TOP 10: BURT BACHARACH (1928–2023)

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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6 min readFeb 9, 2023

“As músicas sempre sobrevivem. Sobreviveram até agora, estarão por aí por pelo menos outros 35 anos.” Burt Bacharach disse isso sobre a própria obra em outubro de 1999. Ele não disse a qualquer um: a declaração foi dada a mim, em uma suíte do hotel Copacabana Palace. Na época eu era repórter do jornal Tribuna da Imprensa, e não lembro mais direito se consegui esconder o nervosismo ao encarar, face a face, um cara que era referência musical para mim desde a primeira infância.

Era uma agenda de imprensa para divulgar o show que Bacharach faria no Rio de Janeiro, no dia seguinte. Talvez por ter notado minha emoção, o maestro redobrou a simpatia. Falou muito, respondeu de novo todas aquelas mesmas perguntas de sempre, riu bastante (principalmente ao lembrar as estadias naquele mesmo Copa, quando excursionava pelo mundo como diretor musical da cantora/atriz Marlene Dietrich). E até mencionou as influências brasileiras em suas composições —a ideia para o ritmo “arrastadinho” do arranjo original de “The Look of Love” veio, segundo o compositor, inspirada pelo baião de Luiz Gonzaga.

Dez anos depois, reencontrei Bacharach, não pessoalmente, mas da plateia do Vivo Rio, de onde assisti BB & banda (metais, vocalistas de apoio etc.) Minhas impressões do espetáculo renderam um textão no Jornal do Brasil; eu já não era um trêmulo repórter, mas a emoção foi a mesma, ou talvez maior, diante da figura já frágil (80 anos) que insistia em não deixar a peteca cair.

Esses foram apenas dois dos mais intensos momentos em que Bacharach tocou minha vida. Ele faz parte do meu panteão pessoal desde os 3, 4 anos, quando minha mãe botava o Reach Out e uma coletânea da Dionne Warwick (recheada de composições dele) na vitrolinha lá em casa. Virou, pra todo sempre, sinônimo de música boa para mim, mesmo antes de entender o que era cantado. Acostumei-me primeiro com a voz de BB entoando suas próprias músicas, e só depois descobri que sua obra era muito mais famosa nas vozes de outros artistas — de Isaac Hayes aos Carpenters, de Doris Day a Tom Jones. Suas composições sempre estiveram comigo; talvez pela familiaridade, sempre me pareceram “fáceis” e “simples”…. mas, na verdade, não poderiam ser mais complexas e sofisticadas, e ainda assim cantaroláveis. Na melhor tradição de Cole Porter, George Gershwin e Jerome Kern, atualizada para a linha-de-montagem do Brill Building, e de lá para a Broadway, e para Hollywood… e para a eternidade.

(E estavam sempre mesmo. Ontem, um dia antes da divulgação de sua morte, eu brincava ao teclado, tentando tocar “This Guy’s In Love with You”. Tentando.)

As músicas sobrevivem. Obrigado por tudo, Burt.

10) “Baby It’s You”, The Beatles (1963) — Depois de fazer muito sucesso com as Shirelles, esta canção de 1961 foi incluída primeiro no repertório dos shows dos Fab Four e depois em Please Please Me, o álbum de estreia. A versão é parecida com a original, mas o vocal do John é insubstituível, indo do dengo nos “wow-oh-ooooh” (antes da ponte) à súplica esganiçada (“Can’t help myseeeee-lf!”).

9) “(There’s) Always Something There to Remind Me”, Naked Eyes (1983) — Essa é uma (de muitas) canções de Bacharach & David das quais eu gostei primeiro, e descobri que era deles depois. O vídeo dessa versão, único hit verdadeiro do duo synthpop inglês, tocava muito nos pioneiros programas de clipes pré-MTV, como o FMTV. Anos mais tarde, conheci a versão mais famosa dos anos 60 e não me convenci: ainda prefiro a dos anos 80.

8) “Alfie”, Everything but the Girl (1987) — Outra versão temporona que na minha opinião supera as anteriores. Claro que Dionne Warwick cantando isso sempre vai ser pura classe. Entretanto, a delicadeza do arranjo e a interpretação de Tracey Thorn (nunca é demais repetir, uma das maiores cantoras da história da música pop) dão uma aura de melancolia incomparável ao tragicômico personagem-título.

7) “Tears at the Birthday Party”, Burt Bacharach & Elvis Costello (1998) — Quando Costellão da Massa se juntou a Burt para gravarem o álbum Painted From Memory, a parceria fez completo sentido para mim. Em seu processo de amadurecimento, EC se tornou talvez o melhor herdeiro espiritual de BB, rejuvenescendo a linguagem do pop tradicional norte-americano de um modo refinado mas sempre acessível. Esta é minha faixa favorita do álbum conjunto; nos anos subsequentes, os dois ainda trabalharam, em diversos projetos, nem todos finalizados. A íntegra da parceria foi encaixotada no recente box The Songs of Bacharach and Costello.

6) “Walk on By”, The Stranglers (1978) — Ok, prometo que esta é a última escolha controversa desta lista. Não a incrível versão da Dionne, não a estupenda versão do Isaac, meu voto vai para a descaralhada desconstrução feita pelos velhos homens do punk. Pensando bem, nada poderia ser mais punk do que lançar, em 1978, um single de seis minutos recriando um clássico do easy listening, com direito a longas passagens instrumentais. E o pior é que fez sucesso. You really gotta go, really gotta go!

5) “The Look of Love”, Dusty Springfield (1967) — Casino Royale (o original, não o com Daniel Craig) sempre será o mais esdrúxulo dos filmes de James Bond. Se o saldo cinematográfico é frustrante, a trilha sonora, composta por Bacharach & David, compensa. Os dois ganharam uma indicação ao Oscar por esta canção, valorizadíssima pelo arranjo sutil e pela performance docemente provocante de Dusty. Esta é a versão incontestável, ainda que Nina Simone e Sergio Mendes façam boas figuras.

4) “A House Is Not a Home”, Burt Bacharach (1967) — Depois de ver Dionne Warwick e Brook Benton terem sucesso moderado com esta canção, o próprio Burt a regravou em seu primeiro disco solo, o mui apropriadamente intitulado Hit Maker! Mas era uma versão instrumental; ele só criou coragem pra canta-la no fenomenal Reach Out, de 1967. É uma interpretação emocionante, que começa evocando um crooner solitário em alguma boate enfumaçada e evolui para um verdadeiro wall of sound com banda, coro & orquestra.

3) “This Guy’s In Love With You”, Herb Alpert (1968) — Por muitos anos, eu acreditei que o vocal desta versão, mais uma que meus pais escutavam quando eu era pequeno, fosse do próprio Burt. Não é, e sim do líder do Tijuana Brass, outro cantor bissexto e de timbre similar. O dedilhado de piano na introdução me transporta imediatamente de volta à infância, e o crescendo orquestral do arranjo ainda soa assombroso, no melhor dos sentidos.

2) “Make It Easy on Yourself”, Burt Bacharach (1969) — Como descrevi lá em cima, cresci acostumado a ouvir o próprio Burt cantando suas músicas, e em muitos casos suas versões são insuperáveis pra mim até hoje. Em termos de técnica ou extensão, ele nunca foi um grande vocalista e nunca pretendeu ser. Suas incursões ao microfone valiam pela evidente sinceridade imposta à interpretação das letras de Hal David, especialmente nas gravações baseadas em piano & voz, como é o caso aqui.

1 ) “I Say a Little Prayer”, Aretha Franklin (1968) — Sempre que me perguntam qual é a maior performance vocal da história da música pop, eu aponto para esta gravação. Descobri a versão tardiamente, só no começo dos anos 2000; até então, Dionne era a dona da canção. O Bomb the Bass merece menção honrosa. Apenas ouvir a intro de piano (tocado por Clayton Ivey) me causa até hoje uma sensação indescritível. Revelada em um coro gospel, Aretha era a cantora perfeita para transformar a “pequena prece” em um vulcânico apelo aos céus. Um hit pop nascido para ser um clássico eterno da soul music, unindo para sempre o maior autor do primeiro estilo à maior cantora do segundo.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)