadcast parecia uma tendência irreversível, certo? Por que voltaríamos voluntariamente à era do funil, quando o esquema chuveiro + baldes era mais democrático pra todo mundo, artistas e audiência?

Com o passar do tempo, viu-se que a internet, originalmente um enorme terreno baldio onde cada pessoa criativa teria o direito de erguer seu barraco, transformou-se um condomínio de luxo reservado aos talentosos… e aos bonitos e/ou diferentes e/ou bem relacionados e/ou sedutores e/ou sortudos. (E para aqueles que podiam pagar o aluguel.) A lógica do broadcast, da massificação e do mínimo denominador comum — a lógica do funil, enfim — passou a ser reproduzida também pela web. E as redes sociais, a seu modo, contribuíram para essa transição. Em vez de tentar passar por um único funil, o da mídia tradicional, os artistas agora precisavam navegar por múltiplos funis, cada um com linguagem, demografia e formatos próprios.

Ficou mais complicado, né? Guenta aí que complicou ainda mais. Depois de se consolidarem nos corações e nas mentes da humanidade, as redes sociais perceberam que a atenção do público era uma moeda de troca muito, muito valiosa. E a atenção do público nas redes passou a ser trocada por muito, muito dinheiro. Começava a era dos posts impulsionados, i.e., pagos. Acabou a ~mamata~ de usar seu humilde perfilzinho para divulgar seu livro, seu disco, seu filme, seu blog de graça: as redes passaram a dar destaque apenas para quem coçasse o bolso. Os funis se estreitaram cada vez mais (mas não para quem coçava o bolso).

Quer mais uma complicaçãozinha? Não demorou muito para que as redes gerassem uma nova cepa de artistas consagrados pela mídia: os influencers. Os novos consagrados também atravessavam o funil por serem bonitos e/ou diferentes e/ou bem relacionados e/ou sedutores e/ou sortudos e/ou ricos. Mas havia uma diferença fundamental entre os influencers e o que se costumava chamar de artista, no século passado. Não era mais necessário ser talentoso para passar no funil. Aliás, não era mais necessário ser coisa alguma… apenas ser “autêntico”.

Não era mais necessário criar, no sentido tradicional de “criar uma obra”. Bastava contar uma piada. Fazer uma dancinha. Cantar qualquer coisa, mesmo desafinado. Ou nem cantar nada, bastava dublar. Botar um biquíni. Tirar um biquíni. Reclamar de qualquer coisa — do governo, da direita, da esquerda, das empresas, dos juízes, da rede Globo. Ou elogiar qualquer coisa. Qualquer pessoa, fazendo qualquer coisa, passou a ter a chance de se tornar famosa. Isso não é algo negativo per se. Mas adicionou outra barreira para os criativos da velha guarda. Como esse artigo do site Vox ressaltou bem, os influencers não são famosos por serem talentosos. Eles são famosos porque as pessoas gostam deles — e não do que eles fazem. É uma inversão de paradigma violenta para quem acreditava em bobagens como integridade artística, disciplina de criação, estudo, referências, amadurecimento progressivo.

Para completar, dentro da corrente economia da atenção nas redes, não há mais distinção alguma entre os tipos de produção sendo divulgados. Tudo hoje é apenas… ~conteúdo~. Este texto é conteúdo, um streaming de LOL é conteúdo, um reels de uma modelo na praia é conteúdo, uma newsletter do Substack é conteúdo, tudo isso competindo pelo mesmo espaço nas redes. Não fazemos mais música, criamos conteúdo para o Spotify; não escrevemos mais, criamos conteúdo para o Medium; não produzimos mais filmes ou videoclipes, criamos conteúdo para o YouTube.

E não é que o malandro estava certo? Hoje as pessoas se consagram por terem VIDAS ~geniais~, e não por construírem OBRAS geniais.

É muita coisa para um ex-jornalista em atividade com quase 48 anos nas costas processar. Juro pra vocês que tentei. Li manuais, conversei com especialistas, gastei uma grana até razoável tentando promover meu conteúdo nas redes. Os retornos foram invariavelmente decepcionantes. Me vi na ridícula situação de não apenas ter dois perfis no Facebook (um pessoal, outro para o Telhado de Vidro), mas também de engordar a já obesa conta bancária de Mark Zuckerberg — porque se o post não é pago, ele não existe, ninguém o vê.

Em 2021, desisti. Não de escrever (foi o ano em que mais publiquei aqui), e sim de tentar “promover” o blog. Quer dizer, continuei no Facebook e no Twitter, pelejando com meu modestíssimo alcance orgânico, mas deixei de pagar para aparecer. Como resultado, a audiência caiu quase à metade. No momento em que escrevo este post, os cliques estão em seu mais baixo nível histórico. Com o Borealis, então, os resultados são ainda mais melancólicos. Sei bem das dificuldades de lançar música independente, ainda mais música decididamente não comercial, mas nem mesmo nos nichos mais anti-mainstream parece haver espaço para meus álbuns.

Criadores de conteúdo são escravos das métricas. Elas me dão a noção exata da enorme irrelevância do meu conteúdo. Pior do que ver a redução nos cliques, é constatar que praticamente ninguém lê o que está escrito. As pessoas clicam, olham e vão embora. Com o Borealis, é possível ver exatamente quantas vezes as pessoas deram “stop” antes de sequer ouvirem 10% da faixa. Meu gráfico de faturamento na Amazon é como o eletroencefalograma de um paciente com morte cerebral. Flatline. Ao menos, meus dois livros e cinco álbuns saíram apenas em formato digital, evitando o encalhe e a destruição inútil de árvores. Não que amenize o desânimo.

Só culpo a mim mesmo pelo fracasso. Vivi por muito tempo uma ilusão meio esquizofrênica; a crença de que minha carreira atual como conteudista corporativo era um mero desvio de percurso, e que minha real vocação — escrever sobre música, cinema, livros, comportamento etc. — um dia seria retomada. Por isso, insisti tanto tempo nessa vida de publicar coisas na internet. Vai que aparece uma oportunidade, alguém importante lê, vai que alguma coisa acontece? Nesse ínterim, envelheci, vi pessoas mais jovens ascendendo nos escalões das redações, ganhando prêmios, fazendo trabalhos bacanas, lançando livros e filmando documentários. Eu fiquei por aqui mesmo. Não é que eu tenha perdido o bonde da história; eu nem cheguei a pisar na rua onde o coletivo passava.

É duro admitir, mas as pessoas não têm interesse no que escrevo. Se tivessem, eu não teria deixado as redações, pra começo de conversa. Fiz as pazes com a minha nova (nova nada, já tem mais de uma década) carreira, que é nem um pouco glamourosa, cool ou valorizada. Mas paga as contas. Já reclamando, digo que não posso reclamar. Há legiões de coleguinhas desempregados que gostariam de estar na minha posição.

Também estou velho demais pra tentar repaginar o conteúdo que publico. São coisas que eu gosto de fazer, e que (aparentemente só) eu gosto de ler. Não dá pra sacrificar isso perseguindo a última tendência de SEO ou seguindo conselhos de blogueiros profissionais picaretas. Não tenho condições de virar tiktoker, ou coach, ou youtuber. Escrevo o que escrevo e só sei escrever isso; não posso obrigar as pessoas a ler. Nunca quis ganhar dinheiro ou ficar famoso. Só queria que gente legal lesse e curtisse meus escritos. Por um tempo, achei que as redes sociais seriam o caminho pra isso, mas, claro, foi uma ilusão. As redes são para os influencers, e eu não sei como fazer as pessoas gostarem de mim — em vez de gostarem do que eu faço.

E aqui retornamos à questão que apresentei lá em cima. Estamos nas redes para divulgar o que fazemos, ou fazemos o que fazemos para estar nas redes? É uma pergunta-tostines, sem possibilidade de resposta satisfatória. Twitter, Facebook, Instagram et. al. sugam nosso tempo, massacram nossa saúde mental e eliminam nossa fé na humanidade. Entretanto, continuamos logando nelas para “trabalhar”: divulgar o conteúdo que produzimos. Não resistimos às redes, mesmo com toda a toxidade a céu aberto, então enganamos a nós mesmos fazendo algo de útil e usando-as para divulgação. Mas não se enganem. Ninguém está vendo o que você divulga. Tem ruído demais, barracos demais, algoritmos demais mostrando demais outras coisas que não deveriam interessar.

E continuamos interessados.

Enfim. Ainda há um disco do Borealis para ser lançado, e tenho planos de inaugurar um novo projeto musical bem diferente. Ainda tenho planos de lançar pelo menos dois livros (estes físicos, sujeitos a encalhe) assim que a pandemia assustar menos (só se vende livro independente em noites de autógrafos). Quanto a este blog, sinceramente ainda não sei do futuro dele. Talvez eu continue, talvez não. Mais provável que sim, não sei quando.

A gente se vê nas redes. Ou não. Afinal, vocês não vão ler este texto.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)