Tem Um Cara Aqui Em Casa- Parte 10

Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa
5 min readSep 23, 2022

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- O cluuuube do Bolinha orgulhosamente apresentaaaa….

Isso ecoava nas tardes de sábado lá em casa, e em tantos outros milhares de lares do País.

A quem não saiba do que se trata, explico: era um programa de auditório apresentado por Edson Cury (o Bolinha), um senhor de aparência Mediterrânea, que ostentava grossas costeletas, camisa larga e estampada, folgadamente aberta a partir do antepenúltimo botão. Concluindo meticulosamente o outfit, anéis e correntes douradas e espalhafatosas.

Visual comum ainda naqueles idos anos oitenta, por mais que o programa tenha começado nos anos setenta, tudo em sua estética ornava com o figurino de seu apresentador.

O que pode não ornar ou fazer sentido a qualquer jovem de hoje, é explicar que suas atrações musicais eram compostas por convidados que iam de Trio Los Angeles (que, à sua maneira, propunha “discretamente” um menáge à trois à tradicional família brasileira) à Patotinhas, Balão Mágico e outras atrações infantis. Tudo isso acompanhado por um corpo de balé composto por moças trajando maiôs estrategicamente cavados, e dançando todos os hits ali interpretados, quase sempre cada uma por si. Lembrando que essa mistura acontecia às tardes de sábado, na TV aberta.

Das dançarinas, eu me lembro até hoje de uma que todos achavam que era muito séria e que visivelmente estava ali única e exclusivamente para pagar suas contas. Era a “Bolete que não sorria”. Anos depois, descobri que a moça tinha uma espécie de paralisia facial que lhe impedia de ter qualquer tipo de expressão.
Embora ela roubasse a cena, não era sobre essa Bolete que meu amigo Trajano Uptabi queria falar.

Parte de seu povo se retirara de seu habitat há cinquenta anos quando, ao extremo norte do Mato Grosso, começava uma desenfreada corrida pela fortuna gerada em torno do agronegócio, sob a promessa de terem terras e proteção ao sul do país.
Grande parte dos habitantes de seu povoado simplesmente desapareceu dali, dentre eles, aquela que seria sua parceira, quando chegasse a idade.

- Eu peregrino todo esse tempo em busca de notícias dela e de seus parentes, parte do meu povo. Andei um bom tempo com você, na esperança de que algum momento vocês fossem se encontrar e eu pudesse tentar alguma maneira de me comunicar com ela.
Pois pouco tempo antes de minha partida de seu mundo, soube que ela havia sobrevivido e trabalhava no meio artístico.

Sim, quem acaba de me dizer isso é Trajano, meu novo amigo. Descobri que era ele o índio que eu via desde minha infância e que lá pelos meus vinte poucos anos, simplesmente desapareceu, acreditem ou não. Continuo o assunto:

- Então, foi por isso? Sabe, eu me sentia verdadeiramente protegido por sua presença. Algumas coisas saíram muito dos trilhos depois desse seu sumiço. Me conforta muito saber disso agora, mas se permite a pergunta e comparação possivelmente errada….Que mal fiz para meu índio da guarda desistir de mim, rs?

Rindo alto, Trajano me responde:

- Ahahahahah você, sempre piadista e espirituoso, gosto disso em você! Mas, não foi por sua “culpa”. Aliás esse termo é uma autocensura muito mal implantada dos brancos. Mas, sobre isso, te explico: eu precisava encontrá-la para dar seguimento a minha jornada, pois mesmo partindo e cuidando de você, era preciso dar andamento à minha evolução à maneira como nossa mãe nos dita. Tanto que agora, veja só como nos cruzamos de novo, aqui!
E é através de você que vou conseguir reencontrá-la, para seguirmos.

- CaraL… ops, perdão, nada de palavrão diante da divindade…

- Shhhhh, isso é força de expressão! Fica tranquilo!

- Ah, bom, ufa! Pois então, comé’ que vou te ajudar nisso? Eu ainda não tô sacando como faz os teletransporte’ e mesmo que soubesse…a gente poderia correr risco num estúdio de gravação da Band nos anos 80, brotando do nada lá.
Fora que ia ser no mínimo peculiar essa versão de De Volta Para O Futuro tupiniquim.

- Ahhhh velho Xico, é agora que começaremos de verdade sua viagem por aqui. Nada é à toa e nem vai ser moleza.

Nesse momento, Estones chega entrando no assunto como se tivesse ali desde o começo do papo.

- A gente vai precisar encontrar uma maneira de entrar lá como convidados. Pensei em você compor algo para o Trajano cantar lá, consegue Hiltin’?

- Bom, a princípio a conversa era que eu estaria aqui pra me inspirar, e tentar evitar que aquele povo dodói transforme Sonhos em Pesadelos, não?A coisa fugiu um pouco do senso, mas acredito que uma hora se encaixe.
E, se a história do meu Índio Da Guarda não me inspirar… rapá! Posso procurar uma vaga de contínuo em um escritório de contabilidade quando acordar.
Mas, agora a pergunta é: comé que vamos voltar ou, sei lá, ir pra lá?

- Você poderia arriscar o teletransporte se não fosse substancial pra essa ação. Sendo assim, vamos da maneira que se locomovem quando despertados e como você veio pra cá. Vamos no carro dos hippies.

- Tá bom companheiro Estones, mas quanto tempo isso? Bicho…vão pensar que eu tô em coma!

- Aí Trajano, mostra pra ele há quanto tempo tá dormindo!

- Ahahahahahaha!

Riu e estendendo sua palma da mão em minha face novamente, meu guardião:

- Vinte minutos, Velho Xico! O tempo daqui, não é o de lá!

- Bom, bora então. Conseguem um violãozinho pra eu ir compondo no caminho?

Do nada, Estones me saca um Gibson J200 (Violão imortalizado por Elvis Presley). Olha, tô começando achar que seria um bom negócio não acordar mais, rs.
Mas, lá fomos nós pro Celtinha psicodélico dos amigos hippies, mal me acomodei no banco traseiro com o violão e a melodia foi saindo em forma de assovio, que logo deu lugar a primeira frase:

Sonhei com ela nesse tempo…

Trajano, sentado no banco do passageiro emendou:

Senti, de longe sussurrar…

Estones, entrando na brincadeira mandou:

O vento que agia em seus cabelos…

Assim, quase que em um formato jogral, logo tivemos esse invento:

Sonhei com ela nesse tempo,
senti de longe sussurrar
O vento agia em seus cabelos,
um pouco meu também estava lá

Lá onde queria estar agora
bem perto, um pouco dividir
Printar na tela nosso invento
queria muito mesmo era estar aí

Mas da promessa, esquecimento
lembrei não tinha muito a oferecer
eu que sequer me vi no espelho
me veria ao vivo, envelhecer

Aí era onde queria estar agora
em corpo aberto, ressurgir
vibrar inteiro ao avesso
dormir à sorte e me redescobrir

Desse invento, meço do céu ao chão
Descoberto, peço que me caiba então
Num beijo ou só na intenção

Acabamos a música junto com o combustível do carro…

Continuará

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Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa

Musico prático desde o milênio passado e amante da arte de contar potoca!