STANLEY KUBRICK: FILMOGRAFIA COMENTADA

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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35 min readJun 24, 2020
Kubrick no set de filmagem de 2001

Da mesma maneira que o conteúdo literal de um sonho não é o tema profundo do sonho, o conteúdo literal de um filme não representa, necessariamente, aquilo a que você reage no filme” — Stanley Kubrick, em Conversas com Kubrick (Michel Ciment, Cosac & Naify, 2013)

Em novembro de 1966, a revista New Yorker publicou um extenso perfil de Stanley Kubrick, que, aos 38 anos, já era reconhecido como um dos mais originais nomes do cinema americano. O autor, Jeremy Bernstein, jogou xadrez com Kubrick, conheceu seu apartamento no Upper East Side e visitou o set de 2001. São 66 mil caracteres que valem a pena. A riqueza de detalhes e os insights sobre o processo criativo do diretor são preciosos. Mas o que mais me chamou a atenção foi um trecho no qual se debate o interesse pelo livro que inspirou o roteiro de Dr. Fantástico. “O filme marcou uma nova fase para Kubrick (…e) logo se transformou em uma tentativa de usar um conceito puramente intelectual como base de um filme. No caso, o conceito intelectual era o inevitável paradoxo diante da ideia de levar qualquer uma das estratégias nucleares a seus limites extremos.”

Aí jaz o diferencial de Kubrick (1928–1999) em relação a seus contemporâneos hollywoodianos, e também dentro da história do cinema. De acordo com a concepção original do termo, um “autor” é aquele diretor que emprega os diversos elementos da linguagem e da técnica cinematográficas para refletir suas ideias e sentimentos — sua visão de mundo, enfim — sobre a narrativa exposta na tela. Nenhum diretor americano foi tão longe nesse sentido. Em cada um de seus filmes, a montagem, as interpretações, a encenação, a fotografia, tudo se submete a uma ideia central: uma reflexão pessoal do cineasta sobre um tema que transcende a história a ser narrada.

É um traço inflexível. SK nunca teve interesse em fazer filmes que só contassem uma história ou descrevessem o desenvolvimento de um personagem. Seus filmes podem todos ser vistos como ensaios filosóficos a respeito de um (ou mais de um) aspecto vital da existência humana: a guerra (e a violência em geral), o sexo, o destino, o crime, a ganância, a eterna dúvida sobre o porvir. Ao propor uma abordagem conceitual estrita em cada um de seus longas (ainda que de forma intuitiva, no começo da carreira) Kubrick criou uma filmografia imperfeita, mas nunca errática; cerebral, mas sempre impactante; complexa, mas (quase) sempre acessível. De modo curioso, à medida que SK depurava este estilo rigoroso, seus filmes dividiam a opinião dos críticos ao serem lançados… apenas para, anos depois, serem reavaliados e reconhecidos como obras-primas, de forma unânime.

Desde seu primeiro longa, o cineasta demonstrou a habilidade de entender e usar os tropos dos gêneros cinematográficos ao mesmo tempo em que os reinterpretava/negava. Quantas vezes você já não leu a frase “Com [INSIRA O TÍTULO], Kubrick fez o filme de [INSIRA O GÊNERO] para acabar com todos os filmes de [INSIRA O GÊNERO]”. Para o diretor, os gêneros eram ferramentas, como os efeitos especiais ou uma nova câmera. E deveriam ser usados de acordo, sem que significassem limitações.

Em relação aos aspectos técnicos, Kubrick aproveitou-se da crescente independência da qual os criadores passaram a desfrutar a partir dos anos 1940 (quando surgiram os diretores-roteiristas-produtores da era de ouro de Hollywood) e esticou a corda ao máximo. Trabalhando fora dos domínios dos grandes estúdios, tomou para si a responsabilidade por todas as fases da produção, num approach tão metódico quanto fanaticamente perfeccionista. Com isso, criou uma assinatura visual única, reafirmada com a repetição de elementos cênicos recorrentes e com uma disposição incansável para incorporar inovações técnicas.

Ver e rever (quase) todos os longas de SK sempre foi um hábito. Já assisti a Glória Feita de Sangue e a O Iluminado ao menos uma dezena de vezes cada um; outros, como Spartacus e De Olhos Bem Fechados, eu só vira uma vez até 2020. Um (Fear and Desire) permanecia inédito para mim. O isolamento social me deu a chance de embarcar numa proposta que vinha adiando há tempos: (re)assistir um a um, na ordem cronológica (curtas-metragens inclusos) e, ato contínuo, sentar ao computador para batucar alguns pensamentos. A leitura de Conversas com Kubrick me ajudou a concatenar o raciocínio e a interpretar a intenção do diretor por trás de certas escolhas visuais e narrativas.

(…Alguns filmes) permitem falar do que há em (seu) entorno, e não do filme propriamente dito. Com Dr. Fantástico, podíamos falar sobre a guerra nuclear, com 2001 sobre inteligência extraterrestre. Laranja Mecânica, das estruturas sociais por vir ou da violência.” — Stanley Kubrick, em Conversas com Kubrick (Michel Ciment, Cosac & Naify, 2013)

DAY OF THE FIGHT, 1951 — O primeiro filme de Stanley Kubrick é um curta documental estrelado pelo boxeador Walter Cartier. Financiado pelo próprio diretor, que também escreveu o roteiro e operou a câmera, apresenta uma narrativa banal que ganha em tensão ao ser filmada como um noir, com direito a narração em off e uma trilha sonora carregada. O baixíssimo orçamento é compensado pela liberdade na linguagem, que inclui uma fotografia ágil e planos inesperados, em especial na filmagem da luta. A impossibilidade de usar som direto, outra limitação financeira, permite que Kubrick dispense quase toda a caracterização dos protagonistas— como ele faria com tantos outros personagens no futuro.

FLYING PADRE, 1951 — Assim como Day of the Fight, o segundo curta de Kubrick, rodado no mesmo ano, é um exercício técnico e narrativo disfarçado de cinejornalismo. A história é um tanto mais incomum que a do primeiro filme: o dia a dia de um padre-aviador que usa um monomotor para visitar párocos no Novo México. Mesmo que o diretor tenha rotulado o filme de “tolo” anos depois, havia uma identificação pessoal óbvia com o tema; Kubrick tinha um brevê de piloto amador e sempre se interessou por máquinas e tecnologia em geral. Mais uma vez operando a câmera, ele teve a chance de experimentar com planos aéreos e expressivos closes. E as filmagens no cockpit devem ter contribuído para a pré-produção de Dr. Fantástico. Mas no breve momento em que precisa encenar uma cena dramatizada (a conversa do padre com as duas crianças), a hesitação é patente.

FEAR AND DESIRE, 1953 — A fotografia P&B, a narração introdutória (“Essa floresta e tudo o que acontece nela estão fora da história...”), a trilha sonora dissonante e uma atmosfera não 100% comprometida com o naturalismo dão ao primeiro longa de Kubrick um certo ar de Além da Imaginação. Entretanto, é ela (a imaginação do diretor) o que dá substância à produção, que na prática é (ou seria) apenas um filme B de baixo orçamento como tantos outros da época.

É o primeiro exercício no gênero ao qual o diretor mais retornaria. Dois exércitos sem bandeira, quatro militares perdidos no mato e uma escolha difícil: tentar retornar à base em uma jangada patética, ou aproveitar a inesperada chance de eliminar um general inimigo? A raiz da sua filosofia antimilitarista está aqui, reduzida a um essencial quase abstrato. O medo se manifesta nos solilóquios internos de cada soldado, que não escondem sua incompreensão diante do aparente vazio da guerra sem nome. Já o desejo aparece em carne e osso, na forma de uma jovem camponesa que cruza o caminho dos soldados… Num insight derivado do orçamento limitado, no clímax da história o diretor coloca uma única dupla de atores para representar papeis de heróis (?) e vilões (!), como se dissesse: não importa o uniforme, somos todos iguais.

Encenação e fotografia revelam originalidade e coragem: a cena do combate na cabana no meio da floresta ainda hoje é impactante. O chiaroscuro pode até remeter à estética noir, mas associado à montagem (por vezes abrupta), aproxima o filme mais do cinema europeu contemporâneo do que de Hollywood. Ainda assim, (quase) não há desperdício de tempo na concisa narrativa. Décadas mais tarde, o autor renegaria a obra, rotulando o filme de “amadorístico”, “chato” e “pretensioso”. Para um longa de estreia feito com uma equipe de apenas 15 pessoas, revela um cineasta que, aos 23 anos, já era seguro de si.

THE SEAFARERS, 1953 — Não é nada, não é nada, mas este terceiro e último curta documental permitiu a SK aperfeiçoar um de seus planos-assinatura: o travelling horizontal à guisa de establishing shot. Também foi a primeira vez que o diretor filmou em cores; apenas em Spartacus, rodado seis anos depois, ele voltaria ao Technicolor. E… é isso. Produzido de encomenda para a Seafarers International Union (um sindicato de trabalhadores navais), o filme de 28 minutos é, por motivos evidentes, mais caretão e institucional que os dois curtas anteriores. Depois de ser exibido em eventos da SIU, sumiu de circulação e só reapareceu em 1973, quando Stanley Kubrick já tinha virado STANLEY KUBRICK. Ao menos, serviu para o jovem diretor aprimorar suas habilidades técnicas — e parte do pagamento recebido seria investida em seu segundo longa autoral.

A MORTE PASSOU POR PERTO (Killer’s Kiss), 1955 Vi este filme pela primeira vez há muitos anos e duas coisas me chamaram a atenção: o apuro da fotografia (evidente nessa sequência filmada em prédios reais, em Nova York) e a conclusão da trama. O próprio Kubrick assina a montagem e a direção de fotografia, e por esta merece o elogio. Já o desfecho — o único final 100% feliz em toda esta filmografia — foi imposto pelo estúdio, e parece forçado e deslocado. Assim como Fear and Desire, o segundo longa de SK é um filme de gênero (noir criminal) realizado com baixo orçamento. As convenções do estilo se fazem mais presentes, amarrando a “verdadeira voz” do cineasta. No entanto, a qualidade técnica e o punch (literal!) da direção põem o longa alguns furos acima da massa de filmes noir baratos feitos naquela a época.

Os personagens são arquetípicos. Há o boxeador fracassado; há a loura que ele ama, que pode ser uma femme fatale interesseira ou apenas uma garota desesperada; há o gangster que também ama a loura e que não hesita em recorrer à violência para mantê-la a seu lado. E há também o elemento do imponderável, ingrediente indispensável ao gênero. A história, concluída de forma abrupta, não é o que mais interessa. (Exemplo: o fato de o protagonista ser um boxeador não importa à trama; isso não lhe dá vantagem alguma na hora de enfrentar os inimigos. Poderia ser um motorista de caminhão, um jornaleiro ou um músico.) O importante é como Kubrick encaixa a trama minimal e os personagens em sua visão de mundo e em sua concepção de cinema.

Em sua apresentação visual, o longa tem momentos que impressionam. Filmado nas ruas de Nova York, exala um èlan documental que contrasta com o tom onírico dos flashbacks e com a estilização das passagens violentas (em especial as cenas no ringue de boxe e a sequência do assassinato do empresário do boxeador). As sequências de luta são mais brutais do que o normal para aquela fase do cinema americano; a cena de amor entre a loura e o gangster também é um tanto ousada.

Nesta cena de A Morte Passou por Perto, vemos o primeiro exemplo de composição simétrica com um ponto central de perspectiva, um tipo de plano que Kubrick usaria em todos os seus filmes posteriores.

Kubrick observa a trama com distanciamento, superioridade. (Literalmente: na supracitada sequência nos telhados, a câmera muito distante coloca o diretor na posição de uma divindade, observando os joguetes dos minúsculos humanos lá embaixo.) Não há concessões sentimentaloides que busquem elevar a empatia do público pelos personagens, e eis aí outra característica que se tornaria uma marca registrada. Enfim, um “longuinha” (1h07) que serviu de rascunho para um exercício muito mais assertivo dentro do mesmo gênero…

O GRANDE GOLPE (The Killing), 1956 —A era de ouro do film noir já havia, na prática, chegado ao fim quando Kubrick realizou esta pequena obra-prima. (Ainda haveria A Marca da Maldade, mas essa é uma história para outro post.) O universo do noir é cínico, violento e repleto de tensão sexual, características que, alternadas e/ou combinadas, pautam toda a obra do diretor. Evoluindo a partir de A Morte Passou por Perto, ele manobra o estilo para encaixar sua originalidade visual e narrativa. Ao mesmo tempo, usa a trama e os personagens como matéria-prima para tecer comentários filosóficos. É um filme criminal — mas também é um filme sobre vida, morte, lealdade, traição, sexo e, enfim, sobre a irrelevância do esforço humano diante do “grande esquema das coisas”, uma ideia que o cineasta perseguiria para sempre.

É também o primeiro filme do cineasta com um elenco decente. “Casting é roteiro” (como me disse certa vez Rogério Durst), e vice-versa. A escolha de Sterling Hayden (seis anos depois de viver o trágico anti-herói de O Segredo das Joias) como protagonista é emblemática, assim como as de Elisha Cook Jr., Ted DeCorsia e Timothy Carey, todos veteranos de filmes de crime. Suas presenças anunciam ao espectador que a história vai obedecer aos preceitos do gênero e permitem, enfim, que os personagens ganhem uma humanidade ausente dos filmes anteriores (por conta das limitações dos atores). Os diálogos mordazes, escritos por Jim Thompson, também ajudam.

Filme noir que se preze tem que ter uma história nebulosa, de modo que nem os personagens entendam direito o que está se passando. Em O Grande Golpe, a narrativa é convencional até o momento do epônimo assalto, quando a tensão é elevada por meio de flashbacks, flashforwards e até flashsideways (!) que recontam cenas cruciais por ângulos diversos. (Foi uma influência confessa na construção de Cães de Aluguel.) A fotografia de Lucien Ballard é de almanaque. Ao optar por usar um único foco de luz nas cenas interiores, amplifica a dramaticidade de cenas já naturalmente carregadas. O uso recorrente de travellings prende os olhos do público na ação, e mais uma vez as cenas de violência surpreendem pela brutalidade.

Ou seja: é a primeira demonstração do potencial que Kubrick tinha de revitalizar um gênero por meio de seus toques autorais — mas ainda sem a confiança e a experiência para subvertê-lo de verdade. (De pessoal à vera no roteiro, há a inclusão de uma cena passada num clube de xadrez.) A elaboração “ensaística” dos filmes posteriores ainda era embrionária, mais sutil até do que nos dois longas anteriores. É possível assistir a O Grande Golpe e ver apenas um filme criminal muito bem executado e imaginar: “É, esse jovem realizador pode dar para a coisa…”

GLÓRIA FEITA DE SANGUE (Paths of Glory), 1957 — Este não é o “melhor” filme desta lista. No entanto, é difícil apontar outro filme de Kubrick com menos defeitos que seu quarto longa — um triunfo de requinte técnico, contenção narrativa e agudeza filosófica. Revendo-o para escrever este texto, mais uma vez me marcaram o cuidado na construção dos planos e o modo como o diretor cria e manipula a tensão. E, acima de tudo, como consegue carregar tanto significado em meros 88 minutos de projeção.

O filme parte do foco microscópico em um drama menor (o que é a morte de três soldados diante do massacre de milhares de outros?) que se abre para revelar a verdadeira intenção do autor: a denúncia da insanidade da guerra, da mesquinhez de seus senhores… e da inutilidade de conceitos como coragem, honra e patriotismo, na hora que a coisa fica preta de verdade. Não é o primeiro filme de guerra antiguerra (mesmo Kubrick já havia feito um), mas é o mais pungente de todos.

Kubrick costura uma sequência memorável atrás da outra. A apresentação dos personagens é direta e eficaz; sem muitos rodeios, apreendemos de cara a empáfia e a insensibilidade dos generais, o medo dos soldados e a integridade e a ousadia do coronel Dax (Kirk Douglas). As cenas no campo de batalha permanecem impressionantes, cada qual a seu modo: há o insuportável suspense da patrulha noturna e a brutalidade gráfica do ataque à fortaleza inimiga. (Um detalhe que só percebi nesta revisão recente: nenhum soldado alemão chega a aparecer na tela, o que apenas sublinha a sensação de futilidade da luta contra um inimigo invisível e insuperável. O mesmo recurso seria empregado e depois subvertido em Nascido para Matar.)

Para as cenas filmadas no QG francês, Kubrick alterna-se entre composições que remetem a um balé (o senta-e-levanta dos generais Mireau e Brouilard, enquanto decidem casualmente o destino de seus soldados) e outras desenhadas com simetria impecável (como nos planos do julgamento). O clímax da narrativa — o fuzilamento — é outro paroxismo de precisão na marcação dos atores, no movimento de câmera e no uso do som, com os tambores marciais marcando a agonia da caminhada final.

É tentador identificar Glória Feita de Sangue como um caleidoscópio da carreira do diretor. O aspecto antibelicista de Fear and Desire, Nascido Para Matar e Dr. Fantástico está aqui; a fotografia expressionista evoca a de O Grande Golpe; as cenas rodadas no quartel-general francês lembram a suntuosidade dos castelos de Barry Lyndon; os travellings pelas trincheiras são um ensaio para as proezas de steadicam de O Iluminado. E há, claro, Spartacus em pessoa. Falta um outro grande elemento — o sexo — que, se não surge de forma explícita, é sugerido nos olhares famintos lançados pelos soldados à jovem alemã na sequência final do filme.

Há uma diferença importante, porém: em nenhum dos outros filmes citados o diretor demonstra tanta empatia por seus protagonistas como em Glória Feita de Sangue. Parece interessado de verdade no caráter dos soldados condenados e na retidão inflexível de Dax, bem como na condenação enfática da insensibilidade dos generais. Nunca se poderia classificar o filme como otimista, mas o toque doce-amargo da sequência final traz afinal um Kubrick que quase chega a demonstrar uma certa fé na humanidade. Quase.

SPARTACUS, 1960 — O mais hollywoodiano filme desta lista é um ponto fora da curva na obra de SK. Por isso mesmo, representa uma virada importante em sua carreira: é seu último longa a sofrer interferências externas (do estúdio e de Kirk Douglas, astro e produtor), e também o último no qual ele não teve controle absoluto sobre cada aspecto da produção. Acostumado a filmes de menor orçamento e pretensões comerciais modestas, Kubrick aproveitou a oportunidade para ampliar seu repertório técnico — e também para assegurar-se de que nunca mais se submeteria ao crivo alheio, seja de estúdios, seja por parte do elenco.

Claro que é o menos pessoal dos seus filmes. A escala da produção e as demandas comerciais o impediram de imprimir sua marca visual e de estender as elucubrações temáticas dos outros longas. Ainda assim, há pontos de contato. A guerra ocupa parte importante da história, e Kubrick deve ter se divertido com a oportunidade de encenar as monumentais sequências de batalha. A contenda decisiva entre os rebelados e as forças romanas, filmada em Technirama Super 70, é um deleite ainda hoje, com sua movimentação de coreografia impecável. (Boa parte da sanguinolência imaginada por Kubrick teve de ser cortada da versão exibida em 1960, por causa dos comentários negativos dos espectadores nas exibições-teste). A tensão sexual também está lá, mais evidente na cena que indica, de forma muito ousada, a bissexualidade do vilão Crassus. Assim como as sequências mais violentas, o trecho foi cortado na época do lançamento e incluído apenas na restauração distribuída em 1991.

Acima de tudo, trata-se de um filme político. Na verdade, um filme sobre como guerra e política se interpolam. Na vida real, o subtexto de protesto contra o macarthismo é bem conhecido. As entrelinhas devem ser interpretadas no contexto histórico da produção — capitaneada por um ator-produtor conhecido por sua postura “liberal” (progressista) — em uma época na qual Hollywood ainda se recuperava do trauma da lista negra, e os EUA como um todo já sentiam os abalos provocados pelos movimentos pró-direitos civis.

Há três visões representadas. Temos o “progressismo” dos escravos rebelados, que lutam por igualdade e liberdade. O “reacionarismo” é representado por Crassus, que usa a força não apenas para esmagar a revolta, mas também para transformar Roma em uma ditadura militar, com o familiar discurso da “restauração da ordem”. E há o “isentismo” personificado pelo senador Gracchus, que aposta na mediação e na democracia (mas que não se furta ao pragmatismo e à fisiologia quando lhe convêm). Essas ramificações — política que leva à guerra e vice-versa, generais disputando espaço com líderes eleitos — seriam exploradas mais tarde em Dr. Fantástico.

LOLITA, 1962 — “Como puderam fazer de Lolita um filme?”, perguntava, de forma provocadora, o trailer do sexto longa de Stanley Kubrick. Quase 60 anos depois, eu ainda não sei como responder. Em 2020, a obra de Vladimir Nabokov — um dos maiores romances do século XX — segue a suscitar discussões e polêmicas. Imagine no começo da década de 1960, apenas alguns anos depois da edição original do livro ter sido considerada literalmente pornográfica. Depois da megalomania de Spartacus, Kubrick viu no texto de Nabokov sua chance de fazer seu trabalho mais intimista. É o mais perto que o cineasta chegou de narrar uma história de amor. Tratando-se de SK, só poderia ser um amor doentio, pervertido e fadado à tragédia. Quem mais poderia fazer de Lolita um filme?

Numa revisão anterior, percebi que Kubrick rearrumou a história de Nabokov (com consentimento do próprio, que assina o roteiro) para conta-la como se fosse um film noir. Os elementos estão lá: um anti-herói atormentado e cheio de defeitos; um assassinato cujos motivos serão deslindados no decorrer da narrativa; uma perseguição; e várias traições. E, claro, uma femme fatale, ainda que involuntária. Muito do humor (intransponível) do texto original se perdeu, mas sobrou o suficiente para render várias gargalhadas, em especial na torrente de metáforas (visuais e textuais), insinuações e duplos sentidos usada para driblar a censura. Um pano de fundo essencial do livro — a observação da tensão sexual e do falso moralismo dos subúrbios norte-americanos do pós-II Guerra — também permaneceu.

As interpretações são preciosas. Sem grandiosas cenas de batalha ou complicadas sequências de luta, Kubrick se concentra como nunca nos atores. Na falta dos monólogos do livro, H. Humbert perde em complexidade, e também em monstruosidade. Sobra um homem inseguro, patético e escravizado por sua obsessão, retratado com aplomb melodramático por James Mason. Shelley Winters interpreta, mais uma vez, uma mulher levada a um fim trágico pelas mãos do homem amado (ainda que, ao menos aqui, de modo indireto); sua frustração sexual ganha contornos exagerados e hilários. Peter Sellers se diverte incorporando uma variedade de sotaques americanos. Seu Clare Quilty é tão engraçado quanto repulsivo. Sue Lyon aplica caras e bocas de modo exato para dar vida a uma Lolita ora sedutora, ora pirracenta. Não importa que seja obviamente mais velha que a personagem do livro; ela conjura com exatidão a dualidade da ninfeta, transformada em mulher sem nunca deixar de ser uma criança.

Kubrick nunca mais seria tão introspectivo e “doméstico” quanto em Lolita.
E só voltaria a abordar o sexo de forma tão profunda em De Olhos Bem Fechados. Não há maiores ponderações filosóficas ou metafísicas no filme, apenas o interesse genuíno no incomum drama dos personagens e na possibilidade, sempre atraente para o diretor, de questionar padrões morais/sexuais/comportamentais. Era o prelúdio para a fase mais ambiciosa e complexa de sua obra.

DR. FANTÁSTICO (Dr. Strangelove or How I Learnt not to Stop Worrying and Love the Bomb), 1964 — Roleta do unfollow: este é o meu filme favorito de Stanley Kubrick. Foi o primeiro dele a que assisti: era figurinha fácil nas sessões da madrugada na Globo, na década de 1980. Naquela época (eu tinha uns 12, 13), para mim era um “filme do Peter Sellers”, de quem eu já era fã (Um Convidado Bem Trapalhão e O Rato que Ruge rolavam direto na Sessão da Tarde). Qual não foi minha surpresa diante daquela suposta comédia, que desafiava o espectador a sorrir amarelo diante de um engano que deflagraria o fim da civilização.

Menos influente e cultuado que 2001, Laranja Mecânica ou mesmo O Iluminado, mais irregular que Glória Feita de Sangue, ainda assim é o longa que melhor resume a concepção do diretor a respeito da “aventura humana na Terra”: uma piada de humor negro destituída de propósito. Como se sabe (ou não), a ideia inicial era fazer um thriller sério sobre a ameaça de uma guerra nuclear entre EUA e URSS. Mas o conceito da “destruição mútua garantida” (acrônimo em inglês: MAD) ganhava contornos cada vez mais hilários à medida que o diretor burilava o projeto.

“O que poderia ser mais absurdo do que duas superpotências dispostas a aniquilar a vida humana por acidente, atiçadas por diferenças políticas que, daqui a 100 anos, parecerão irrelevantes?”, perguntou Kubrick em 1969. Para um autor sempre inclinado a expor a insanidade contida nos conflitos entre nações, Dr. Fantástico traz o discurso antimilitarista levado a seu extremo lógico: a guerra final, na qual só haverá derrotados. Em forma de comédia. Menos de dois anos depois da crise dos mísseis cubanos. Para quem achava que ele já tinha ido longe demais com Lolita

A graça de Dr. Fantástico deriva não apenas de sua premissa absurda. Também se deve à opção de encenar tudo de forma absolutamente séria. O nerd enxadrista que habitava o âmago do cineasta deve ter se divertido à pampa escrevendo e filmando as ultradetalhadas cenas dentro do B-52 e a sequência do combate, que ganhou ar documental, com câmera na mão e tudo. A maior concessão à farsa é o personagem-título, baseado no nazista fujão Werhner von Braun e interpretado com gosto por Peter Sellers. O britânico faz outros dois personagens (o presidente Muffley e o major Mandrake) e faria um quarto, se não tivesse se contundido. Para obter as hilárias caretas exibidas por George C. Scott (que não concordava com a tonalidade satírica do filme), o diretor precisou enganar o ator: filmou takes com interpretações exageradas e prometeu que não iria usa-los na montagem final… e usou. Slim Pickens, o caricato major Kong, também não foi avisado de que o filme se tratava de uma comédia. Aquilo que se vê na tela, para ele, era a maneira correta de atuar em um thriller sobre o fim do mundo.

Como visto em Glória Feita de Sangue e em Spartacus, Kubrick concordava com von Clausewitz: a guerra é a continuação da política por outros meios. Já o rebelado Ripper chega a citar Clemenceau (“A guerra é importante demais para ser decidida por generais”)… apenas para discordar da famosa frase. Em Dr. Fantástico, entretanto, o conflito bélico tem tanto a ver com o sexo quanto com a política. Alusões abundam (ops) no roteiro, nos nomes dos personagens, no discurso dos generais Ripper e Turgidson, na imaginada utopia subterrânea construída para os líderes da nação durante o inverno nuclear (“Dez mulheres para cada homem!”), na simbólica imagem de Kong “cavalgando” um enorme e fálico artefato explosivo… Para Kubrick, a masculinidade tóxica é tão patética e destrutiva quanto a própria guerra fria, e pode mesmo ser a causa primordial da própria. Quanto ao discurso político, o filme segue muito atual. Ainda mais para os brasileiros de 2020.

Dr. Fantástico inaugura um período na filmografia de Kubrick na qual a preocupação com o conceito central expresso pelo roteiro é mais importante que os aspectos estéticos, a dramaturgia e as convenções de gênero cinematográfico (ainda que o diretor nunca se descuide deles e delas). Cada filme seu a partir daqui pretende ser uma complexa declaração sobre aspectos específicos da humanidade: suas origens, seu livre-arbítrio, sua sanidade, sua ambição. Depois de contemplar o fim da raça humana dando risadas nervosas, Kubrick olharia, em seu próximo longa, para o início. Mas não só.

2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO (2001: a Space Odyssey), 1968Quando SK convocou o escritor Arthur C. Clarke em 1964 para que juntos fizessem “o proverbial filme de ficção científica bom de verdade”, talvez não imaginasse que iria, quatro anos depois, refundar a própria sci-fi. Ou talvez imaginasse, já que nunca foi homem de fazer as coisas pela metade e que deveria, depois da vitória artística e conceitual de Dr. Fantástico, estar com a autoconfiança nas alturas. A ambição temática, o perfeccionismo técnico, a busca pela inovação e a disposição para correr riscos se encontraram em uma obra que 1) alargou os limites do experimentalismo visual e narrativo no cinema mainstream 2) dividiu opiniões em seu lançamento e 3) se tornaria o mais universalmente aclamado dos filmes desta lista.

Por conta do item 3 supracitado, não há muito o que eu possa acrescentar ao catatau de linhas já escritas sobre 2001. Na recente revisão, destacou-se não apenas a indisfarçável pretensão (no bom e no mau sentido) do longa, mas também a nítida percepção de que Kubrick, com seu controle obsessivo sobre toda a produção e seu detalhismo quase patológico, se divertiu adoidado ao rodar esta parábola seriíssima sobre a origem e a evolução da humanidade. Deve ter sido esse aspecto que Pauline Kael identificou ao rotular o longa como “o maior filme caseiro de todos os tempos” em 1968. Monumental na aparência, agigantado na mensagem, ao mesmo tempo é um filme de poucos elementos: dramaturgia mínima, uma trama apenas sugerida e aberta a interpretações diversas.

É uma obra de escopo imenso que, de forma paradoxal, Kubrick trata como um filminho amador, feito apenas para seu deleite. Kael aponta que o diretor se apaixonou por seus “brinquedos” (os efeitos especiais) e por sua condição de criador de mitologias. Está certa. Mas o filme é tão impressionante justo por isso, e não apesar disso. Outra evidência do fascínio do diretor pelos “brinquedos” é o fato de o computador HAL 9000 merecer mais empatia que os astronautas. A cena de sua “morte” é uma das mais emblemáticas em um longa todo composto de cenas emblemáticas, referenciadas e/ou parodiadas em incontáveis obras posteriores. Num filme sobre a evolução do homem, o computador tem mais alma que os humanos.

Rever 2001 é sempre um prazer, não pela tentativa de obter pistas sobre sua “mensagem” ou respostas definitivas sobre a trama, mas para prestar atenção nos infinitos detalhes espalhados por sua longa duração. Como a aparição de marcas como IBM, Bell e PanAm, que conferem um ar mundano ao extraordinário ato de viajar ao espaço. Ou as repetidas sugestões de que o ser humano ainda está na “infância” da evolução (a comida dos astronautas é uma papinha de bebê; caminha-se com dificuldade na gravidade zero; é necessário reaprender a usar o banheiro, etc.) Ou a identificação das obsessões temáticas e visuais, como os planos com perspectiva central ou a fixação com a guerra como questão central da humanidade — para Kubrick, o primata começa a se tornar humano ao descobrir a primeira arma.

Clarke afirmou certa vez que “Se o público ‘entendeu’ 2001, é sinal de que nós (ele e Kubrick) falhamos”. Não se trata de uma defesa da incompreensibilidade deliberada do filme, e sim de sua capacidade de apresentar significados diferentes para espectadores diferentes. (Ou de apenas não apresentar significado algum, para quem não está interessado nesse nível do debate e só deseja absorver a forma, não o conteúdo.) O “mistério” da conclusão já foi sanado há tempos, e quando se analisa a explicação, uma certa decepção é até inevitável. A chave para desfrutar o filme não está em entendê-lo racionalmente, e sim (ALERTA DE CLICHÊ) em apreendê-lo de forma sensorial. “Quando explicadas apenas com palavras, as ideias soam tolas. Mas se elas forem dramatizadas, é possível senti-las”, disse o diretor.

LARANJA MECÂNICA (A Clockwork Orange), 1971 — Emparelhado a 2001, compõe uma dobradinha que redefiniu as perspectivas visuais e conceituais do cinema sci-fi, o primeiro a partir de um ângulo transcendental e positivo, o segundo carregado de implicações políticas 100% cotidianas (e nenhuma positividade). Para além dos limites do gênero, na verdade é mais aparentado a Dr. Fantástico do que a 2001. Como o filme de 1964, é uma alegoria política MUITO pessimista que se alterna entre a hilaridade satírica e o horror deliberado. Nas palavras do próprio criador, em 1972: “O filme fala da tentativa de limitar a escolha do homem entre o bem e o mal”. Além de obviamente fracassada (no filme, ao menos), a tentativa serve apenas para ilustrar que o estado é capaz de ser mais psicopata que os psicopatas fora da lei. Quem é o verdadeiro vilão?

Na mesma entrevista de 1972, o diretor discute uma interpretação (alheia) com um arco semelhante ao de 2001: vemos primeiro o homem em seu estado natural, movido apenas pela violência. O tratamento Ludovico corresponderia, em termos psicológicos, ao condicionamento que todos recebemos para podermos fazer parte da sociedade (um ciclo que, no filme anterior, seria iniciado pelo monólito e progrediria além da era espacial). E o desfecho representa a ruptura deliberada com a civilização (o bebezão cósmico do fim de 2001 seria uma versão mais benigna do conceito). “Não tenho a ideia utópica de que, uma vez destruídas as instituições sociais, o homem emerja em sua bondade original”, conclui o cineasta. Por isso mesmo, faz sentido que a versão filmada do romance de Anthony Burgess não contenha o infame epílogo que não constava da edição original do livro nos EUA. Kubrick desconhecia sua existência quando escreveu o roteiro e nunca cogitou terminar o filme da mesma maneira.

É o filme mais “extremo” desta lista, no sentido do radicalismo aplicado aos traços autorais. A violência pontual nos filmes anteriores aqui explode, com direito a requintes de sadismo. O mesmo pode ser dito do papel ocupado pelo sexo na trama, ou do já tradicional distanciamento que Kubrick mantém dos personagens e dos acontecimentos narrados. O humor ganha contornos cínicos, buscando provocar o dissimulado senso de perversidade no público.

A austeridade na composição dos planos também foi exacerbada; se a técnica de one-point perspective era reservada antes para passagens cruciais, aqui ela se repete em diversas sequências, direcionando de forma ainda mais explícita o olhar do espectador. Quando deseja causar efeito cômico, o diretor acelera (a cena da orgia no quarto de Alex) ou freia (o enfrentamento com os drugues amotinados, rodado em câmera lenta) a ação. Quando quer chocar, dispensa o movimento e a montagem — a cena em que os ex-companheiros de Alex quase o afogam em uma banheira, num plano sem cortes, é especialmente perturbadora.

O impacto visual persiste. Porém, ao revê-lo em 2020, suas implicações políticas são o principal atrativo. O romance de Burgess se originou de uma reflexão sobre o behaviourismo temperada por uma experiência que o autor teve com uma gangue de delinquentes juvenis. Visto como uma crítica à ingerência do estado comunista sobre a liberdade individual, o texto também era uma sátira ao paternalismo do welfare state inglês no pós-II Guerra e uma denúncia das inclinações corruptas e sociopáticas da estrutura de segurança pública no mundo contemporâneo. Kubrick, por sua vez, fez questão de apontar que o governo retratado no filme é do Partido Conservador. Mas a esquerda, representada na figura do intelectual que deseja “guiar as massas” usando a lavagem cerebral de Alex como arma política, também não merece muita simpatia.

Voltando à entrevista de 1972, Kubrick diz que “Um dos problemas sociais mais difíceis de serem resolvidos hoje é saber como a autoridade pode se manter sem se tornar repressiva, e como se pode restaurar a confiança das pessoas nas leis e na política como solução possível dos problemas sociais.” (O grifo é meu.) O “hoje” a que ele se referia foi há quase 50 anos. Gostaria de poder dizer que avançamos, de lá pra cá.

BARRY LYNDON, 1975 — A guinada que impeliu Kubrick a dirigir este filme — um projeto que ocupou o cineasta por mais de três anos — é uma das mais intrigantes de sua carreira. Impedido (por razões financeiras) de rodar um longa sobre Napoleão, aproveitou a extensa pesquisa visual e histórica já realizada para o projeto abortado nesta adaptação do romance de William M. Thackeray.

É inescapável a sensação de que SK não era o diretor certo para o projeto. Afinal, trata-se de um melodrama de época filmado por um cineasta que nunca demonstrou qualquer pendor melodramático. É um filme fundamentado na trajetória de um único personagem, apresentada de forma realista e objetiva — algo que contrasta com a preferência do diretor por tratar seus protagonistas como arquétipos encaixados em tramas alegóricas ou satíricas. Mais: feito na sequência de seus três filmes mais filosoficamente ambiciosos, Barry Lyndon não enseja grandes reflexões (para além da desconstrução dos clichês do drama romântico de época). Na comparação com a trinca Dr. Fantástico/2001/Laranja Mecânica, fica difícil não vê-lo como um retrocesso.

No entanto, que magnífico retrocesso… ao menos em termos visuais. São bem documentados os esforços empreendidos para dar ao filme um look ao mesmo tempo realista E impressionista, com a iluminação das cenas interiores feita com velas e a construção de planos inspirados em pinturas do século 17. Neste sentido, Barry Lyndon é tão majestoso quanto 2001, apenas com o vetor temporal invertido. Fotografia, direção de arte e figurinos foram reconhecidos com Oscars, enquanto Kubrick em pessoa, indicado como produtor, diretor e roteirista, foi esnobado.

Em termos de narrativa e dramaturgia, o filme é menos defensável. Mesmo em obras anteriores de imensa ambição e escopo temático, Kubrick sempre se notabilizou pela concisão. Barry Lyndon é seu primeiro filme que parece longo demais (incluindo Spartacus, que é 10 minutos mais comprido). As três horas de duração se justificam pela amplitude cronológica e geográfica da história, mas o ritmo, lento de propósito, torna a experiência pesada.

Entende-se que o diretor esperava que o espectador se envolvesse no complexo mundo retratado na tela. Mas aí esbarramos na deliberada (e conhecida) frieza com que Kubrick aborda os personagens e suas desventuras. Não há a menor tentativa de tornar Lyndon ou qualquer outra pessoa merecedora de empatia ou de identificação. O método funciona em narrativas alegóricas como a de 2001 ou a de Laranja Mecânica. Mas nem tanto quando se apresentam personagens que deveriam parecer reais. A humanidade de Lyndon se manifesta apenas em suas (muitas) falhas, e não pelo interesse do diretor em explorar o caráter do protagonista. É tarefa difícil conciliar o fascínio pelo esplendor visual com o desinteresse pelo destino dos personagens no decorrer da espichada narrativa.

Mais interessante é o supracitado desmonte dos chavões associados a filmes de época. A Guerra dos Sete Anos é encenada de modo a enfatizar a estupidez dos massacres da infantaria. Sublinhando a inutilidade do patriotismo, Kubrick mostra Lyndon virando (de verdade) a casaca ao desertar do exército inglês e ingressar nas forças alemãs; o vermelho é trocado pelo azul e tanto faz, numa versão historicamente correta dos soldados sem pátria de Fear and Desire. As bizantinas convenções sociais da realeza europeia são expostas e criticadas sem trégua, com especial atenção ao papel subalterno ocupado pelas mulheres (mesmo as de origem nobre).

São as entrelinhas que tornam o filme kubrickiano de verdade: o antimilitarismo, a denúncia do cinismo da sociedade, o ceticismo quanto à validade do esforço humano e à ilusão do livre arbítrio (é notável como Lyndon apenas reage às armadilhas e oportunidades que o destino lhe apresenta, e suas poucas iniciativas próprias acabam fracassando). Muito questionado pela crítica em 1975, acabou reabilitado nos anos seguintes, uma trajetória comum a vários filmes desta lista.

O ILUMINADO (The Shining), 1980 — A adaptação do romance de Stephen King não é o melhor filme desta lista. Mas, de longe, é o que mais vezes revi. Culpa, em parte, da insistência dos programadores da TV paga que assino (se estou zapeando e pego o filme no meio, quase sempre paro e assisto até o final de novo). Mas também porque O Iluminado é o mais ambíguo e fascinante dos longas de Kubrick: o mais radical em sua proposta contínua de revisão de gêneros (terror) e, talvez, o que apresenta a melhor metáfora para a abordagem criativa do próprio cineasta — um autor perfeccionista absorto na construção de sua obra, instigado por fantasmas interiores e exteriores e que se aliena de forma consciente (ou não?) do resto do mundo, consumido pela fidelidade a um “método” que, visto de fora, é apenas uma psicose homicida.

Em termos de temática, é o mais “intimista” dos filmes de Kubrick. É a história de uma família de apenas três pessoas, isolada em um único cenário (OK, é um cenário gigantesco, mas ainda assim é um só), com um pai que está ficando mais maluco a cada dia, um filho capaz de ver e sentir coisas que não estão lá e uma mãe que não entende bem o que está rolando. (O diretor disse certa vez que o fracasso da comunicação é um dos temas recorrentes em seus filmes, e decerto é o caso deste aqui.)

Por ironia, também é o único (além de 2001) que aceita a hipótese de que há forças extra-humanas agindo sobre a Terra. São essas forças que conjuram os outros poucos personagens que habitam o filme. Se em 2001 o inexplicável sobrevém para contribuir com a evolução da humanidade, em O Iluminado ele chega para precipitar a desagregação de uma incauta família já em crise. Segundo o diretor, “Entramos em um campo onde não apenas a exploração intelectual chega ao fim, mas onde ninguém pode dizer se o que acontece é verdade — e menos ainda explicá-lo”.

O Jack Torrance original de King é um personagem digno de pena. Ao descrever o estado mental e os traumas do protagonista, o autor instiga no leitor um sentimento ambivalente: acompanhamos sua luta contra a insanidade/possessão e sentimos compaixão pelo humano afinal derrotado pelos espíritos malignos. Para Kubrick, não há dúvida alguma sobre o caráter de Jack, que já começa o filme meio perturbado e rola ladeira abaixo sem freio em direção à monstruosidade completa. Em sua interpretação do personagem, os problemas psicológicos prévios de Jack “o prepararam para se submeter às vontades do hotel (…) e se tornar o instrumento perfeito da vontade delas”. Do mesmo modo, Jack Nicholson se torna o instrumento perfeito da vontade (maligna?) de Kubrick, em uma interpretação que não deixa transparecer qualquer ambivalência. Possuído ou apenas louco, não é possível sentir coisa alguma pelo Torrance do filme, a não ser medo.

Várias resenhas da época do lançamento demonstraram a frustração da crítica com, entre outros aspectos, o ritmo lento e a falta de sustos “convencionais” no filme. Mas é necessário entender o fundamental: o mais assustador em O Iluminado não é o filme em si, e sim a ideia de um filme de terror dirigido por Stanley Kubrick. É impossível superar essa expectativa. Qualquer resultado que fosse entregue seria um desapontamento.

E olha que, em comparação com o que Kubrick fez ao terror em O Iluminado, as releituras anteriores de gêneros como a sci-fi, o film noir e o filme de guerra parecem até modestas. Quando o mais racional dos autores cinematográficos resolve se aventurar no mais onírico e instintivo dos gêneros cinematográficos, ele entra de cabeça. O estímulo à psicopatia na atuação de Nicholson é só a ponta do iceberg.

A trilha sonora é uma das mais sinistras da história do cinema e (junto aos trabalhos de John Carpenter) redefiniu os padrões estabelecidos de “música para assustar”. Com seu layout ilógico, o Overlook cenográfico — a maior casa mal-assombrada já construída — se transforma, graças à fluidez da câmera, em um desorientador labirinto que contém outro labirinto no quintal (fora a maquete no saguão). A fieira de imagens perturbadoras é antológica, do par de gêmeas fantasmas à catarata de sangue jorrando dos elevadores, culminando na inexplicável fotografia da festa de ano-novo de 1921. E vale sempre rever o gradual e muito palpável desespero na performance de Shelley Duvall, que foi atormentada por Kubrick até que, nas palavras do próprio SK, ela chegasse “ao estado desejado” por ele.

Isso sem mencionar as pequenas bizarrias espalhadas pelo longa, que hoje são o principal atrativo (para mim) após tantas revisitas. Por que Wendy está lendo O Apanhador no Campo de Centeio no começo do filme? Por que o bartender serve Jack Daniel’s a Jack, que pedira um bourbon (e ele aceita)? Por que o filme menciona dois sujeitos chamados Grady (Charles e Delbert), quando no livro só há um? Aliás, como o pai do Alex e o contador de Lady Lyndon se parecem tanto com o zelador fantasma? Por que há tantos produtos Heinz na despensa? QUE PORRA SIGNIFICA AQUELA CENA DO URSO FAZENDO SEXO ORAL EM UM HOMEM DE FRAQUE?!

NASCIDO PARA MATAR (Full Metal Jacket), 1987 — Por 30 anos, Stanley Kubrick esteve na vanguarda do cinemão americano. Reabilitou o film noir, imprimiu seu toque autoral em superproduções, resetou as convenções da ficção científica. Em 1987, pela primeira vez, ele fora passado para trás. Do momento (em 1982) em que decidiu adaptar o livro de Gustav Hasford sobre a Guerra do Vietnã até o lançamento de Nascido Para Matar, o conflito no Sudeste Asiático havia inspirado dois outros filmes de repercussão: o oscarizado Platoon e Jardins de Pedra, de Francis F. Coppola. (Este último já esgotara o tema com Apocalypse Now.) Ironia do destino, logo quando o diretor retornava à sua especialidade depois de tantas aventuras.

Ainda mais irônico é perceber que se trata do mais “genérico” dos filmes de sua obra. Mesmo que o tema fundamental seja caríssimo a Kubrick, o filme de 1987 apresenta diversas estranhezas. Na verdade, é como se a primeira parte (a fase de treinamento dos recrutas) e a segunda tivessem diretores distintos, sendo a primeira muito mais claramente kubrickiana em forma e conteúdo.

As típicas composições visuais e o rigor na construção das cenas são substituídos (em especial na segunda parte) por uma câmera muito mais fluida. Há uma inédita incursão metalinguística na figura da equipe de jornalistas que aparece para entrevistar e filmar os fuzileiros na frente de batalha; nos filmes anteriores, realistas ou alegóricos, nunca houve tamanha sugestão de quebra da 4ª parede. E mesmo o arco do protagonista Joker soa atípico. O soldado interpretado por Matthew Modine é o raro personagem kubrickiano que apela à empatia do espectador e convida a uma óbvia reflexão moral no desfecho.

A parte 1 repisa as teses antimilitaristas anteriores de um modo que poderia ser visto como caricatural… se o ator escolhido para viver o brutal sargento instrutor não fosse um sargento instrutor de fuzileiros na vida real. Para Kubrick, a fronteira entre o militarismo e a psicopatia é sempre tênue, e aqui a ideia é apresentada com cinismo e crueza. O humor (negro) nasce do desconforto e da incredulidade do espectador diante do tratamento dispensado aos recrutas. A ênfase, desde a sequência de abertura, é no processo de desumanização dos futuros soldados: para que eles se transformem em “máquinas de matar”, nas palavras do próprio sargento Hartman, é preciso que eles não se vejam mais como humanos. Neste sentido, os pracinhas se assemelham aos personagens arquetípicos de 2001 ou de Laranja Mecânica. O horror do treinamento é mostrado, como de costume, sem sugestões de julgamento moral.

A segunda parte, mostrando a frente de combate no Vietnã, parece menos interessante ao recair em certos convencionalismos. Por mais que existam subtextos políticos (como nos questionamentos de Joker sobre a cobertura oficial do conflito, ou nas interações dos americanos com os civis), a metade final do filme obedece a uma lógica que desaponta por sua previsibilidade. Assistimos à transformação dos rapazes em assassinos na primeira parte, e depois os vemos em ação. É fácil aceitar a caracterização arquetípica na primeira metade, mas quando é necessário construir personagens palpáveis e humanizados, Kubrick desaponta. Há um esboço de complexidade na figura de Joker, com suas contradições (o capacete com a frase-título + o broche hippie etc.), mas falta profundidade. O desfecho da batalha final, com seu claro convite à catarse, também parece deslocado. Sim, Stanley, nós entendemos, a guerra transforma a nós todos em seres cruéis e sem empatia etc.

Sobra, então, a precisão técnica. Aqui, no lugar do espaço sideral ou do hotel mal-assombrado, Kubrick usou uma usina de gás prestes a ser demolida como parquinho de diversões. (“Acho que ninguém nunca teve uma oportunidade como aquela de destruir prédios de verdade”, disse o diretor.) A recriação da ofensiva do Tet e da batalha de Huè e o longo e tenso duelo contra o invisível sniper vietcongue dão a chance para o cineasta, uma vez mais, brincar de soldadinho — e aí o fascínio pela coreografia da destruição sobrepuja a intenção antimilitarista do discurso.

DE OLHOS BEM FECHADOS (Eyes Wide Shut), 1999 — “Em seu último trabalho, o (…) cineasta não negou suas ambições características e (fez) um comentário sobre a crise que o casamento tradicional enfrenta neste fim de século — e também a respeito da ainda atrapalhada relação que (os homens) têm com sua própria sexualidade. (…) Kubrick poderia ter feito um grande filme, e deu indícios dessa capacidade (…) pelas subversões que promoveu ao conceito do projeto (…) Mas aos poucos, a inquietação e a perplexidade que o personagem de (Tom) Cruise experimenta assaltam o espectador.” Com essas palavras um tanto atrevidas, eu tentei explanar minha relativa decepção com De Olhos Bem Fechados — uma resenha publicada no jornal carioca Tribuna da Imprensa na época do lançamento nacional do longa, em setembro de 1999. Depois, nunca mais revi o filme. Até agora.

Ainda hoje, mais de 20 anos depois, é difícil fazer uma avaliação de DOBF que não leve em conta 1) as expectativas gigantes em torno do filme e 2) a inesperada morte de Kubrick, poucos meses antes do lançamento. A adaptação do Breve Romance de Sonho, de Schnitzler, era um projeto acalentado pelo diretor desde a década de 1960. A escalação de Tom Cruise e Nicole Kidman como protagonistas, então casados na vida real, foi uma festa para os tabloides. Afastado por mais de uma década dos sets, Kubrick começou a rodar o longa em setembro de 1996 e só dispensou a equipe em maio de 1998 — a mais longa filmagem contínua da história do cinema, que incluiu um período de 46 semanas sem folga. E… morreu seis dias depois de concluir a montagem definitiva.

“OK, Tom, mais 45 takes e você pode ir ao banheiro.”

O tema fundamental de DOBF, o sexo — ou melhor, a frustração sexual — não era novidade para Kubrick. Só que nunca tinha ocupado tanto destaque, nem sido mostrado de modo tão aberto. Ainda assim, o desafio maior era outro: explorar as relações íntimas entre os personagens e suas psiques. A estranheza é mais acentuada na primeira parte do filme, que retrata os atritos e os anseios do casal de protagonistas. Os flertes na festa e a falação sobre adultérios imaginários remetem ao clima dos dramas de Woody Allen (sensação reforçada pelo jazz na trilha sonora, pelos cenários que recriam uma Manhattan granfina e pelos tons quentes da fotografia).

Mas as coisas se tornam mais interessantes à medida que nos afastamos do domicílio conjugal. Os encontros cada vez mais insólitos que Bill (Cruise) experimenta no curso de uma longa noite conduzem ao âmago da narrativa, a festa dos taradões mascarados na mansão. É quando o onirismo transborda e se encontra com a representação mais explícita da frustração do protagonista, pego no flagra e desmascarado. Afinal, sempre acordamos antes do sonho chegar ao ápice, né?

Em seu terço final, o filme enfim engrena ao se transformar num insólito film noir temporão: Bill vaga por Nova York tentando esclarecer um desaparecimento (sequestro?) e uma morte (assassinato?). E claro, entender o que diabo se passou na noite anterior na mansão. (Filmadas em estúdio, as cenas nas ruas perdem em realismo na comparação com as de A Morte Passou por Perto, mas decerto foi uma escolha deliberada do diretor.) Mais frustração. Nada se resolve de modo satisfatório, outras duas tentativas de trepadas dão errado (e uma terceira, ofertada pela ninfeta da loja de fantasias, é rejeitada). A reconciliação com Alice (Kidman) é o que resta. Postos na mesa os pecados imaginários (dela) e reais (dele), o casamento não será mais o mesmo. Mas, como Alice deixa claro, sempre teremos o sexo…

Sim, o filme envelheceu bem. Ainda assim (e olha aí a frustração de novo, desta vez artística), está aquém do que poderia se esperar de um projeto gestado por tantos anos e que acabou servindo de epitáfio para o autor. As entrelinhas e ambiguidades que caracterizaram obras anteriores parecem apenas pontas soltas no roteiro. Filmar uma história tão dependente da caracterização psicológica dos personagens deve ter sido um dilema para um diretor que sempre preferiu lidar com arquétipos e conceitos abstratos. Daí até se entende os mais de 30 anos que Kubrick passou ruminando o romance de Schnitzler.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)