Tem Um Cara Aqui Em Casa- Parte 12

Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa
8 min readNov 15, 2022

--

“- Filho da puta, filho da puta!”

Ouvi o esbravejo atrás de mim que fez rápida e discretamente me virar.

- Ô perdão, não, não é com você não!

Mudando de tom, se desculpou aquele simpático senhor, que aproveitando o gancho emendou:

- Prazer, Esteban!

- Prazer, Xico!

- Já conhecia por aqui?

- Confesso que não, todas as minhas outras imersões a Sonhos foram diretas. Dessa vez, falhou!

- Ahhhh, ‘Cê tá começando frequentar por lá agora, né?

- Sim, e minha mais recente passagem por lá foi meio tensa, tanto que voltei de forma súbita e minhas cãs nem conseguiram me acompanhar.

- Fica tranquilo, faço esse trajeto há décadas e comigo também já aconteceu o mesmo, mas foi com meus gatos.

A única diferença é esse bando de arrombado que tem causado por lá agora, né?

- Nem me fale!

- Não sei qual sua situação, mas eu tava numa boa curtindo umas férias em Coma, conhece?

Depois de um esboço de espanto e um sorriso sem graça, respondi:

- Não.

- Não precisa cerimônia, é quase tão natural quanto Sonhos. Só que, honestamente, prefiro Coma! É um lugar pra férias mesmo, saca?
Fui pra lá em 2009, e do nada me tiraram pra voltar à ativa. Achei até que fosse coisa da minha ex, atrás de divisão de bens e os diabo a quatro…dá licença mano!
Mas, não…era pior! Era para voltar a trabalhar.

- Ahahaha qual sua profissão, Sr. Esteban?

- Senhor meuzovo! Acumulo idade porque não dá para distribuir, mas sem formalidade, moleque! Lá, era Juiz militar.

Disse Esteban, apontando para um portão que dava acesso à vida desperta.

- Eita, e em Coma você tava fazendo o que?

- Cuidando de um quiosque na praia, bem na cara do gol!
Sol, vento, umas mina daora, uns cara também, por que não, né?
Só tranquilidade!
Aí me chamaram de volta, e quando ví que me colocaram no hospital militar, logo pensei que era B.O.
Mas, suave, vamo vê qual era — pensei.
Dois dias depois, ainda em recuperação, colo na janela e vejo gente implorando pra volta dos milico onde nunca fez sentido.
Liguei a televisão e tinha um bando de boçal cantando o hino pra um PÊ-NEU!
Minha filha foi me visitar, me levou um jornal onde li que uma galera tava querendo marcar comércio com estrela em forma de boicote, já achei aquilo escroto pra caralho!
Não fosse o suficiente, quando me levavam do hospital militar para repouso no quartel, na entrada tinha uns maluco cantando o hino e fazendo Sieg Heil!
Aí não teve jeito, né? AVC e tô aqui de novo!

- Caramba! E eu achando que ter pegado uma porta errada e saído num multiverso em que meu amigo e baterista Pedro formava uma trisal com o ex-percussionista de minha banda e sua ex-esposa, ambos moradores do Copam, já era loucura demais…fiquei miúdo perto dessa experiência sua.

- O que andou acontecendo nesses anos?

- Pouts Esteban… se eu fosse te contar, o pessoal que tá lendo a gente agora ia sair pra comprar cigarro e não voltaria mais.
Depois dou um jeito de te atualizar, resumidamente.

- É… volta e meia uns amigos da corporação vinham me visitar em Coma, mas sabe como é velho com mentalidade de velho, né?
Acho que como não fui muito cortês com eles, daí pararam de me visitar.
Menos mal também, vai ver numa dessas papai do chão chamou para dar um rolêzinho.

Esteban pausa na fala e fixa seu olhar em nada, como se tivesse dando um reinicio no sistema operacional. Achei engraçado, mas como direto faço o mesmo, soube disfarçar o riso.
O lugar onde estávamos era tranquilo e confortável, porém monótono e queria não entrar numa pira de tempo, já que não se vale nosso tempo em Sonhos e adjacências.
Só que, sei lá quanto tempo tava ali, mas tava chatão.
Não fosse a putice e gentileza de Esteban, teria tido um surto.

A sala era toda ocre colonial com detalhes em verde água; e finalizando o adorno, poltronas e puffs bem posicionados acomodavam diversas pessoas em poses blasé, curtindo aquele Djavan das discretas caixinhas penduradas nos cantos daquele ambiente.

Esteban e eu nos diferenciávamos com nossa tagalerice, quando este volta a solar:

- PUTA QUE PARIU! Esse lugar é um porre! Parece que quanto mais a gente reclama, mais eles pioram.
O inventor dessa sala vip foi mesmo um grandessíssimo arrombado!

PS.: Acho que deu para perceber que, apesar de militar, meu novo amigo não é lá muito formal no uso da linguagem.
Sou meio assim também, mas procuro me controlar, vocês vão me perdoando aí.

- Cara, teve uma vez que me fizeram voltar e fiquei tanto tempo aqui que quando cheguei de novo em Coma, tinha dado tempo de construírem um resort!

- Olha, meu caro, se fosse entrar no embalo desse seu raciocínio ia ter um surto agora mesmo. Não sei lá em Coma, mas em Sonhos o tempo deles tem medida própria, então nem vou pirar.

- Sim, em Coma também é igual, só que foda-se, não quero ter razão, quero reclamar!Mas, e aí, cê que tava em sonhos, galerinha de Pesadelos anda arregaçando por lá, né?

- MUITO! Aliás, acredito que foi o motivo de meu regresso súbito. Caminhava com um amigo em NREM e começamos a ser perseguidos, quando me desequilibrei e despertei.

- É, alguns desses meus ex-“correligionários”(fez aspas com as mãos) são influentes nessa tomada. Uns frustrados que nunca souberam perder ou mesmo nossa real função quando despertos. E você, faz o que da vida?

- Sou músico.

-Cê tá de brincadeira!Cara, o que você tanto faz em Sonhos… caralho, gosta de dormir perigosamente, é isso?

Franzi a testa sem entender muito bem porque da exclamação de Esteban.

- Ué, por que essa surpresa? Tá bom que a galerinha não curte muito as artes lá, mas do jeito que você fala, parece que sou uma ameaça.

- E é, assim como eles são a você e toda sua classe.
Na cabecinha oca deles, vocês são extrema ameaça ao projeto deles.
Nunca ouviu falar na TEOCAM-Teoria da Conspiração Anarco-Musical?

- Que diabéisso?

- Desde o começo dos movimentos hippies e beatniks, com a adesão cada vez maior de jovens, a galerinha azeitona de pé preto ficou de butuca em músicos e artistas em geral.
Vocês tem uma vida invejável, né? Têm como princípio básico a distração dos despertos, isso é como se tivessem uma chave de algo precioso que ninguém sem o mínimo de sensibilidade pode acessar.
Além dessa turma dos hippies e beatniks terem derrubado tabu sobre um assunto MUITO importante à humanidade.

- Qual deles?

- O sexo!

- Tá, até compreendo, mas isso todo mundo faz, todo mundo tem, as vezes não com quem ou como queria, mas…faz-se.

- É aí que sua ingenuidade não te deixa ver onde isso bate neles.
Todos eles apreciam e adorariam viver como hippies e beatniks. O amor livre, sem gênero, sem classe, status. O sexo pelo bem e alívio que traz, sem precisar se comparar a um troféu.
Eles subvertem toda a beleza dessa liberdade com base nas amarras do conservadorismo. A subversão é tamanha, que forçam a barra querendo obrigatoriamente adicionar a esse “combo” as práticas mais que claramente repugnadas por qualquer ser humano de sensibilidade mínima, como já disse que vocês são.
É a máxima do “acuse os adversários do que você faz, chame-os do que você é!”

- Tá, mas isso é uma obsessão besta e sem sentido, que não dá em nada.

- Não garoto, não mesmo. O peso que as artes vem tendo sobre as massas ao longos dos séculos tem cada vez mais confrontado essa gente.
Todo apreço que eles tinham e protegiam, vocês, oferecendo abstração das dores do mundo real, causada por eles, tem doído neles mesmos agora.
Tudo que um músico ou artista qualquer tem de reconhecimento público, hoje, pertencia aos senhores feudais lááá atrás, quando o máximo que a arte alcançava era sarais para classe dominante e um emprego fixo de bobo da corte.
A ameaça, para eles, é exatamente essa: a arte avançar sobre a política deles de bons costumes e hipocrisia.

- Carai! É, ao menos em Sonhos essa sua analogia faz sentido. Porque percebi que só lá posso ter o reconhecimento que espero com meus garranchos e desafinos.

- É mais ou menos isso, só que depois de tanto tempo em Coma, recebendo gente de todo canto, percebi que esses estágios de dormência são como salas de ensaios e desejos aos quais não temos acesso quando acordados na vida real.
Seria como um preparatório para o vai que rola, quando o uso é mal intencionado.
Não cem por cento, como o caso que relatou dos seus amigos trisal.
Existem essas pegadinhas mesmo, que é justamente pra deixar a parada toda um pouco divertida.

- Cê quer dizer, então, que em um futuro distante, a arte substituirá os partidarismos em sonhos?
Nem digo política, porque a etimologia da palavra é bem mais ampla que partidarismo.

- Resumidamente é isso, e como te disse que lá, é também uma sala de ensaios de desejos e aspirações coletivas, não se admire caso isso invada a vida real. Eu tenho esse meu jeito aqui porque não quero deixar o tempo do corpo tomar meu espírito, meu escudo pra isso é a boca suja e despojo, ehehe!
Só que em Coma, vez ou outra o Cosmos abre uma sessão de cinema, geralmente quando rola uma aurora Boreal.
Nessas sessões em que a sensibilidade é o ingresso, podemos assistir mega produções mostrando um futuro que posses e interesses materiais, serão coisas ultrapassadas.

- Carai, jamais pensei que encontraria um milico com um pensamento assim…meio marxista, rs.

- Mais um engano seu, moleque!
Não se esqueça que bons ideais, como os desse cara, também foram deturpados e posto em prática exatamente por gente da minha classe. E a parada nem é essa. Se ainda houver tempo de mudar o curso das civilizações, novos seres virão com diretrizes esclarecedoras já de nascença.
E é esse o grande problema: eles temem pela desvalidação de seus ideais, que põem a humanidade contra si mesmo desde que o mundo é mundo.
Me preocupa ver gente nova como vi nesse curto espaço de tempo lá fora, realimentando um erro que já deveria ter sido enterrado. Só consegui lembrar dessas mega produções da arte visual de Coma, os cara vão conseguir cagar no rolê, e o fim pode não ser bom e pode estar próximo.
Aí, só penso quanto do meu paraíso em Coma pode ser afetado!

- Bicho… ‘Cê me deixou achatado agora!
Nem sei se quando abrirem minha portinha pra Sonhos entro nela ou se vou contigo na sua.

- Você até poderia vir comigo, mas o lugar não vai ter o efeito que precisaria em você, simplesmente porque não é necessário sua presença lá. Não me leve a mal, tô dizendo na boa mesmo.

- Compreendo, mas pô…ficar aqui nessa salinha de psicanalista com essa trilha de que tá rolando…tá me deixando griladão!

- Vou ver se Nise, a Bedel daqui, pode parar o som e me descolar um violão. Quero te mostrar uma composição, vê se rola pra você.

Meu novo amigo se levanta, vai até um galpão ali por perto e volta com o violão para um espaço já em silêncio.
Toda aquela gente blasé acompanha com atenção aquele senhor de setenta e pouco anos, trajando bermudão cargo, tênis de skatista, camisa larga e óculos Juliette sobre a testa se aproximando de mim com o violão.
Com um timbre de voz parecido com Luiz Melodia o ouço:

“Não foi por descuido
ou por mera distração
Nem foi por falta de avisar
roe-se o osso, o rabo e o cão

Fumaça, camburão e cassetete
vou fabricar meu foguete,
para militar
Vou nos ombros da coragem,
nem que demore pra chegar

“-Quem te vendeu a lua, irmão?
pergunta aqui, só mais um plebeu
sem tapa, pescoção ou supapo
A vida à cacete, para mim já deu.”

Não foi um descuido,
ou só mera distração
Agora, pra gente se livrar
Precisa mais do que oração

Eu, verbalizaria um verbete
fabricaria um foguete,
para militar
Vamo na cara e na coragem
Nem que demore pra chegar”

Ele termina ovacionado pelas pessoas blasés e por mim, põe o violão sobre o puff e segue para o portão de Coma, rumo a seu paraíso quase particular.

Continuará

--

--

Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa

Musico prático desde o milênio passado e amante da arte de contar potoca!