VENCEU, PLAYBOY: O SURGIMENTO DA PLAYBOYCRACIA.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
5 min readAug 7, 2019
A vibe é essa. Nóis na fita, os playboy no DVD.

PLAYBOYCRACIA (plei-bói-cra-ci-a). S.f. Forma de governo em que a soberania é exercida pelos e para os playboys.

Todo mundo conhece um playboy. Todo mundo tem um amigo, um irmão, um primo, um pai, um tio, um colega de trabalho que é playboy. Muitas vezes, mais de um. Se você não tem, lamento informar, mas provavelmente o playboy é você.

Por “playboy”, não me refiro à clássica figura do bon vivant da alta sociedade, pullover cuidadosa & casualmente atirado por sobre os ombros, mocassins estilo dockside (sem meias), pronto para o brunch na pérgula do Copa. O verdadeiro playboy brasileiro não se define por sua classe social, sua conta no banco ou pelos ambientes sofisticados nos quais circula. Claro que há playboys no Leblon e nos Jardins — muitos, aliás. Mas eles também podem ser encontrados nos bairros de classe média, nos grotões rurais, nas favelas, nos subúrbios, nas quebradas.

Sorry, Jorginho.

A playboyzice é um estilo de vida, um modo de enxergar o mundo. Tanto faz se o cara está a bordo de um carro importado ou de um trem da Supervia. Onde quer que estejam, seus adeptos partilham de uma crença inabalável: a convicção de que o resto da humanidade está na Terra para servi-los. Parafraseando os imortais versos de Morrissey, o mundo é deles e a eles, o mundo deve tudo; a vida é apenas tomar, e não retribuir. [PLAYBOYZICE (plei-bói-zi-sse). S.f. Qualidade (?!) ou atributos de quem é playboy.]

Um playboy brasileiro típico é folgado, individualista, mimado, imaturo, marrento, espaçoso, preguiçoso, inconsequente. Não raro, é um troll e/ou pratica bullying. Tem especial apreço pelo consumismo e pela exibição de determinadas posses materiais que servem para anabolizar sua autoestima e compensar suas inseguranças. Desconhece a noção de respeito às outras pessoas; na verdade, ele só enxerga os outros a partir do que eles têm a lhe oferecer, ou como obstáculos a serem afastados. Ele se orgulha em exercer esse comportamento 24/7 no trabalho, ao volante, no transporte público, no bar, na escola, entre a família e com os amigos.

O playboy tupiniquim é cria tanto da Lei de Gerson quanto do déficit civilizatório que caracteriza desde sempre nossa sociedade. Em sua concepção de mundo, ele tem o direito de levar o jeitinho brasileiro às raias da sociopatia, sem se importar se vai atrapalhar a vida dos outros. É essa atitude que leva o playboy pobre a sentar-se de pernas abertas no ônibus. É a mesma atitude que leva o playboy rico, a bordo de um carro de R$ 500 mil, a atropelar uma pessoa e fugir sem prestar socorro. Para o playboy, o problema nunca é dele, é sempre dos outros. O privado é dele, e não será dividido com ninguém; o público também é dele, para seu usufruto. Todo playboy, conscientemente ou não, é um patrimonialista.

Um veio de Maranello, o outro de São Bernardo do Campo. Ambos estão estacionados sobre vagas exclusivas para deficientes físicos.

A violência tão entranhada na nossa formação também é um traço definidor dos playboys nativos, assim como a fixação em artes marciais, armas de fogo e outros complementos bélicos. Vale ponto extra se o ato violento for completamente aleatório, sem sentido e inconsequente. Tacar fogo em índio dormindo na rua é coisa de playboy; justificar-se dizendo que “achava que era só um mendigo” é a inevitável cereja no topo, o píncaro absoluto da playboyzice.

Se ainda não deu para perceber, cabe observar que a playboyzice é um estilo de vida intrinsecamente reacionário. A ausência de empatia, a incompreensão do sentido de coletividade, o desrespeito à noção de espaço público, o descumprimento dos deveres básicos da vida em sociedade, tudo isso está na base do pensamento reaça. O individualismo radical do playboy e sua crença na própria superioridade se confundem com a empáfia e a cagação de regra típicas do cidadão-de-bem. A diferença é que o cidadão-de-bem acredita merecer uma recompensa (se não material, ao menos moral) por seu conformismo e sua adesão automática ao senso comum; o playboy acha que merece uma recompensa apenas porque… porque alguém disse isso pra ele, em algum momento, e ele acreditou.

Com o resultado da eleição presidencial de 2018, instaurou-se de vez a playboycracia no país. Não que inexistam playboys (que dizem ser) de esquerda. Mas é preciso priorizar as prioridades. Antes de mais nada, todo playboy quer ter o direito de cometer infrações de trânsito sem se preocupar em levar multas ou perder a CNH. Ou o direito de sonegar impostos e ainda achar que merece um tratamento preferencial por parte do fisco. Ou o direito de possuir e portar armas, uma obsessão longeva e particular da casta.

A retórica bolsonarista obviamente fascina os playboys, ao sinalizar uma reconstrução social que esquece do direito coletivo e privilegia o individual. Mas não qualquer indivíduo, apenas aqueles que merecem. E quem merece mais do que a nossa própria família? Bolsonaro criou três playboys de almanaque — desde o berço pendurados em mordomias estatais e imersos na cultura típica do macho alfa tropical. Por uma catastrófica confluência de fatores históricos, sociais, políticos e tecnológicos (e uma facada), papai Jair agora está sentado no Planalto. E ele não esconde de ninguém que continuará a mimar sua trinca de playboys. Afinal, o Brasil é deles, sempre foi. Nós, os não-playboys, só vivemos nele.

Nas favelas, no Senado, no Amazonas, no Araguaia, na Baixada etc.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)