“É, é pra ajudar vocês.”

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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7 min readMay 31, 2019
Notaram que esta versão da tirinha não tem as chamas?

Você é capaz de apontar um único momento, uma experiência específica que tenha provocado uma mudança definitiva no seu modo de entender o mundo?

Eu vivi uma experiência dessas — um desses momentos de mudança de paradigma — no já distante ano de 1996. E essa conversa toda de cortar recursos destinados ao censo do IBGE me fez lembrar que o Instituto teve uma participação crucial na história toda. Naquele ano, eu, formado há pouco e ainda incapaz de me sustentar como jornalista, fiz prova para uma vaga temporária de pesquisador no IBGE. Era para atuar na primeira contagem populacional empreendida pelo órgão: uma espécie de “censo light”, com uma coleta menos detalhada de dados. Mesmo sem ter estudado muito, passei.

Após duas semanas de treinamento, me entregaram um mapa com cerca de 900 domicílios da minha cidade natal, São Gonçalo (RJ), os quais eu deveria visitar para obter informações sobre quantidade de moradores, renda familiar, nível de escolaridade e outras poucas minúcias. Minha área ficava no bairro da Boa Vista, a cerca de quatro quilômetros do bairro onde eu morava em SG. Em 2014, a micrroregião que incluía o bairro da Boa Vista ostentava o 26º lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (entre 32 microrregiões citadas) de São Gonçalo. Não tenho ideia de qual seria a posição da localidade em 1996, mas imagino que deveria ser ainda mais baixa.

Como a Boa Vista está hoje, não sei dizer. Acredito que a situação econômica da área tenha melhorado com a chegada do São Gonçalo Shopping, inaugurado em 2004. Em 1996, o cenário era parecido com o de outros bairros de São Gonçalo que costumam aparecer no quadro RJ Móvel, do telejornal RJ1 (Rede Globo). Ruas sem calçamento, valões com esgoto correndo, porcos (!) correndo junto a crianças descalças, pequenas montanhas de lixo abandonadas nas calçadas. Como cria de SG, aquilo tudo não era exatamente um ambiente novo para mim. À medida em que eu me embrenhava pelas entranhas (me entranhava pelas embrenhas?) do bairro, porém, a miséria e o abandono generalizado se intensificavam, de um modo que eu, até então, nunca havia testemunhado.

Vejam bem. Não sou um rapaz criado a leite com pera & ovomaltino. Cresci em um bairro de classe média baixa, filho de uma família de classe média baixa. Eu já sabia o que era pobreza e já sabia que havia, ali mesmo em São Gonçalo, famílias mais na merda que a minha. Mas quando você se depara com a coisa ao vivo, te olhando no olho, o impacto é outro. Munido de minha prancheta do IBGE, vi cenas no bairro da Boa Vista comparáveis àquelas mostradas em reportagens sobre a seca no sertão do Nordeste. Só que ali, em uma cidade grande, quase colada na capital do segundo estado mais rico da Federação. Ali, a poucos quilômetros da minha própria casa.

Certa tarde, bati à porta de uma casa caindo aos pedaços em uma ruazinha quase à beira da rodovia BR-101. Uma dona de casa com dois filhos pequenos me atendeu. Ela era analfabeta funcional. O marido, pedreiro. A mulher não soube estimar a renda mensal familiar, ou precisar o nível de escolaridade do companheiro. Os garotos não estudavam. Disfarcei mal o choque que senti quando ela disse sua idade: aos 25, a mulher aparentava ter uns 20 anos a mais. As crianças estavam peladas, sujas. Enquanto eu preenchia o questionário, o garoto mais velho me observava com muita atenção. Afinal, ele conseguiu perguntar: “Moço, isso é pra ajudar?” (O “isso”, naturalmente, eram as informações que eu solicitava. Ou a minha simples presença ali.) Fiquei (mais) atordoado por um segundo, mas consegui balançar a cabeça. “É, é pra ajudar vocês”, balbuciei. Menti?

Não sei qual terá sido o destino daquela mulher e seus dois filhos, não me lembro de seus nomes. Não sei se os dados levantados por aquela contagem do IBGE realmente foram usados para ajuda-los. Mas o encontro com aquela família nunca mais deixou minha memória. Meu modo de ver o mundo mudou naquela tarde. O mundo, e sua enorme desigualdade — de recursos, de oportunidade, de atenção do poder público.

Nada substitui a experiência. Para aceitarem a viabilidade de numa ideia, as pessoas precisam, antes de mais nada, testemunhar aquela ideia em funcionamento, compreender seus efeitos práticos e as consequências de sua execução. Em suma: as pessoas só acreditam naquilo que elas já viram que funciona (e tendem a rejeitar aquilo que elas viram que não funciona). Uma convicção baseada na experiência pessoal é praticamente inabalável; o sujeito pode ouvir os argumentos contrários, reconhecer a lógica deles e entender o ponto de vista alheio, mas não vai mudar de ideia, porque ele já viu sua convicção posta em prática, já experimentou seus efeitos, já testemunhou a realização de seu potencial.

Até aí, tudo bem. O problema é quando esse mesmo sujeito passa a acreditar que as convicções dele são aplicáveis a todo o resto do mundo — baseado unicamente em suas experiências pessoais. Somos todos diferentes uns dos outros. Reconhecer isso é a base para qualquer pensamento progressista: a aceitação da diversidade, da possibilidade de caminhos diferentes daqueles que traçamos, o reconhecimento de que todos temos origens, passados, formações, famílias, aprendizados, heranças (culturais ou concretas) diferentes e que isso influi no que somos no presente e no que seremos no futuro. E isso abrange a noção de que pessoas que trilharam caminhos diferentes dos nossos podem ter necessidades diferentes das nossas.

Os dois primeiros parágrafos de O Grande Gatsby: meu credo pessoal.

O pensamento reacionário prega o inverso: prega que é possível determinar um estilo de vida “correto” que deve ser aplicado indiscriminadamente a todas as pessoas, ignorando as tantas diferenças que formam a individualidade de cada um. Quem não se adaptar, seja por falta de oportunidade, de sorte, de vontade, de aptidão ou sei lá do quê, não merece participar da sociedade. Não pode ser considerado um “cidadão de bem”. (Desnecessário tentar definir o que seria um “cidadão de bem”; basta prestar atenção ao comportamento e aos valores defendidos pelas pessoas que costumam usar essa expressão com uma conotação positiva.)

Uma visão reacionária aplicada à formulação e à implementação de políticas públicas redundará, necessariamente, em uma relação entre o estado e a sociedade que mantenha (ou restaure) um status quo favorável aos “cidadãos de bem”, e só a eles. No caso de um governo reacionário de direita, como o eleito em outubro último, veremos a revisão do papel do estado, de suas prioridades em relação à população e de suas responsabilidades sobre a mesma, de modo a resgatar um idílico passado no qual o governo não se metia na vida do cidadão (de bem). Uma época — imaginária, é bom ressaltar — em que os bons prosperavam por seu próprio esforço, em que não eram necessárias reivindicações por mais direitos ou questionamentos sobre desigualdades, racismo, machismo, homofobia, misoginia. Uma época para botar um “ponto final em todos os ativismos.”

Na prática, isso vai implicar em cortes em programas sociais, extinção de direitos trabalhistas, menos investimento em saúde e educação públicas, acirramento da violência policial, fim do apoio a políticas afirmativas e pró-diversidade. O recado é claro: o estado vai servir apenas a um determinado tipo de cidadão. Quem não se enquadrar no perfil, bem… ame-o ou deixe-o?

Agora — e é este o meu ponto — os homens que estão no poder preparando a chegada dessas mudanças trabalham a partir de suas próprias convicções pessoais, baseadas em sua experiência pessoal. Para eles, nunca foi necessário reivindicar direitos, pois o mundo no qual eles nasceram e prosperaram já atendia a suas necessidades. Eles nunca precisaram de escolas públicas, cotas raciais/sociais ou FIES. Eles nunca precisaram ir a um posto de saúde ou a um hospital público. Eles nunca tiveram o carro metralhado por engano em uma blitz, nunca precisaram engolir em seco diante de demonstrações de racismo ou machismo, nunca precisaram de Bolsa Família ou de Benefício de Prestação Continuada (BPC). Como esses homens nunca precisaram dessas e de outras tantas coisas, para eles essas coisas são dispensáveis.

É por isso que vemos tantos homens desqualificando o feminismo, tantos brancos minimizando o racismo, tantos ricos & remediados dando de ombros diante da desigualdade social. Não os afeta, eles nunca experimentaram esses e outros problemas, então sequer acreditam que sejam problemas reais. E eles pensam e agem com a convicção de estarem certos, pois afinal para eles o mundo funcionou muito bem até agora — por que não funcionaria para os outros? O problema deve ser com eles, não com o mundo. Este é o sentimento que moveu boa parte do eleitorado responsável pelo atual governo: chega de mimimi, chega de paternalismo, o lance é a meritocracia, quem anda na linha prospera, o cidadão de bem não tem que carregar os incompetentes nas costas.

No entanto — e este é meu segundo ponto — reafirmo: somos todos diferentes, chegamos ao presente por meio de origens e passados diferentes. A ~meritocracia~, o cada-um-por-si, o estado mínimo e a “mão invisível” podem dar certo para quem teve o simples (não queria usar esta palavra, mas…) privilégio de nascer no lugar certo, com o tom de pele certo, com os parentes certos. Para outras pessoas — para muita gente — uma Bolsa Família ou um BPC, por mais irrisórios que pareçam ser os valores, é o que dá certo. Uma escola pública, uma creche municipal, um programa de cotas, um posto de saúde, uma universidade federal fazem a diferença. Se você nunca precisou dessas coisas, parabéns. Outras pessoas precisam. Se você nunca sofreu com machismo, misoginia, demofobia, racismo ou qualquer outro tipo de preconceito e/ou desvantagem estrutural, parabéns. Outras pessoas sofrem.

Quem não experimenta a pobreza — quem sequer a vê de perto, como eu vi naquela tarde de 1996 — nunca vai entender. Não de verdade.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)