Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa
6 min readJul 15, 2022

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Tem Um Cara Aqui Em Casa- Parte 5

Meia noite e quarenta e seis, em meses aparentemente estive livre desse mal, insônia. De volta, ela não sossega, me enchendo de pensamentos nada pertinentes ao momento, coisas como:

“Pra quê serve mesmo a fórmula de bhaskara?”
“Por onde será que anda o Felipe Dylon?”

Pô, não tenho mais UM remédio para indução ao sono, joguei todos fora quando auto-desafiei me livrar dessa indesejável companheira de infância,
na mudança aqui para Fenda do Biquíni.

Quis tentar estar mais próximo possível de uma vida saudável, já que o lugar me permite ter uma horta, dormir e acordar cedo, caminhar e todo resto que combine com uma vida digna de um semi-idoso.

Tudo isso, tendo como trilha sonora duos, trios, multidões de grilos substituindo os roncos intermináveis de SUV’s, ônibus e bêbados que disputavam entre si, quem era mais barulhento no bairro da Pompéia onde vivia em São Paulo.

Viro-me pela octogésima sexta vez, encontro uma posição confortável e posso sentir o gosto do sono se aproximando.
Vou adentrando, levemente, como quem adia o fim de uma degustação de doce, e…

-Ow!

-Que foi, cacete?
( pergunto, pra variar, PUTO)

-Dorme logo, preciso te levar num lugar.

-Tô tentando né?

E, em menos de um segundo, encontro Estones num lugar de Sonhos aparentemente familiar, mas nada a ver com região de sua loja.
É madrugada ali, e parece um bairro novo, sem asfalto com as poucas casas existentes sem sequer rebôco.
Cai um chuvisco que estranhamente não nos molha, e eu sigo Estones que caminha firme em um trieiro, que é um caminho aberto pelo desgaste de movimento entre capins e matagais.
Estones pára, vira com um olhar misto de preocupação com tristeza.
Tava diferente esse meu amigo imaginário.

-Que foi cara? — pergunto preocupado

-Nossos planos mudarão drasticamente, agora eu preciso mais de você do que você de mim.

-Mas, por quê? Que tá pegando?

-A conversa é bem longa, e não temos muito tempo agora. Posso te explicar assim que dermos início ao que penso ser nosso plano B.
Posso dar uma resumida para que você entenda o que passaremos agora.
Temos problemas de força maior em Sonhos, e é melhor até você não dormir sem antes ter algum contato meu ou de algum amigo enviado por mim.

-Êita, onde é aqui então bicho?
( perguntei temendo estarmos naquele lugar quentinho com cheirinho de enxofre).

-Não, calma que não te colocaria em enrascada. Até porque, quando você está acordado não é muito diferente de onde pensou que estivéssemos.
Precisaremos fazer um tour por algumas lembranças suas.
Aí achei melhor começarmos aqui pelo…

-Setor Cristina? Por que cargas d’água tenho que voltar justo aqui nesse bairro, e nesse ano?
O que aconteceu com Deividi, Frida? Tínhamos um combinado.

-Cara… Sonhos sofreram um intervenção da galera dos Pesadelos. Nada que tenha a mínima ligação com arte, entra ou sai de lá. Ler e escrever tá proibido.
Explicar quão complicado tem sido vir aqui, pode ocupar MUITO tempo do pessoal que tá te lendo agora. Então, muito resumidamente é isso.

-Tá, mas porque voltar justamente aqui, nessa fase tão treta. Aliás, nem tem muito tempo que minha vida começou deixar de ser só treta, mas… aqui?
Do nada, assim… Cê já não sabia que aqui foi tenso?

-Sim, sabia, mas só começando daqui, pra você absorver o que precisa pra dar início a esse nosso plano B.

-Caraí’ bicho… Ow… que tristeza!

Quando chego ao ápice da minha vida, que é dormir cinco horas noite, sem nada de aditivo. Sonho com a época que a vida cagou com meu sono?
Tá de zuê!

-É, mas é por isso mesmo. Tudo que você viveu depois daqui, com o tempo foi tendo efeitos diferentes em sua essência, e isso é um dos princípios ativos que farão você começar o nosso projeto, até eu pelo menos ter melhor circulação entre Sonhos.

Parei, baforei, resmunguei, quis fumar um cigarrinho, tudo para driblar a putice e a vontade de chorar. Para mim e a você que me lê, isso agora era só um sonho, mas pra esse espertão desse amigo imaginário, é a salvação do mundo dele. O porém, é que essa fase foi uma das mais difíceis de minha existência em diversos aspectos, a começar pela logística.

Não lembro, como e porquê, meu pai achou uma boa ideia dispor da casa que morávamos na periferia de Goiânia, desmontar o trailer de lanches( que em Goiânia chamamos Pit Dog e era complemento da renda familiar) e partir para o que a mim soava uma aventura.
Nessa época, morava uma prima com a gente nos deixando uma família de seis pessoas. Meu pai, mãe, dois irmãos mais velhos e a prima que viera do Pará e viveu com a gente por um bom tempo, ou nesse caso, por um mau tempo.

Após toda essa explicação de Estones e minha para contextualiza-los, seguimos no trieiro que logo deu visão a nosso trailer azul calcinha em cima e azul marinho embaixo. Estacionado sob uma árvore típica de cerrado, me lembro como se fosse hoje as incontáveis vezes que ralei minha barriga escalando essa árvore, quando havia tempo de brincar por ali.

Logo à frente do trailer, meus pais fizeram um puxadinho com uma lona, também azul, e ali improvisaram um “estudio”, que é como hoje gente chique chama quitinete com sala, quarto e cozinha tudo no mesmo espaço.
Era tipo isso, só que de pobre.

O breu nos abraçava, e o vento e chuva aumentavam conforme chegávamos mais perto, até Estones fazer sinal para que parássemos, quando um barulho de porta abrindo anuncia a saída de alguém do trailer.

A pessoa salta e segue em apreçados passos arreando as calças e ficando de cócoras atrás do trailer, seguido de uma sequência de sonoridade plástica e molhada que aos poucos se transforma em um som parecido com um assobio.

Era Johnny, meu irmão do meio, aliviando-se no mato.

-Argh, vocês não tinham banheiro no trailer?
( pergunta Estones franzindo a testa numa expressão de nojo)

-Tinhamos, mas dormíamos os três irmãos e minha prima lá dentro.
E, não sei se observou que as janelas são pequenas, já imaginou esse estrago aí sendo feito lá dentro, só com essas janelicas pra ventilar?

Estones, reforçou a cara de nojo e continuamos observando à uma distância totalmente segura.
Meu irmão se alivia e volta pro trailer, e como se tivesse sido ensaiado, bastou que ele fechasse a porta para o chuvisco engrossar virando um BAITA CHUVÃO, acompanhado de uma ventania absurda.
Ainda bem que o eu criança estava dentro do trailer, ao contrário aquela ventania levava.

O vento e a chuva só aumentavam, e a gente impressionantemente, continuava seco, me fazendo perguntar a Estones sobre esse fenômeno, o que ele usando da mesma rispidez que uso com perguntas idiotas responde:

-Eu não existo, e você não está aqui fisicamente.

-Ãnnnnn… tendi’

Mais uma apertada no vento e soma-se à essa sinfonia um: flap!
A lona do puxadinho se solta e quase ao mesmo tempo, um solo de panelas, pratos e utensílios de cozinha entram no frenético acompanhamento.

-EU ME LEMBRO DISSO!!!

-Sim imbecil, é SUA lembrança. Agora fala baixo!

-Ué, mas a gente físico não tá aqui!

-Mas nossos sons podem ser ouvidos, inteligente!

Nhhhec!

Abre de novo a porta do trailer e como parte do arranjo sonoro da natureza agindo ali, seis risadas complementam e revezam-se com pedidos de ajuda e troca de quase ofensas entre os adultos da casa, que na ocasião seguravam a lona, e reclamavam um ao outro:

-Benhê! Segura a lona aí, vou tentar amarrá’ ela no pé da cama!

-Comé que eu faço isso, Sô? Se eu soltar o lençol, fico pelada na chuva.

Dentro do trailer, três adolescentes e um eu criança, se matavam de rir daquela situação nada feliz e um tanto preocupante, até que o Corôa grita:

-Márcio, cria tipo e vem ajudar, sô!

Ao que meu irmão mais velho, provavelmente reclamando acatou, segurando a lona à cabeceira da cama enquanto minha mãe procurava algo para se vestir por debaixo do cobertor já encharcado, tal como a cama.

Uma trégua e a chuva volta ser só chuvisco enquanto minha mãe organiza empenhada o que conseguia, agora assessorada por todos, menos eu criança que fui logo interpelado com um:

-Vai pra dentro Junin’ vai se sujar tudo aqui!

Passas-se pouco tempo, todos satisfeitos com o que deu pra ser feito, tomam seus rumos.

Meu pai volta para a cama, mesmo encharcada, meus irmãos e prima voltam pro trailer e eu e minha mãe, já trocados e com seus devidos uniformes, tomamos o rumo do ponto de ônibus para seguirmos para a labuta.

Estones, quase se emociona quando a gente seguindo a mim e minha mãe sobre aquele chuvisco, me vê pedir colo a minha franzina mãezinha que carregava a mochila dela, a minha e mais uma sacola com nossas marmitas.

Meu amigo disfarça, mas eu vendo que ele segurou o choro emendo:

-Viu porquê não é fácil ter voltado já de cara aqui?

Continuará

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Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa

Musico prático desde o milênio passado e amante da arte de contar potoca!