VERBOS ALTAMENTE IRREGULARES (à moda das redes sociais)

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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3 min readOct 25, 2020

Millôr Fernandes é um dos meus santos padroeiros pessoais, e seu livro Trinta Anos de Mim Mesmo (1972) é a escritura sagrada da minha fé nele. Descobri o livro ainda na pré-adolescência; li e reli tantas vezes que decorei várias seções. Há pouco, lembrei dos “verbos altamente irregulares”, brincadeira escrita em 1948 baseada em uma tirada de Bertrand Russell. Basicamente, era uma demonstração (encharcada de ironia) da tendência que temos de relevar nossos próprios defeitos, ao mesmo tempo que criticamos as falhas alheias com agudeza — e quanto mais distante de nós o criticado, mais agudas são as críticas.

Peguei-me imaginando como seriam os “verbos altamente irregulares” conjugados em tempos de redes sociais. Será que Millôr se adaptaria aos tempos correntes?

Eu analiso justa e ponderadamente; tu atacas sem muito critério; ele cancela.

Eu opino sobre tudo o que é importante; tu deixas a ideologia influenciar teus comentários; ele pratica a indignação seletiva.

Eu uso bom senso e civilidade; tu permites que a emoção te domine; ele crê que liberdade de expressão é passe livre para ofender.

Eu só me manifesto com propriedade; tu não resistes a um debate; ele confunde discussão com trollagem.

Eu apreendo todo o contexto e suas particularidades; tu tomas a parte pelo todo, eventualmente; ele se fixa apenas nos detalhes que corroboram suas crenças.

Eu me atenho apenas às ideias; tu te importas mais com quem diz e menos com o que é dito; ele argumenta na base do ad hominem.

Eu aceito as generalizações razoáveis; tu entendes o princípio da coisa, mas ainda sentes a ofensa; ele posta “Nem todo homem…”

Eu fundamento minhas postagens com dados e fatos; tu buscas opiniões favoráveis; ele espalha propaganda e fake news.

Eu concateno o argumento com lucidez; tu vacilas, tergiversas e regateias, mas prova teu ponto; ele é um lacrador insensato.

Eu busco entender o que o outro escreveu, e nada mais; tu interpretas a postagem a partir de tuas convicções; ele lê uma coisa, entende outra e retruca uma terceira.

Eu sempre clico no link; tu eventualmente repassas sem ler, a depender do teor do conteúdo; ele sequer lê a manchete antes de retuitar.

Eu assino jornais, newsletters e podcasts; tu apelas ao Outline; ele se contenta com o que vê no Whatsapp.

Eu mantenho o isolamento social de forma estrita; tu dás tuas saidinhas, mas mantém a discrição; ele faz live no Instagram, direto do churrasco na laje com videokê.

Eu votei em 2018 de acordo com minha consciência; tu encaraste uma escolha difícil; ele usa o olho lacrimejando sobre a bandeira do Brasil como foto do avatar.

Eu discurso com base na experiência; tu criticas preventivamente; ele é preconceituoso e ponto final.

Eu sou isento; tu és isentão; ele é um comuno-marxista-fascista de extremaesquerdireita.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)