TOP 10: MORRISSEYNIANAS.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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15 min readFeb 24, 2017

Postado originalmente em maio de 2012.

Que gato!

Em 1999, a revista Q publicou uma edição especial com uma votação popular definindo os 100 maiores artistas pop do século 20. O público tinha que escolher cinco nomes (individuais; bandas não valiam) e anexar junto a cada voto uma breve justificativa. Dando uma colher de chá aos leitores, a revista pinçou uma dessas justificativas — a mais original, engraçada ou poética — para cada artista da lista. Deu Lennon (1º) e McCartney (2º) na cabeça. Na posição #41 (atrás de nomes como Dr. Dre, Richard Ashcroft e Richey Edwards!) vinha Steven Patrick Morrissey. Não sei onde está o meu exemplar da Q, mas me lembro até hoje da frase escolhida pela redação, enviada por um leitor: ”Eu o amo, mas não daquele jeito.”

Creio que esta frase resume meu relacionamento com Morrissey. Já ouvi incontáveis piadinhas por conta da minha admiração incondicional pelo cantor e por causa da importância que sua obra teve em minha formação musical. Fazer o que? Com ou sem os Smiths, sua voz e suas letras sempre fizeram total sentido para mim, e sempre farão. Por isso, inspirado na leitura de minha Mozipedia, relaciono aqui os 10 momentos mais marcantes que passei na companhia do bardo de Manchester. De quebra, preparei para cada item da lista uma tradução de um trecho da Mozipedia que seja pertinente ao momento em questão. Ei, se aparecer alguma editora interessada em lançar o livro aqui, posso indicar um bom tradutor…

(Este post é dedicado aos meus bons amigos Everton e Zervane, que talvez — talvez — gostem mais do Morrissey do que eu.)

1 — “This Charming Man”/ The Boy with the Thorn in his Side” (inícios de 1986)
Eu tinha acabado de fazer 12 anos. Um amigo apareceu lá em casa com um cassete da coletânea Hit Parade 86 a capa me causou grande impressão.Perdida no repertório que misturava Wham!, Glenn Frey (!) e Simple Minds, lá estava a banda sobre a qual a revista Bizz não parava de comentar. “The Boy with the Thorn in his Side” foi a primeira canção dos Smiths a qual eu ouvisabendo que do que se tratava. Eu já conhecia (sem saber que era deles) “This Charming Man” — ouvia pedaços aqui e ali, tocando no rádio esporadicamente, e me perguntava que banda seria aquela. Não havia MTV, não havia internet, eu nem conhecia a Fluminense FM ainda (só passei a ouvir a rádio em 1987). Então como saber?

Só fui finalmente botar as mãos num fonograma de “This Charming Man” quando comprei, lá pros idos de 1987, meu Hatful of Hollow em vinil. Mas a versão que vinha no disco, como todos sabem, era a versão “devagar” gravada numa sessão para a BBC. Essa versão aqui:

Quando eu comprei meu The Smiths (o primeirão), em meados de 1988, notei que o lado A era encerrado por, vejam só, “This Charming Man”. Era a versão que se segue, finalmente a versão que eu perseguia há anos (em que o Morrissey berra). Completista obcecado, eu?

This Charming Man”: Na cronologia da banda (…) a música chegou depois que grande parte das músicas de The Smiths, o disco, já havia sido composta (…) e marcou o começo de uma nova fase no songbook de Morrissey/Marr; movia-se para longe do fúnebre clima depressivo do repertório inicial, em direção a um território pop mais jovial. (…) Mereceu o elogio do NME: “Um daqueles momentos nos quais renasce a presença elétrica e vívida do poder da música” (páginas 444–445).
“The Boy”: Marr lembra que a alegre melodia “simplesmente jorrou” de dentro dele, durante uma viagem de ônibus em meio à turnê de Meat Is Murder. “Era uma música leve, feita com espírito leve.” (…) É exatamente isso: os Smiths em seu momento mais leve, como uma pluma. Ainda assim, seus versos simples parecem ter um significado pessoal mais intenso para Morrissey; em 2003 ele a elegeu como uma das duas canções favoritas de sua própria obra, ao lado de “Now My Heart Is Full” (páginas 48–49).

2 — The Queen Is Dead, o LP (provavelmente outubro/novembro de 1986)

Não importava. Já impressionado por “The Boy…”, resolvi que compraria um disco dos Smiths para saber se, afinal, a banda realmente correspondia a todos aqueles elogios da Bizz. Detalhe: eu nunca tinha comprado um disco na vida. Pouco depois de comprar a Bizz 15 (outubro de 1986), que vinha com o Morrissey na capa — foi a primeira Bizz que comprei por conta própria — comprei, num espaço de poucas semanas, The Queen Is Dead, True Blue (sim, Madonna) e Dois, da Legião Urbana. Os dois primeiros foram comprados, Deus meu, numa loja que não existe mais há uns 20 anos. Da lista de canções, eu só conhecia “The Boy”. Como eu não sabia o título de “This Charming Man”, tinha esperança que alguma das outras faixas fosse, afinal, aqueeeela música que me intrigava há meses. Frustrei-me, o que não impediu que eu amasse todo o resto do disco, especialmente “I Know It’s Over”, “Never Had no one Ever”, “Some Girls Are Bigger Than Others” e “There’s a Light that Never Goes Out”. Tudo para mim era ali era misterioso, fascinante: as letras, que eu me esforçava para entender, os vocais idiossincráticos, o enigmático descompasso entre a imagem da capa e o título do disco (Alain Delon = abaixo a monarquia = WTF?), os detalhezinhos dos arranjos (os fades na intro de “Some Girls…”, o sample arcano na abertura da faixa-título, as cordas sintéticas de “There’s a Light…”). Versos como “If you’re so funny, than why are on your own tonight?”, para um rapaz introvertido como eu, eram a pura perdição — afinal, alguém também entendia o que significava ser adolescente e “criminosamente tímido”, mesmo que esse alguém estivesse na distante Manchester. Os Smiths não soavam como nada que tocasse no rádio ou aparecesse na TV, naquele distante ano de 1986. Meus pais não ouviam rock, eu não tinha o proverbial irmão/primo/amigo mais velho para me emprestar discos. Eu não conhecia nem os Beatles naquela época.

Post-scriptum: hoje não tenho mais meu vinil de The Queen Is Dead, o primeiro LP que comprei na vida. Emprestei prum vizinho que deu uma festa (para a qual eu não fui convidado!) e deixou que algum convidado levasse o disco. Ao menos foi essa história que ele contou. Numa incrível coincidência, minha primeira cópia em CD do disco também seria roubada; tive de recomprar toda a minha discografia dos Smiths depois de um assalto a meu apartamento.

“I Know It’s Over:” “Era algo que os Smiths sempre ameaçaram fazer”, lembra Marr. “Uma grande balada melancólica, mas ainda assim do-it-yourself, pós-punk. Não é uma superprodução mas ainda ainda assim é carregada de emoção. É uma música que somente nós poderíamos fazer.” (…) Entre os leviatãs inquestionáveis do repertório de Morrissey/Marr, para muitos fãs esta música só fica atrás de “There’s a Light that Never Goes Out” na hora de decidir qual é a mais perfeita balada dos Smiths (páginas 181–182).

3 — Hatful of Hollow (algum momento de 1987)

The Queen Is Dead foi o primeiro. Meat Is Murder, que comprei depois, é para mim o melhor. Mas provavelmente o disco dos Smiths que mais ouvi foi HoH, que adquiri entre TQID e MIM. Oito músicas de cada lado, todas excelentes, cada uma exibindo uma faceta diferente do som e da poesia da banda. “Heaven Knows I’m Miserable Now” tornou-se o hino para os momentos de depressão/autocomiseração/autodepreciação. “Girl Afraid” era para dançar (lembram que tocava numa vinheta do Realce?). “Accept Yourself”, “You’ve Got Everything Now”, “These Things Take Time” e “What Difference Does it Make?” eram para pular e berrar junto. “How Soon Is Now?” era para ficar ouvindo quieto, tentando entender que sons eram aqueles. “Reel Around the Fountain”, “Back to the Old House” e “Please Please Please Let me Get What I Want” eram para tentar tocar ao violão (e para se emocionar). Meu vinil, comprado de segunda mão, não tinha o envelope com as letras, então eu tentava tirar os versos de ouvido. Devo um pouco de minha (relativa) fluência no inglês a aquelas tardes.

Hatful of Hollow: Julgado puramente em termos de composição, suas 16 faixas (…) são uma coleção de originais de Morrissey/Marr tão impecável quanto qualquer outro dos quatro discos oficiais de estúdio da banda. (…) Documentava o desenvolvimento musical do grupo, de “Hand in Glove”, de maio de 1983, aqui na versão original do single, até o polido esplendor pop de “William, It Was Really Nothing” (agosto de 1984). (…) Uma introdução acessível para os não-iniciados e desinformados entenderem a singularidade dos Smiths (páginas 159–160).

4 Rank (finais de 1988? Começo de 1989?)

Os Smiths se dissolveram em meados de 1987. Morrissey lançaria seu primeiro solo em 1988. Rank, primeiro e único disco ao vivo do grupo, sairia em outubro de 88, e creio que no Brasil saiu simultaneamente à versão britânica. Considero o álbum um dos melhores registros de show de todos os tempos. Perdi muitas tardes ouvindo incansavelmente o disco e cantando junto. Neste contexto, obviamente a versão de “Still Ill” era o highlight:

Rank: Como documento ao vivo, Rank é uma justa indicação do poder e da paixão expostas pela banda no prematuro fim de sua carreira nos palcos, que ganhou solidez extra com a guitarra adicional de Craig Gannon e destacava o vigor rítmico de Mike Joyce como uma indispensável âncora. Houveram, como Morrissey diz, “momentos mais brilhantes” (e piratas melhores), mas Rank é a prova de que um show dos Smiths poderia ser uma ocasião ruidosa e selvagem (páginas 342–343).

5 — “The Last of the Famous International Playboys” (meados/final de 1989)

Eu já era bem grandinho, já tinha superado o fim do grupo e já tinha me conformado com a ideia de Morrissey solo. Só que a carreira individual do bardo não me convencera de todo. Claro que Viva Hate tinha vários momentos brilhantes, alguns dos quais (“Alsatian Cousin”, “Late Night, Maudlin Street”) até fugiam do padrão smithiano mais óbvio. A primeira música solo do cantor que relamente me empolgou foi “The Last of the Famous…”, que, claro, não fugia nem pouco ao padrão smithiano mais óbvio. Quando vi o vídeo que juntava nada menos que três ex-Smiths (Mike Joyce, Andy Rourke e o bissexto Craig Gannon) a Morrissey, confesso que cheguei a me emocionar. “Cara, os bons tempos voltaram! Eu sabia que ele não iria me decepcionar!” Infelizmente, Bona Drag, o disco que trazia o single, não me desceu muito bem de primeira. (Um adendo: comprei o disco numa Ultralar, outra loja que não existe mais.)

The Last of the Famous International Playboys”: Após admitir que amava “a romantização do crime”, “Playboys” era um exame explícito do tema: uma descarada carta de admiração aos notórios gangsters londrinos dos anos 60 Reggie e Ronnie Kray, “escrita” por um jovem criminoso iniciante desejoso de alcançar a fama através de similares métodos vilanescos. (…) Sem dúvida, em seu confiante balanço musical e com a audaciosa proclamação de seus versos, “Playboys” permanece como um dos mais vibrantes singles de toda a carreira de Morrissey (páginas 215–216).

6 — “We Hate It When Our Friends Become Sucessful” (meados de 1992)

Os tempos eram outros, então. Eu já ouvia eletrônica, hip hop e MPB; bandas como My Bloody Valentine, Stone Roses e Nirvana já haviam entrado em minha vida. Os Smiths continuavam lá, no seu panteão sagrado, mas Morrissey não tinha mais a importância que um dia tivera. Kill Uncle, seu segundo trabalho solo (descontando a coletânea Bona Drag) me desanimou bastante. Por isso, quando ouvi “We Hate it…” na Fluminense, me espantei — positivamente. O som era pesado, rascante; a letra era engraçada (existe título mais morrisseyniano que este?); a performance, empolgada. Morrissey parecia rejuvenescido. Contendo minha animação, aguardei o álbum e não me frustrei.Your Arsenal marcava a estreia oficial dos dois guitarristas-compositores (Boz Boorer e Alain Whyte) que ajudaram o cantor a, afinal, achar sua sonoridade própria, cinco anos após o fim dos Smiths. A nova banda trazia guitarras roncando alto (“You’re Gonna Need Someone on Your Side”, “Tomorrow”, “The National Front Disco”) herdadas do interesse de Morrissey pela cena rocakbilly/psychobilly de Londres. Mas também era capaz de momentos de sutileza e melancolia ímpares (“We’ll Let You Know”, “I Know It’s Gonna Happen”, “Seasick, Yet Still Docked”). “CARA, OS BONS TEMPOS VOLTARAM! EU SABIA QUE ELE NÃO IRIA ME DECEPCIONAR!”

“We Hate It When Our Friends Become Sucessful”: O título espelhava uma das frases mais famosas de Oscar Wilde — “Qualquer um pode se compadecer com o sofrimento de um amigo, mas é necessária uma natureza muito delicada para alegrar-se com o sucesso do mesmo amigo” (…) Rumores que a música era uma afiada mensagem destinada ao vocalista da banda James, Tim Booth, afinal foram confirmados (…) Era uma bem-vinda adição ao repertório de canções sobre fama e frustração, algo como uma “You Just Haven’t Earned It Yet, Baby” (…) com uma lambada extra de sarcasmo, até mesmo resgatando a risada despeitada de “Bigmouth Strikes Again” (páginas 469–470).

7 — Vauxhall and I (meados de 1995)

O melhor solo de Morrissey viria logo depois de Your Arsenal. Mais melódico e pop, com guitarras domesticadas e substituindo a hiperatividade pela melancolia, o disco reúne pérolas melodramáticas como “Now My Heart Is Full”, “The More You Ignore Me, the Closer I Get”, “Hold on to Your Friends” e “The Lazy Sunbathers”. E fecha com uma das melhores, se não a melhor canção da trajetória individual do homem: “Speedway”. Minha fé no mancuniano estava plenamente reestabelecida, e eu — diferentemente de muitas pessoas menos esclarecidas — já superara a ideia de que a carreira solo de Morrissey deveria ser considerada à sombra do legado dos Smiths. Morrissey era apenas Morrissey. E por mais que a parceria com Johnny Marr tenha rendido, sim, os anos mais inspirados de sua trajetória, a banda era passado e deveria ser considerada como mais uma parte da progressão artística do cantor — que seguia evoluindo, de forma independente. Em mais uma dessas cagadas que costumam assolar a minha vida, perdi meu primeiro VaI num assalto (era um CD importado!) e fui obrigado a comprar outro.

Vauxhall and I: (…) 1993 seria um dos anos mais traumáticos para o cantor, com a morte de pessoas próximas e uma ”longa fase” de depressão. (…) Ainda assim, desta abissal escuridão veio o álbum insuperável de Morrissey. Sua “obra-prima solo” definidora. (…) “Antes de Vauxhall and I, nunca tinha me sentido tão completo, satisfeito”, ele afirmou. “Um álbum no qual nenhuma faixa destoa, e em que todos os títulos são um sucesso. É uma nova e terrivelmente excitante emoção. (…) Encaixa-se na minha ideia de perfeição. Eu não poderia fazer nada melhor.” (páginas 455–458)

8 — “Moonriver” (finalzinho de 1995)

Havia uma garota de quem eu gostei muito. E ela gostava de mim, mas… não o suficiente. E na primeira vez que ouvi essa versão morrisseyniana para o clássico de Henry Mancini, eu estava ao lado dela. Enfim. Eu já tinha uma ligação anterior com a música o filme para o qual ela foi composto é um dos meus favoritos de todos os tempos. Fiquei impressionado com a ousadia da versão, na qual a performance vocal é escanteada em favor de um longo, lindo e etéreo interlúdio instrumental, encharcado de reverbs e samples de choro feminino. O disco que trazia a canção, a coletânea World of Morrissey, tinha outros ótimos momentos, como “Whatever Happens, I Love You” e “Boxers”.

“Moonriver”: Parecia surpreendente ouvir Morrissey apropriando-se de um clássico de cabaré, mas uma inspeção detalhada da letra (celebrando amor, amizade eterna e ambição juvenil) a coloca em posição análoga à de “Hand in Glove”. (…) Há uma suave tristeza pairando em sua interpretação, invertendo o otimismo original com uma sensação de perda e tragédia iminentes e que o sonho, “logo ali depois da curva”, nunca vai chegar. (…) O choro sampleado pertence à atriz Peggy Evans, soluçando em agonia depois de ser estapeada no rosto pelo canalha Dirk Bogarde no filme The Blue Lamp (1950) (páginas 270–271).

9 — O show (5 de abril de 2000)

Morrissey se apresentou no Rio em abril de 2000, no ATL Hall (depois Claro Hall, hoje Credicard Hall). O texto que se segue foi publicado na edição 25 da revista Rock Press (junho de 2000).

E, numa noite quente de outono, ele veio até nós. Alguns já esperavam há pelo menos uma década. Outros (em números surpreendente) estavam no jardim de infância quando os Smiths eram a maior banda do mundo, levados ao show pela campanha idiótica de alguma “rrrrrrrádio rrrrock”. (Dois flagrantes da plateia: ao meu lado, um sujeito de uns 30 anos ficava de braços cruzados, olhando para todos os lados — menos para o palco — durante as músicas da carreira solo do cantor. Quando surgia alguma música dos Smiths, ele pula, cantava junto, erguia as mãos… Do outro lado, uma menina que não podia ter mais de 17 anos berrava sem parar: “Ask Me”, “Ask Me” — sic! Pobres e desavisados infieis.)
O fato é que, como ou sem Smiths no repertório, ver Morrissey ao vivo é a oportunidade única de encarar aquele que talvez seja o último pop star que mereça o termo. Nesta época de DJs anônimos, adolescentes louras peitudas e garotos da rua de trás, o velho mancuniano é a única figura inconfundível, o único com carisma real, o único digno de adoração — por parte de gente que esperou mais de 10 anos ou de gente que acabou de conhecê-lo.
E ao vivo, meus amigos, o bicho pega. Se ouvir Morrissey em casa é uma viagem introspectiva, que pode levar o ouvinte aos risos ou à comoção, no palco o negócio é só rock’n’roll, celebração, diversão, showmanship. O “inglês deprimido” é um mito; o ATL Hall (quase) lotado pôde comprovar isso. O cara suou, literalmente, e fez todo mundo suar (os mais comovidos sempre podiam dizer que não eram lágrimas, mas o suor escorrendo…) Conversou com a plateia, tentou arrastar um fã afoito para o palco, pegou flores, cartazes, peças de roupa; negou, com um sorriso, pedidos de músicas (“‘Bigmouth’? No, no. Small mouth.”); atirou pelo menos umas cinco camisetas molhadas de suor ao público — a última, esfregada por dentro da calça em suas partes pudendas. Depressão, onde? Ritmo de festa.
O repertório não teve obviedades; na verdade, os hits foram praticamente evitados. Com sua banda afiadíssima, comandada pelo guitarrista Boz Boorer, Mozz lascou rock de cara, com “The Boy Racer” e “Billy Budd” — e foi inacreditável vê-lo entrar no palco, sorridente, todo de couro preto (suava!). Vários momentos brilhantes de sua carreira solo estiveram presentes. “Now My Heart Is Full” (numa versão sutil), “November Spawned a Monster”, “Trouble Loves Me”, “The More You Ignore Me…” Faltaram alguns sucessos, claro, mas não deu para sentir saudade, tal era o vigor com que o topetudo e sua banda se entregavam às canções. Pérolas menores como “Break Up the Family” ou “Hairdresser on Fire” foram mais que suficientes para completar.
E teve Smiths? Apenas quatro, e nenhum big hit. “Meat Is Murder”, “Half a Person”, “Is It Really So Strange?” e (no único bis) “Shoplifters of the World, Unite”. Foi ótimo — especialmente para contrariar os bobalhões que pediam “I Know It’s Over” e coisas do tipo. A emoção de ouvir aquelas maravilhas, mesmo sendo de segunda mão, é algo que só quem cresceu ouvindo Smiths pode entender. Mas nem precisava. Tanto que o momento mais iluminado da noite foi a magistral versão de “Speedway”, a melhor música do melhor disco solo de Morrissey.
P.S. 1: Não, ele não está gordo.
P.S. 2: Não, ele não está careca.

10 — Ringleader of the Tormentors (2006)

Sete anos se passariam entre Maladjusted, o último disco que Morrissey lançaria no século 20, e seu retorno com You Are the Quarry, em 2004. De modo geral, os fãs e a crítica tendem a preferir YAtQ em lugar de RotT. Mas eu não. Foi muito bom reencontrar o cantor, ainda com a verve poética vigorosa e capaz de compor ótimas músicas como “Irish Blood, English Heart”, “The World Is Full of Crashing Bores” e “First of the Gang to Die”. Entretanto, para mim, o comeback só foi realmente concretizado com o lançamento deRingleader, a contrapartida mais melodramática e musicalmente mais rebuscada de YAtQ, que era soava mais direto. Nas letras, Morrissey parecia obcecado com a ideia de morte (“You Have Killed Me”, “In the Future When All’s Well”, “The Father who Must be Killed”). Em “On the Streets I Ran”, ele dá um dos mais memoráveis chiliques de sua carreira (“Dear God, take him, taker her, take anyone — the newborn, the stillborn, the infant, take anyone, take/ People from Pennsylvania, Pittsburgh but spare me”). Com “Dear God Please Help Me”, ele descrevia um encontro homossexual com riqueza de detalhes (algo que não passou despercebido pelos patrulheiros de plantão) ao som de um arranjo de cordas de Ennio Morricone. Já “I Will See You in Far-Off Places” e principalmente “Life is a Pigsty” davam seguimento às ousadias instrumentais que marcaram álbuns como Southpaw Grammar. Equilibrando punch roqueiro e melodias inspiradas, foi o melhor trabalho do homem desde Vauxhall and I. Belíssimo reencontro.

Ringleader of the Tormentors: Mesmo durante o auge do triunfante comeback de 2004, circulavam rumores de que You Are the Quarry nada mais era que um último hurrah, cuidadosamente planejado, antes de o cantor aposentar-se. (…) A reação a Ringleader foi tudo o que Morrissey poderia ter desejado. (…) Houve comentários na imprensa com termos como “gênio” e “a obra-prima” (…) e o disco estreou no topo da parada inglesa. (…) Sejam quais forem suas falhas, ao consolidar o comeback de Morrissey no século 21,Ringleader of the Tormentors foi um triunfo incontestável (páginas 354–357).

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)