TOP 20: OS MELHORES ÁLBUNS DO PÓS-PUNK BRASILEIRO

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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18 min readAug 15, 2017

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“(…) A vanguarda que veio a se tornar conhecida como pós-punk (…) enxergava 1977 não como um retorno a um rock’n’roll mais cru, e sim como uma chance de romper com a tradição. (…) Dedicaram-se a concretizar a revolução musical que o punk deixou incompleta, explorando novas possibilidades ao abraçar a eletrônica, o noise, o jazz, a avant-garde clássica e as técnicas de produção do dub reggae e da disco music. (…) O período (…) foi uma tentativa de resgatar virtualmente todos os principais temas e técnicas modernistas através da música pop. (…) O resultado de todo esse dissenso e discordância foi uma diversidade e uma fabulosa riqueza de sons e ideias que rivalizam com a década de 1960 como um período dourado para a música.” — Simon Reynolds, em Rip It Up and Start Again (tradução minha).

Punk todo mundo sabe o que é. Pós-punk, nem tanto. Múltipla, ambiciosa, futurista e ao mesmo tempo nostálgica, formalmente simples e conceitualmente complexa, foi a música que floresceu da carcaça do punk — uma irmã caçula mais inteligente e mais imprevisível. Ganhou significados e marcos históricos distintos no Reino Unido e nos Estados Unidos; e antes mesmo de ser compreendido, fragmentou-se em uma variedade de subgêneros (tecnopop, 2–tone, psychobilly, gótico, industrial, new romantic…). Sem mencionar sua filha bastarda, que poliu suas ousadias e as reempacotou para as massas: a new wave. Em suma, punk são os barulhos; pós-punk é o silêncio entre um barulho e outro.

Se lá fora foi um troço fugidio e complicado de definir, no Brasil então… O punk era mais fácil de entender. E de transformar em caricatura. Se o punk era o Bob Cuspe, o pós-punk era a soma de todo o resto da galeria de personagens do Chiclete com Banana. Na confusão conceitual que era o panorama pop brasileiro na primeira metade da década de 1980, o pós-punk foi relegado ao underground. Apenas os bem-informados (e bem dotados de $$$ para comprar elepês importados e revistas gringas) nas capitais do Sudeste-Sul e no Distrito Federal sacaram a evolução. No mainstream, a coisa já chegou diluída no que se convencionou chamar de niuéive. Nos porões, entretanto, tudo fervilhava.

São Paulo foi o ponto focal daquela geração, que se organizou em torno de casas noturnas como o Madame Satã e de gravadoras como a Baratos Afins e a Wop Bop. Um dos marcos iniciais foi o surgimento dos primeiros grupos paulistanos de tecnopop, o Agentss e o Azul 29, por volta de 1981/82. Na mesma época, em Brasília, a transição foi desbravada pela Legião Urbana e pela Plebe Rude. Enquanto alguns artistas oriundos da cena adaptavam a estética para garantir mais aceitação popular (RPM, Zero, Titãs), os grupos mais ousados continuaram à margem (ainda que alguns fossem cooptados por grandes gravadoras). Em quantidade e qualidade de lançamentos, os anos de 1987 e 1988 representaram o ápice do pós-punk nacional — 12 dos 20 discos citados na lista a seguir foram lançados no biênio. Foi uma fase curta mas muito intensa, uma criatividade e um sentimento coletivo de “agora vai!” que só se repetiria, guardadas as devidas proporções, com o manguebeat (assumidamente influenciado por vários dos grupos citados neste Top 20). O fracasso comercial de quase todos os grupos que chegaram a arranhar o mainstream acabou por sepultar as ambições daquela geração. As bandas se desfizeram; os discos sumiram, boa parte até hoje está fora de catálogo e nem chegou a ser lançada em CD. Mas os sons estão por aí…

20. O Strip-tease da Alma, Último Número (1987) — A cena pós-punk mineira não fez tanto buchicho quanto a paulistana. Mas gerou boas bandas, em especial as “co-irmãs” Último Número e Sexo Explícito, que compartilharam por algum tempo um membro crucial, o guitarrista John (é, o do Pato Fu). O UN fazia um som soturno, com a voz grave e marcante do vocalista Gato Jair conduzindo melodias sinuosas e letras que se nutriam da porção mais dramática da MPB. A excelente “Ars Longa Vita Brevis” chegou a ser um mini-hit na rádio Fluminense FM.
Ouça também: Combustível para o Fogo, Sexo Explícito (1988).

19. Rumores, Escola de Escândalos/Finis Africae/Detrito Federal/Elite Sofisticada (1985) Documento histórico da safra brasiliense imediatamente posterior à que revelou Legião, Plebe e Capital Inicial. A coletânea notabilizou-se por ter revelado o Escola, banda desmontada antes mesmo de gravar o LP de estreia e que (talvez por isso mesmo) tornou-se uma das mais cultuadas do período. Retomaram as atividades quase trinta anos depois. Depois de trocar de vocalista, o Finis Africae decolaria para vôos mais ambiciosos, detalhados a seguir. O Detrito Federal, o mais punk do quarteto, chegaria a ser contratado pela multinacional Polygram (tocaram até no Chacrinha!). O Elite, trocadilho óbvio com a Plebe Rude, ficou na poeira. Hoje, uma cópia da edição original de Rumores em vinil atinge preços superiores a R$ 200 nas boas lojas do ramo.
Ouça também: Arte no Escuro, Arte no Escuro (1988), único álbum da banda formada por ex-integrantes do Escola de Escândalo.

18. Não São Paulo Vol.1, Akira S & As Garotas que Erraram/Chance/Muzak/Ness (1985)— Outra coletânea importantíssima, esta voltada ao cenário de São Paulo. O destaque é o d̶u̶o̶ trio Chance, talvez o mais vanguardista daquele panorama. Suas duas músicas incluídas na coletânea apontam direções distintas. “Samba do Morro” injetava, de forma pioneira, brasilidade no pós-punk, preconizando as aventuras do Fellini. “O Striptease de Mme. X” era ainda mais ousada ao conectar eletrônica primitiva e experimentos tonais de piano e vocal em uma impactante não-canção. Seriam as duas únicas gravações lançadas pela encarnação original do grupo. O disco também apresentava o Akira S, punk-funk carregado pelos idiossincráticos vocais e ótimas letras de Alex Antunes e o baixão suingado de Akira. O power trio Muzak soava agressivo em “Ilha Urbana”, e mais climático em “Jovens Ateus”. Um tanto mais convencional, o Ness tinha até um certo apelo pop (confira “Adeus Buck Rogers”). O título da coletânea fazia referência a No New York, que juntava artistas da no wave novaiorquina.
Ouça também: Não São Paulo Vol.2, Gueto/Nau/365/Vultos (1987). O segundo volume da compilação ficou perdido no tempo; quando afinal a Baratos Afins conseguiu lançar o disco, Gueto, Nau e 365 já tinham lançado seus próprios LPs. Poucas músicas, como esta, são encontráveis na internet.

17. Voluntários da Pátria, Voluntários da Pátria (1984) — Oficialmente o primeiro álbum pós-punk brasileiro, na prática é um EP com 24 minutos de duração. Os VdP foram uma verdadeira Organização das Nações Unidas do underground paulistano. Por suas várias formações, passaram Nasi (Ira!), Guilherme Isnard (Zero), Thomas Pappon (Fellini e Smack), Edson X (Gueto), Maurício (Ultraje a Rigor)… A tabelinha entre o baixão de Gaspa, as guitarras de Frippi e Barella e a bateria de Thomas sintetiza um legítimo DNA do rock indie paulistano da época, que pode ser notado nas Mercenárias, no Fellini e no Smack. Hoje soa meio esquálido e com timbres datados, mas há várias passagens que evidenciam a inventividade dos músicos, como a instrumental “Nazi Über Alles” e a barulhenta “Um, Dois, Três, Eu Te Amo”. Havia algum potencial pop em “Meu Iô Iô”, “Cadê o Socialismo?” e “Verdades e Mentiras”.
Ouça também: Muzak, Muzak (1986), primeiro e único EP do trio que trafegava num universo sonoro bem próximo ao dos Voluntários.

16. Akira S & As Garotas que Erraram, Akira S & As Garotas que Erraram (1987) — O pós-punk recuperou, de maneira torta, as lições de suingue legadas pela black music que o antecedeu (e que tinham sido ignoradas pelo punk). Com isso, criou-se uma linha evolutiva que iniciava-se nos espasmos de Gang of Four, A Certain Ratio, Killing Joke, Pop Group e Liquid Liquid e desaguava na galera novaiorquina da DFA, já no século 21. No meio dessa linha está o AS&AGE, que lidou de modo exemplar com o paradoxo de fazer música cerebral que também falava aos quadris. Um efeito de estranhamento persiste em 2017 na conjunção entre os vocais declamados de P.Antunes, os malabarismos instrumentais de Akira, os engenhosos efeitos eletrônicos e a polirritmia acústica/eletrônica. Também foram pioneiros locais do sampling (executado de forma analógica, com fitas cassete). A peça de resistência, “Atropelamento e Fuga”, trazia uma memorável linha de baixo e uma letra que ainda faz muito sentido dentro do cotidiano de São Paulo (“Você dirige o automóvel / Mas eu dirijo seus tormentos / A minha lógica pedestre / Vai ser seu atropelamento / Eu serei o responsável / Irresponsabilizável”). Lá pelo meio, desintegrava-se num dubzão mutante e depois re-engrenava a marcha. Regravada pelo grupo Skowa & A Máfia, se transformaria num insólito sucesso radiofônico em 1989.
Ouça também: Fausto Fawcett & Os Robôs Efêmeros, Fausto Fawcett & Os Robôs Efêmeros (1987).

15. Fairy Tales, Harry (1988) O tecnopop e sua miríade de subgêneros também são filhos do pós-punk. A influência eletrônica sobre a geração de 1977 desdobrou-se em infindáveis permutações, e a banda santista Harry percorreu vários desses extremos em sua longa carreira (explanada nesta ótima entrevista). Depois de um EP de estreia gravado com a vocalista Denise, o grupo, já com o inefável Hansen como frontman, radicalizou no uso de synths e samplers, de uma forma intuitiva e pioneira. Fairy Tales era um disco sintonizado com o cenário eletrônico internacional da época e chamou a atenção em particular pela qualidade de sua produção. (Lembrem-se que, para muita gente, a referência em eletrônica nacional ainda eram as tecladeiras do Schiavon.) As dançantes “Genebra”, “Death” e “Lycanthropia”, a solene “Sky Will Be Grey”, a doce e naïve “You Have Gone Wrong” e a sufocante “Silent Telephone” sobrevivem bem a audições contemporâneas, ainda que alguns timbres e técnicas de produção soem meio datados. O Harry sobreviveu a idas, vindas e repaginações infindas nas décadas seguintes e ainda estava oficialmente em atividade quando da morte de Hansen, em abril de 2017.
Ouça também: Vessels Town, Harry (1990)

14. O Ápice, Vzyadoq Moe (1988) — Diz a lenda que, quando esteve por aqui em 1986, Siouxsie Sioux perguntou a um repórter da revista Bizz se não existia alguma banda brasileira de “psycho-samba”. A cantora ficou frustrada diante da resposta negativa. Siouxsie provavelmente aprovaria o VM, uma das mais singulares promessas (não concretizadas) de sua geração. Formado em Sorocaba, o quinteto apropriava-se dos ângulos retos e das síncopes típicas do pós-punk e regurgitava arranjos austeros que privilegiavam o ritmo; o baterista Marcos Stefani usava um kit heterodoxo, com chapas de metal e latas. Enquanto o baixista Edgard Steffen segurava as pontas de forma minimal, as guitarras apostavam na cacofonia e o vocalista Fausto Marthe botava as tripas pra fora em letras inescrutáveis, quase declamadas, sobre finitude carnal e outras questões transcendentais. Imagine agora que, além disso, os caras cismassem, de vez em quando, de meter uns sambões pós-industriais na mistura (as inesquecíveis “Não Há Morte” e “Redenção”). As inúmeras referências e viagens conceituais se fundiam em um som agressivo, primitivista. O disco de estreia, lançado pelo selo Wop Bop, é hoje um clássico subterrâneo. Mas muitos dos que viram a banda ao vivo na época sublinham que o álbum, produzido por Scot (do Chance), não captura o punch do VM. O som é embolado e lo-fi demais, e pouco se consegue entender o que Marthe canta. O Ápice seria o único LP lançado pela banda antes da dissolução, em 1993. Um disco póstumo, Hard Macumba, ainda sairia em 1999, mas ninguém soube, ninguém viu. Teriam sido vítimas de sua própria (e imensa) ambição/pretensão?
Ouça também: Esperar o Quê?, Virna Lisi (1992)

13. Corredor Polonês, Patife Band (1987) — Paulo Barnabé, líder da PB, tem linhagem. O irmão mais velho, Arrigo, é figura central na geração conhecida como vanguarda paulista. Formada por Paulo em 1983, a Patife buscava enxertar invencionices tais como dodecafonia e atonalismo à agressiva estética punk/pós-punk. Ou seria o contrário — buscava apunkalhar as ideias lançadas por Schoenberg e difundidas no Brasil por Koellreutter (e pelo próprio Arrigo)? Paradoxalmente, essa complexa base conceitual era filtrada em um som sem frescuras, que incorporava de modo “orgânico” andamentos tortos e métricas desconcertantes. A excelência dos instrumentistas contribuía significativamente com a mistureba. Corredor Polonês parece tanto um filho do pós-punk quanto precursor de estilos inexistentes em 1987, como o math-rock ou o post-hardcore. Entre uma porrada (a faixa-título) e outras (“Tô Tenso”, “Poema em Linha Reta”), vale a pena prestar atenção na canção que praticamente “inventou” a Graforreia Xilarmônica (“Teu Bem”) e na brejeirice sardônica de “Vida de Operário” (original dos Excomungados, depois re-regravada pelo Pato Fu).
Ouça também: Patife Band, Patife Band, primeiro EP indie lançado em 1985, hoje uma raridade.

12. Finis Africae, Finis Africae (1987) — Depois de participar da coletânea Rumores, trocar de vocalista e lançar um EP indie, o FA afinal teve uma chance no mainstream ao assinar com a major EMI (a mesma dos conterrâneos Legião e Plebe). Notadamente influenciados por sons black, o pós-punk praticado pelo quarteto era mais suingado que a média, no contraponto entre os baixões sinuosos de Neto Pavanelli e as guitarras discretas e eficazes de José “Zezinho” Flores. O segundo vocalista, Eduardo, exibia recursos muito mais amplos que os de Rodrigo, o cantor original; ia do tonitroante/teatral ao contido sem esforço. O primeiro álbum, homônimo, recupera três canções do EP (“Armadilha”, “Mentiras” e “Máquinas”, antes “Máquinas do Prazer”) em versões mais potentes, mas não se esgotava nos números antigos. “Deus Ateu”, “Vícios” e “Ask the Dust” destacavam a versatilidade de Eduardo e a inegável química entre os instrumentistas. Noutros momentos, exploravam os extremos da sutileza (“A Última do Lado A”) e do punch dramático (“Círculos”). Por um breve período em 1987, com “Armadilha” em boa rotação nas FMs e aparições no Cassino do Chacrinha, parecia que o Finis estava na rota para ser “a nova sensação do rock de Brasília”. Mas a EMI se decepcionou com as vendas do álbum (respeitáveis 50 mil cópias!) e abandonou a banda em plena preparação para o segundo LP. Resistiram até 1990 e voltaram à ativa nove anos depois. Seguem por aí até hoje, com Eduardo como único membro da formação clássica, fazendo bons shows; assisti a um deles há algumas semanas.
Ouça também: Finis Africae, Finis Africae (1986), o EP de estreia.

11. Legião Urbana, Legião Urbana (1985) — A trajetória da Legião é simbólica da (atrasada) passagem do punk ao pós. Formada por Renato Russo após a dissolução do Aborto Elétrico, a LU buscava conjugar influências como Smiths, U2, Joy Division e Gang of Four junto ao amor de Russo pelo classic rock (Beatles, Dylan). Isso gerou uma combinação de inesperada potência: arranjos que tateavam as arestas pós-punk emoldurando canções de inegável apelo popular (populista)? O primeiro single, “Será?” pendia mais para o lado pop, enquanto outras (“Soldados”, “A Dança”, “O Reggae”) ainda se aferravam aos códigos pós-punk. Para completar, encerravam o disco com um delicado synthpop, “Por Enquanto”. A partir do segundo álbum, a banda alcançaria picos cada vez altos de popularidade, abrandando a acidez dos primeiros anos para evidenciar seu lado mais delicado e lírico.
Ouça também: Cabeça Dinossauro, Titãs (1986), no qual o grupo paulista abandonava de vez as origens meta-bregas/vanguardistas e adotava referências pós-punk para chegar a um som agressivo (mas acessível).

10. Ao Vivo no Mosh, Smack (1985) O Smack era a “encruzilhada” do underground paulistano dos anos 80, na qual membros do Ira! (Scandurra), Mercenárias (Sandra) e Fellini/Voluntários da Pátria (Thomas) se encontravam. Ao ouvir o quarteto, completado pelo vocalista/guitarrista Pamps, pode-se identificar, como nos Voluntários, o “inconsciente coletivo” que unia as bandas daquela cena. Gravado “ao vivo” no estúdio, o primeiro álbum exibe um som urgente, no qual o instrumental — intrincado, mas direto e sem firulas — merece tanta atenção quanto os vocais e letras angustiados. Bordejavam o punk mais ortodoxo em “Fora Daqui” e “Clone”; quase chegavam ao power-pop em “Desespero Juvenil”; e lascavam punk-funk anfetaminado em “Onde Li?” e “Nº4”, contrabalançadas pelas sombrias “16 Horas e Pouco” e “Mediocridade Afinal”. Eterna favorita nos shows, “Faça umas Compras” trazia Edgard nos vocais e um dos melhores riffs de guitarra da década. Apesar de sempre ter sido relegado ao papel de “banda B” de três de seus quatro membros, o Smack ainda conseguiu gravar um segundo álbum antes de encerrar atividades. Ensaiaram voltas ocasionais já na década de 2000, até a morte de Pamps, em 2015.
Ouça também: Noite e Dia, Smack (1986)

9. Eu Sou o Rio, Black Future (1988) Num outro post deste site, eu teorizo sobre a incapacidade que o Rio de Janeiro tem de entender o pós-punk. Evidência número 1 dessa relação conturbada é a obscuridade à qual o Black Future sempre foi relegado. Claro que o duo Satanésio & Tantão também nunca facilitou as coisas. Nas letras, escarafunchavam misérias físicas e existenciais com uma veemência assustadora. No som, faziam questão de explorar o que havia de mais dissonante e ruidoso, negando perversamente qualquer sugestão com potencial radiofônico. Como se antevissem que não teriam uma segunda chance, ao gravarem seu primeiro disco por uma gravadora grande os dois não economizaram na infraestrutura. Chamaram Thomas Pappon para produzir e convocaram Edu K, Scandurra, Paulo Miklos, Alex Antunes e Ronaldo (Finis Africae), entre outros, para participações especiais. Em retrospecto, parece inacreditável que uma major (a BMG) tenha apostado em um disco tão radical. Em alguns poucos momentos — como no funk espasmódico de “No Nights” e na levada crispada de “Interrupção” — ainda havia concessão a formatos reconhecíveis. Mas na maior parte do tempo, o instrumental pantanoso (meio gótico, meio eletrônico, meio proto-industrial, meio nada-com-nada), as letras sombrias e o vocal declamado de Satanésio pareciam feitos de encomenda para assombrar o ouvinte médio. É daí que surgem números que até hoje soam espantosos, como “Piada”, “Sinfonia para um Morto” e “Teatro do Horror”: guitarras retorcidas, ritmos obsessivos, ruídos eletrônicos aleatórios, vocais no limite do desespero. Paira soberana sobre o caos “Eu Sou o Rio”, a canção, um samba-exaltação às avessas que celebra tudo de pior que a Cidade Maravilhosa tem a oferecer. Três décadas depois, sua letra continua horrivelmente atual.
Ouça também (se conseguir): Sanguinho Novo, vários artistas (1989). Esta coletânea em tributo a Arnaldo Baptista trazia vários luminares do pós-punk nacional. O Black Future participou… mas sua contribuição, a versão de “Ciborg”, acabou relegada apenas à edição em cassete. Fora as músicas de Eu Sou o Rio, trata-se do único outro registro “oficial” da banda em disco.

8. Cadê as Armas?, Mercenárias (1986) A estreia das Mercenárias em disco é curta e grossa — e também cheia de nuances inauditas. Mais agressivo dos grupos da cena indie paulistana, o quarteto disparava petardos contra o catolicismo (“Santa Igreja”), o comercialismo da indústria musical (“Sucesso”) e os desmandos da polícia (“Polícia”), além de questionar as confusões ideológicas reinantes no período imediatamente posterior ao fim da ditadura militar (“Inimigo”, “Pânico”). Alternadamente, podiam soar sutis e poéticas, como em “Amor Inimigo” e “Além Acima”. Como representantes 100% femininas em sua geração, levantaram por aqui uma bandeira importante do pós-punk: a igualdade/desconstrução de gêneros, que buscava liberar o rock da conformidade patriarcal setentista e provar que as mulheres também tinham espaço na cena.
Ouça também: Demo 1983, Mercenárias (1983)

7. A Mão de Mao, Metrô (1987) — Em Rip It Up and Start Again, o livro de onde saiu a citação que abre este post, o crítico Simon Reynolds teoriza que o pós-punk é tanto filho do punk quanto dos sons mais progressistas que uma geração anterior perseguia nos anos 1970. Bowie, Roxy Music, krautrock, o jazz-rock, o afrobeat, a disco music, o rock progressivo menos bitolado — tudo isso cabia no caleidoscópio de referências. É nessa linha evolutiva que se encaixa o surpreendente segundo álbum do Metrô. Depois de perderem a vocalista Virginie (e com ela, boa parte de seu apelo pop), os quatro músicos remanescentes convocaram o cantor português Pedro Parc e mandaram às favas o popinho níueive de hits como “Beat Acelerado” e “Johnny Love”. A nova formação buscava soluções instrumentais inusitadas, intrincadas melodias vocais e referências psicodélicas/progressivas, com letras que trocavam as narrativas românticas por imagens oníricas, não raro surreais. Mesmo com a variação de climas entre as faixas, o álbum soa coeso: uma viagem que se inicia com o rock pesado da música-título, passa pelo minimalismo desconcertante de “Atlântico, 07 de Novembro” e pelo balanço lúdico de “Ahnimais”, para desaguar no paroxismo lírico de “Lágrimas Imóveis”. O disco não fez sucesso, a banda se desmobilizaria em menos de dois anos e voltaria (com Virginie) na década de 2000, surfando o interminável revival oitentista.
Ouça também: Pequena Fábula, Mler Ife Dada (2003), compilação da banda portuguesa que revelou Pedro Parc.

6. Trashland, Mercenárias (1988)O segundo disco da banda formada por Sandra, Rosália, Lou e Ana expandia, tanto em som quanto em poesia, os limites traçados no álbum de estreia. Sim, podiam soar tão cruas quanto antes (“Ação na Cidade”, “Trashland”, “Há Dez Anos Passados”) mas, na maior parte do tempo, preferiam pisar no freio e apostar em soluções menos óbvias. A saltitante “Tempo sem História”, a introspectiva “Lembranças”, o dançante instrumental “Matinê” e o delicado arranjo de “Mesmas Leis” eram a prova. Com uma produção bem mais esmerada que no primeiro disco, assinada por E.Scandurra e T.Pappon, Trashland mostrava, afinal, todo o potencial da banda… que, mais uma vez, foi desperdiçado quando a EMI lançou o álbum de qualquer jeito e demitiu as garotas sem cerimônia, pouco tempo depois. Após um longo hiato e algumas tentativas de retorno, retomaram a carreira de forma estável a partir de 2012.
Ouça também: registros do projeto solo que a baixista (e atual vocalista) Sandra tocou na década passada estão no YouTube, sob o codinome TheSandraCoutinho.

5. Supercarioca, Picassos Falsos (1988) Em 1987, essa banda carioca alcançaria as paradas de sucesso nacionais com um dos mais improváveis hits radiofônicos da década: “Carne e Osso”. As expectativas estavam em alta para o segundo disco. Depois de trocar de baixista, o quarteto construiu um complexo arcabouço conceitual para sua nova safra. Ao pós-punk com forte influência da música negra ouvido no primeiro LP, os PF juntaram referências de samba/MPB e um acentuado pendor pelo classic rock. Usaram essa base sonora para criar canções que, de forma esparsa mas ainda reconhecível, uniam-se em um retrato dos aspectos meio sombrios da vida no Rio de Janeiro: a carnavalização da pobreza, as chuvas que levam favelas ao chão, a violência urbana. Ambicioso, né? Pois a banda deu conta dessa ambição toda com uma série de canções inesquecíveis, costurando pontos de candomblé (“Retinas”), riffs hendrixianos (“Bolero”), samba gótico (“Marlene”), flamenco (“Fevereiro”) e levadas sessentistas (“O Homem que Não Vendeu sua Alma”). Estrategicamente, colocaram as duas músicas-chave para o álbum — o samba “Rio de Janeiro” e o rockão “Supercarioca” — fechando o trabalho e desvelando a narrativa sugerida nas faixas anteriores. Toda essa exuberância foi recompensada com o desprezo do grande público. Sem hits radiofônicos, o disco foi engavetado pela BMG (que até hoje não o lançou em CD) e em breve a banda se dispersaria — começaram a perceber um padrão? Em 2003, o grupo retornou. Em 2017, lançou seu quarto álbum, Nem Tudo se Pode Ver.
Ouça também: Picassos Falsos, Picassos Falsos (1987).

4. Fellini Só Vive 2 Vezes, Fellini (1986) O VERDADEIRO disco pós-punk do Fellini é o primeiro. Entretanto, foi no segundo LP que a personalidade (e a originalidade) da banda afinal desabrocharam de forma plena. Ao enfiar pela primeira vez elementos de samba em “Mãe dos Gatos”, “Tabu” e “Domingo de Páscoa”, Thomas Pappon e Cadão Volpato cruzavam a ponte entre o pós-punk paulistano dos anos 1980 e o tropicalismo dos anos 1960/70, com resultados interessantíssimos. Por outro lado, sonoridades mais convencionais eram retrabalhadas de modo inventivo em momentos como “Burros e Oceanos” e “Tudo Sobre Você”. A poesia de Volpato, mais viajante e mais romântica que no primeiro disco, e a sonoridade lo-fi (é uma gravação caseira, feita com um homestudio de quatro canais) também são decisivos na constituição do charme peculiar do disco.
Ouça também: O Adeus de Fellini, Fellini (1985).

3. 3 Lugares Diferentes, Fellini (1987) — Progressão natural da direção tomada em …Só Vive 2 Vezes, o terceiro álbum traz as melhores canções da banda, incluindo os (cof, cof) hits “Teu Inglês”, “Zum Zum Zum Zazoeira” e “Rio-Bahia” e outras belezas como “Lavorare Stanca”, “Ambos Mundos” e “Massacres da Coletivização”. As influências emepebísticas soavam ainda mais naturais; a adição dos teclados de Ricardo Salvagni e da percussão de Silvano Michelino enriqueceu a sonoridade de forma sutil, dando um tom mais orgânico às safadas batidinhas eletrônicas em ritmo de samba. O LP tornou-se notável ao empatar em 1º lugar com Jesus não Tem Dentes no País dos Banguelas, dos Titãs, na votação dos melhores discos do ano segundo a revista Bizz. (Segundo consta, o Fellini deveria ter ganhado a eleição, mas como a banda era bróder de toda a redação, os editores acharam que iria pegar mal e manipularam o resultado para gerar o empate.) Ao adotar uma produção mais “profissional” no disco seguinte, Amor Louco, o grupo acabaria por perder um tanto de seu apelo excêntrico.
Ouça também: Amor Louco, Fellini (1990).

  1. DeFalla (1987)/ DeFalla (1988), DeFalla — O grupo gaúcho liderado por Edu K foi o que melhor explorou os limites da (con)fusão musical apresentada pelo pós-punk. É impossível, ao menos para mim, discernir qual dos dois primeiros álbuns da banda é o melhor. Devem ser apreciados em conjunto, como amostras das possibilidades mais extremas de uma estética que, infelizmente, não deixou herdeiros diretos. Posicionado a principio entre o punk e o gótico, ao chegar ao disco de estreia o quarteto havia evoluído para uma mistureba com elementos de hard rock, hip hop, hardcore e punk-funk, combinados de maneira aparentemente caótica mas ancorados em torno de um suingue herdado da black music. Era, afinal, a realização da “revolução musical que o punk deixou incompleta” e da “tentativa de resgatar temas e técnicas modernistas”, em versão brasileira. Soltos no estúdio, contaram com o apoio do produtor Reinaldo “Barriga” Brito para concretizar suas “ideias primais” (título de uma das músicas da estreia). Como armas secretas, a performance de Edu — um dos maiores vocalistas do rock nacional, desde sempre — e, na bateria, uma pequena locomotiva chamada Biba Meira. DeFalla, o primeiro disco (também conhecido como Papaparty), soava abrasivo como poucos. Punk-funks descaralhados (“Melô do Rust James”, “Papaparty”, “Ideias Primais”, “Tinha um Guarda na Porta”) dividiam espaço com o balanço paquidérmico de “Sodomia”, “Alguma Coisa” e “Ferida”, a ferocidade de “Não me Mande Flores” e a velocidade agressiva de “Trashman” e “I Am an Universe”. O disco também traz uma das gravações pioneiras do rap brasileiro, ainda que cantada em inglês: “Jo Jo”.

Para o segundo álbum, também sem título mas conhecido entre os fãs como It’s Fuckin’ Borin’ to Death, a banda fechou (um pouquinho) o foco. Privilegiou o groove e aumentou a presença do hip hop e do rap, sem descuidar do peso. O resultado é mais coeso que no primeiro álbum, preservando a intensidade. Ousadas versões de “Como Vovó Já Dizia” (Raul Seixas) e “Revolution” (dos Beatles, não creditada!) traziam experimentos com loops e samples. “Repelente”, “Kiss the Chainsaw”, “36 Donald Dicks” e “I Have to Sing a Song” eram funk-metal sintonizados com o que já se fazia no exterior na mesma onda, enquanto “Satã (É Coisa do Demo)” era funkão 100% de raiz, com slaps de baixo e uivos jamesbrownianos. Como tentativa explícita de fazer algo parecido com uma canção pop, ainda lascaram “It’s Fuckin’ Borin’ to Death”, um clássico que nunca deixou o repertório dos shows da banda e que até foi reescrito/regravado para o quinto disco da banda, Kingzobullshitbackinfulleffect92. Mas essa é uma história para outro post…

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)