Tem Um Cara Aqui Em Casa- Parte 13

Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa
8 min readFeb 24, 2023

Desculpem-me a demora em aparecer por aqui. Acho que compreenderão a ausência ao final desse capítulo.
Sendo assim, sigamos…

Alguns rezavam ajoelhados enquanto a depredação continuava Congresso adentro.
Corria perdido de um lado pro outro, ofegante e angustiado, mas ao menos ninguém me notava.
Era como se fosse um perispírito, sentido só pelo arrepio de poucos com o mínimo de sensibilidade ali, naquela turba lobotomizada por um patriotismo torto.

Humanos, como nos explicar?

Eu mesmo, me achando ávido por conhecimento, sempre sou pego por meus erros reincidentes, ainda que nesse caso estivesse inconsciente, já naquela fase do sono fora do corpo.
Deveria ter me ligado que o tempo que passei sozinho no lounge após a partida de Esteban era um convite sedutor as armadilhas da galerinha de Pesadelos.

O recinto se esvaziou após a partida daquele meu novo amigo, nem mesmo música ambiente tinha.

E, como ainda não conheço bem todos ritos ou regras, quis não bancar o espertão, esperando por ali um BOM TEMPO, mesmo na medida louca de tempo daquelas bandas.

Simplesmente não tinha mais o que fazer e, cansado de esperar por um aviso qualquer, resolvi entrar na porta que abrira sozinha à minha frente, algum tempo antes.

Caminhei por uma avenida arborizada, ladeada por casas de aspectos parecidos, porém de cores diferentes, dentro de uma paleta limitada entre verde, amarelo, azul e branco.
Cada casa tinha, em suas varandas, não menos que três automóveis e nenhum deles popular.
A cada quadra cortada por ruas transversais havia playgrounds sexualmente (no sentido de gênero) identificados, de acordo com mais alto padrão conservador.

O primeiro pelo que passei tinha brinquedos e um arco em sua entrada ostentando, em letras garrafais, os dizeres: MENINOS = RAMBO.
E, por lá, uma molecada ostentando facas, pistolas e metralhadoras de plástico, e vestindo faixas amarradas em suas cabeças, somadas a peças camufladas de roupas, trocavam tapas e exibiam seus “músculos” seguidos de gemidos: BIRRRR!
exigindo toda atenção de suas babás, meticulosamente vestidas de branco.

Passadas duas quadras, mais um playground identitário, dessa vez rosa com letras mais discretas e arredondas- MENINAS = BARBIE.

Seguindo a lógica local, brinquedos como cozinha de plástico, produtos de limpeza, mini salões de beleza e micro carrinhos de bebê adornavam aquele recinto.

Todo o lugar era de uma limpeza impecável, assegurada por jovens senhoras trajando uniformes verde oliva, cabelos presos e envernizados por alguns bons gramas de gel.

Continuei descendo a avenida quando, à minha direita, para meu espanto, um espaço de arquitetura diferente com um jardim colorido anunciava uma escola de música.

Espantoso, pois tudo me levava a crer que estava em Pesadelos e, lá, a música e as artes haviam sido erradicadas.

Como passava despercebido por todos, resolvi arriscar chegar mais perto e conferir qual era o rolê.

Na recepção, uma senhora de sorriso ensaiado me cumprimenta com um carisma tão natural quanto um tablete de tempero “caseiro” Knorr.

- Pois não! O senhor gostaria de conhecer nossa escola de música sem viés ideológico?

Precisei pensar e responder rápido, mas confesso que meu cérebro queria pedir pausa pra um café.

- Sim, lógico!

A “simpática” senhora prontamente:

- Me acompanhe, por favor!

Já na primeira sala, um piano com o tampo aberto perto da porta fez com que ficasse na ponta dos pés para olhá-lo por dentro.

- O piano tá sem cordas?- perguntei

- Sim, nosso método de ensino musical tem prioritariamente isso. Ensinar a parte boa da música, a matemática. Harmonia e melodia só servem para deturpar as mentes de nossas crianças; quando a música tem letra, sempre tem aquela tendência maledicente ao marxismo cultural, né?
E é algo tão abominável que tomou conta até de países desenvolvidos. Acredita que na Inglaterra decidiram tornar matéria escolar o analfabetismo musical daqueles cabeludos maconheiros dos Beatles?

Engoli seco e dei corda para ver até onde ia aquele turismo catástrofe.
Como que conduzido por uma força externa, mantive o semblante e concordei com toda paranóia que regia esse novo sistema de ensino musical.
Mas, acho que exagerei em meu disfarce, porque ao final aquela senhora parecia ter visto em mim um candidato a professor, me convencendo a assinar um termo de experiência e a já ficar por ali para ser professor de música por um dia.
Aceitei por também não ter muito mais o que fazer mesmo, e com o conhecimento teórico que tenho… não seria nada tão difícil ensinar música só com as “partes boas”.

Ao terminar de preencher a ficha com meus dados, a mais assustadora surpresa me aguardava nas últimas linhas daquela página.
Como todo contrato que traz em seu fim data e local, veio ali a maior aberração.
No lugar de Sorocaba-SP 00/03/99 por exemplo, estava:
Cérebro Do NiKolas-PS (sigla para Pesadelos).

Me tremi por tudo que possam pensar, já tinha preenchido e ninguém, nenhum de meus amigos nessa ode, estava por perto para um mínimo auxílio que fosse.

Até então, achava que a viagem fosse só nos condados de meu cérebro! Daí…olha onde vim parar!

Como era tarde para esperneio, mantive o semblante e vamos de bode expiatório.
Agora, era um professor de música sem melodia focado em ensinar a Matematica da música. Logo eu, que mal sei conta de multiplicar.
Talvez, só mesmo cumprindo a lógica dessa turminha do barulho.
Ensinei vários nada para a primeira turma de alunos e, ao fim do expediente, segui o fluxo do corpo docente daquela instituição indo a um anfiteatro lotado de pessoas com uma alegria e empolgação pré-moldadas.

Por ter a habilidade de mutar minha audição em ambientes com muito ruídos ou vozerio, me limitei a observar as expressões faciais e ações. Então, subiu ao palco, rumo ao púlpito centralizado e adornado com as cores predominantes daquele lugar, uma senhora tocando uma vuvuzela e parando somente para berrar:

- FOOOOORA COMUNISMOOOOO!!

Apoteótica foi a reação do público, que ovacionava por longos sessenta segundos deixando à oradora, agora, a palavra.

- É agora, ou nosso fim vai ser arrebatador!
Chega de cultura pensante, chega de impunidade, chega de corrupção.
O começo disso tudo, vocês bem lembram! Foi quando sorrateiramente esses malditos começaram influenciar nossa juventude com questionamentos dentro de nossos lares, em momentos que eram dedicados unicamente ao lazer e entretenimento.
De nada vai adiantar supervisionarmos o conteúdo e suas entrelinhas em uma boba canção ou desenho animado infantil.
É substancial cortarmos o mal pela raiz porque eles, OS I NI MI GOS, sempre pensarão em uma maneira de subverter inocentes versos.
Isso vai acabar e é logo, o Pai nos tem enviado os seus melhores soldados para isso. Esse é um dos motivos de nossa reunião aqui já que temos, entre nós, nosso mais novo pensador da anti filosofia marxista.
Senhoras e senhores, recebam com seu melhor aplauso aqui no palco: HILTON JOSÉ MENDES!

Eu?
Como assim?
Que raios tá acontecendo?

Como não podia gritar e estender meus dois dedos médios a todos ali, continuei seguindo o fluxo. Pedi a qualquer força que me guiasse de maneira que não falecesse dormindo naquele condado de Pesadelos. De meu lugar na plateia até chegar ao púlpito, combinei com minha fala de que ela seria responsável por nossa sobrevivência.

- Olá, me sinto lisonjeado com essa recepção…

Interrompera-me:

-MIIIIIITOOOOO, miiiitooooo!

Os esperei se manifestarem, para dar sequência.

- Tenho para mim que as artes são nossos escudos contra as mazelas da humanidade. Mas, também é nossa arma, quando necessário, para potencializar nossos anseios e reivindicações.
Acredito que bla bla bla bla bla

A partir desse ponto, todo meu vocabulário sumiu da mente, e bla, era tudo que conseguia dizer, ironicamente muito bem assimilado por todo público ali que me acompanhava com olhares vidrados.

E, como na cena de Forrest Gump em frente ao Capitólio, quando desligam seu microfone quando discursava, retomei o controle do meu “discurso” nas palavras finais:

- E isso é tudo que tenho a dizer!

Um ensurdecedor e frenético aplauso tomou conta do lugar. E minha reação foi a mais apática e desengonçada possível. Eu não conseguia entender o que acontecia!

A senhora que me apresentara volta ao púlpito, abrindo seus braços para um abraço e me fala ao ouvido:

- Obrigado, nosso salvador!

Entre meus amigos reais, essa hora eu diria:
“Dellllssss quêque taconteceno co a minha vida?”

Mas, caminhei de volta a meu lugar na plateia e a senhora toma de novo a palavra.

- Bom, depois dessas sábias palavras do Hilton, vamos seguir com o cronograma do nosso grande dia! Todos preparados?

A plateia:

SIM!

- Então, em 5 minutos, todos invadiremos os pensamentos dos nossos com a maior de nossas fúrias. Eles ainda dormem, mas provavelmente cada um de nós ficará não mais que minutos em seu adormecimento. Assim, quando acordarem, seremos nós seu comando e tomaremos de volta o que é nosso!

Era a madrugada do dia sete para oito de janeiro de dois mil e vinte três, quando um batalhão de cidadãos e cidadãs vestidos no mais belo estilo classe média (mocassins, sapatênis, gola polo e bermudas caquis dobradas ao joelho) se encaminharam pelos corredores daquele condado de Pesadelos para adentrar os pensamentos dos patriotas.
Entre eles, estava eu…de chinelo, bermuda surrada e minha velha camiseta básica azul desbotada.

O pensamento que entrei exalava álcool de dias de abuso etílico. Era tudo confuso ali, abria-se os olhos, e olhava pela fresta daquela barraca em um acampamento. A movimentação lá fora causava preguiça, logo vi as pálpebras daquele corpo pesarem novamente e fiquei lá…curtindo aquele aroma etílico de Pitu com Crystal.

Agora estava preso em um cérebro que tinha como decoração pôsteres de Schwarzenegger, Stalone, capas das edições de Playboy da Magda Cotrofe e uma enorme flâmula do Anapolina.

Não tive muito que fazer, a não ser esperar.

O corpo abria os olhos, tomava um combo de Epocler, Neosaldina e Omeprazol, mas, não se levantava.

Parecia estar submerso na mais reforçada ressaca já vivida na humanidade. Na verdade, estávamos. Porque eu ainda estava ali.

Até que ouvi vozerios espantados, intercalados com barulhos de máquinas, sirenes e vozes de comando seguidos de um estrondoso ruído de lona se rasgando.

- Levante! Mãos na cabeça, você está preso por depredação a patrimônio público.

Eu, lá dentro daquele cérebro, entendia o que estava acontecendo. O corpo, dali pra baixo, tomado pelo exagero de álcool em dias de acampamento não fazia ideia e ao primeiro sinal de uma planície para se recostar, entrou de novo em estado de hibernação.

Me restou preso, desesperado e agora também alcoolizado naquele cérebro escrever:

Eu, a ultima isca do anzol
Eu, sonhando iluminado pelo sol
Eu, perdido iluminado pelo sol
Eu, queimando pendurado no anzol

Nem faz tanto tempo assim,
era só medo dominando meu espaço
Soprava longe o que achava que era fé
Trazia perto desespero e embaraço
E fui aos poucos entendendo como é
Desconfiando até da sombra em pedaços
Um dia em cada hora, partiu de mim
reconhecer que era o circo, e não palhaço

Eu, a ultima isca do anzol
Eu, sonhando iluminado pelo sol
Eu, perdido iluminado pelo sol
Eu, queimando pendurado no anzol

Parte do desejo que era ser
Sobrevivente condenado a se esconder
refugiado das perdidas ilusões
juntando cacos de pequenas pretenções

O exilio do absurdo em mim,
contando os passos para ver chegar ao fim
refem do próprio tempo
encontrar enfim, fulga
saltando pra bem longe desse anzol

De quem era aquele corpo?

Continuará

--

--

Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa

Musico prático desde o milênio passado e amante da arte de contar potoca!