SE VOCÊ NÃO VAI MUDAR O MUNDO, AO MENOS NÃO ATRAPALHE.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
5 min readJan 27, 2017

Publicado originalmente em setembro de 2015. Achei pertinente republicar agora, tempos bicudos nos quais o presidente do país com o maior complexo industrial do mundo zomba do conceito de aquecimento global e que “pensadores liberais” igualam, na mesma frase, nazismo e ambientalismo.

Sou um homem cético. Extremamente cético, por vezes. Talvez isso se deva à exposição precoce a textos de Millôr Fernandes e a filmes de Woody Allen. Ou talvez ao fato de eu ter ouvido, aos 8 anos, a definição de meu pai para a finitude humana: “É isso aí, quando a gente morre acaba tudo, não tem mais nada depois”. Sei lá. Sei apenas que tenho muita dificuldade para acreditar de verdade em causas, instituições, propósitos, ideologias, religiões, discursos e, afinal, em pessoas também. Isso é bom em alguns aspectos (todo jornalista precisa ser um cara desconfiado) e ruim em outros (certamente prejudica minha sociabilidade, minha autoestima e meu otimismo). Não digo que estou certo ao me comportar assim; só digo que sou assim desde que me entendo por gente, é assim que vejo o mundo e, à esta altura do campeonato, não conseguirei me modificar.

Daí vem minha notória implicância com essas pessoas que dizem querer “mudar o mundo”. O conceito exige um nível de desprendimento que eu não consigo conceber. Ouvimos esse discurso todos os dias: na fala de líderes empresariais, políticos, ativistas, organizações não-governamentais. Reportagens, palestras motivacionais, livros, seminários, relatórios. Estamos cercados de gente disposta a mudar o mundo, a ensinar-nos a mudar o mundo, a ganhar dinheiro nos ensinando como eles vão mudar o mundo. E eu olho para isso tudo e digo: “Pfffff.” Eu ganho a vida há quase duas décadas tentando descobrir as razões verdadeiras escondidas atrás dos discursos alheios. Nos últimos cinco anos, desde que deixei o jornalismo TRVE, ROOTS (ou fui deixado por ele) e entrei para o ramo da comunicação corporativa, minha falta de fé amplificou-se ainda mais radicalmente. E a implicância também é pessoal, e também se baseia em uma série de noções preconcebidas que assumo aqui. Sempre desconfiarei de gente que abraça um desafio etéreo e inatingível (mudar o mundo, ora) porque não tem outros desafios concretos e mensuráveis (tipo pagar as próprias contas) a enfrentar. Em geral, são pessoas que AMAM O QUE FAZEM e AINDA SÃO PAGAS por isso.

Quer salvar o mundo mesmo? Primeiro passo: NÃO use essas fotinhos ridículas de arvorezinhas e mãos abraçando o globo terrestre.

Aí eu me vejo em meio ao Sustainable Brands 2015. Resumindo: trata-se do maior evento global em torno da relação entre empresas e a sustentabilidade, cuja perna brasileira foi organizada pela Report. Trabalhei ativamente na cobertura do evento (podem ler mais aqui) e fui exposto, em três dias, a literais dezenas de pessoas que só falavam em mudar o mundo. Desde o arquiteto que criou um jogo online para mobilizar pessoas em prol de causas nobres à ex-executiva da Coca-Cola que inventou um sistema de crowdfunding para, bem, financiar causas nobres. Da empresa de detergentes que montou uma horta no teto de sua fábrica ao geniozinho do mercado financeiro que hoje dá consultoria sobre “estratégias de resolução de problemas”. Da jovem que inventou um aplicativo para “ajudar as pessoas a concretizarem seus sonhos” à tailandesa que agrega conceitos de filosofia oriental ao marketing.

Meu sistema de alerta de bullshitting entra em colapso, superativo. São pessoas bonitas, bem nascidas, bem criadas, que assumiram esse compromisso de mudar o capitalismo, mudar a relação entre as empresas e a sociedade, mudar hábitos de consumo, mudar a lógica do uso dos recursos naturais. Tudo isso convenientemente embalado num discurso do bem, deboístico, mas que não esconde suas profundas raízes marqueteiras (afinal, vários desses mudadores-de-mundo vêm do marketing e do design). Como é que vocês, que nunca souberam o que é ter um problema real, se arrogam o direito de dizer ao resto do planeta como e o que fazer para salvar-se? Quem se preocupa com o aluguel no fim do mês não tem tempo pra pensar em sustentabilidade.

Mas duas pequenas epifanias me fizeram refletir. A primeira foi a apresentação de Jonathon Porritt, um dos fundadores do Forum for the Future. Sua fala destoou gritantemente em meio ao deboísmo pollyannico da grande maioria dos outros palestrantes. O cara entende desses papos de preservação, conservação e impactos sobre a natureza. E segundo ele, mesmo as empresas mais bem-intencionadas — aquelas que fazem o possível para mitigar seus impactos negativos — estão fodendo com o mundo. Chegamos a um ponto tal que apenas compensar e/ou mitigar não adianta mais: é preciso que TODO MUNDO mude seu modelo de negócios em função da preservação do planeta. As companhias que estão preocupadas apenas em anular o que fazem de ruim não estão ajudando em nada. É preciso não só anular o negativo, mas também criar o positivo. O tempo já acabou.

Pois bem, numa hora dessas quem poderá nos ajudar? O Chapolin Colorado? Esperamos que a classe dominante puxe o barco. Empresários, políticos, a mídia — a elite, enfim. Só que a elite não fez nada e nem vai fazer, pois seu job description é justamente manter o status quo. A cegueira em relação às lições do passado e às perspectivas futuras domina o pensamento: o que importa são os resultados do trimestre atual. Quando der a merda finalmente, aí a gente vê o que faz. Daí veio a segunda epifania, a qual me exigiu contrariar meu jeito cínico de ser. Essa molecada que falou, falou e falou em mudar o mundo, esses empreendedores sociais bonitos e bem nascidos — ELES é que são a elite. ELES é que tem tempo, dinheiro, disposição e otimismo para realmente fazer a diferença. Se ELES não puxarem o barco, ninguém mais vai puxar, seja por falta de interesse (o 1%), seja por falta de condições (os 99%). E esse barco precisa ser puxado.

Essa constatação causou uma rachadura (pequena ainda) no meu antes inquebrantável ceticismo. Sim, continuo achando que muito do que se fala por aí é papo furado ou puro marketing. Sim, continuo achando que de boas intenções o inferno está cheio e que tem muita gente que está nessa cruzada por egomania, vontade de aparecer ou falta do que fazer. Sim, continuo achando alguns discursos implausivelmente otimistas e outros, apenas incompreensíveis. Mas alguém precisa começar a fazer algo. E hoje, a única aposta é essa galera aí. Se você, como eu, é um cético, ao menos retire seu ceticismo do caminho e deixa os caras tentarem.

--

--

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)