Como são definidas as regiões para operação dos sistemas de bicicleta compartilhada?

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8 min readMar 22, 2023

Por Lucas da Silva Pacobahyba, Coordenador de Planejamento Urbano na Tembici.

Imagem 1 — mapa de estações da Tembici no centro do Rio de Janeiro.

Há atualmente cerca de dois mil sistemas de bicicleta compartilhada (SBCs) no mundo, de acordo com DeMaio (2022). O primeiro sistema foi inaugurado na década de 1960 na Holanda, mas só apenas a partir dos anos 2000 é que o crescimento do número de SPBCs foi vertiginoso — em 2009, um SBC foi inaugurado por mês em algum lugar do mundo. Este crescimento só foi possível graças ao aprendizado obtido com os sistemas do passado, principalmente com relação à sua operação e à concepção do seu projeto.

Como o crescimento dos SBCs só ocorreu nos anos recentes, a bicicleta compartilhada ainda é um tema com muitas questões a serem exploradas no campo dos estudos. Além disso, mesmo questões que já vem sendo estudadas ainda dependem de maior amadurecimento, isto é, de mais estudos que os alimentem, seja para corroborar, seja para contrapor a narrativa que está sendo construída sobre estas questões.

Neste sentido, a concepção do projeto de SBCs é um tema que ainda não possui uma metodologia fechada e definitiva — não apenas por ser uma questão ainda pouco estudada, mas também porque a concepção do projeto dos sistemas também precisa levar em conta aspectos da realidade local que irá receber o serviço de bicicleta compartilhada. Embora isto possa dar ao processo de projeto um aspecto pouco replicável, tem-se verificado que alguns aspectos podem ser indicadores relevantes para a escolha de certas regiões onde o serviço deve ser inicialmente concebido nas cidades.

A experiência adquirida com a concepção de SBCs nas grandes cidades brasileiras pela Tembici permitiu reconhecer que existe uma abordagem multiescalar da concepção do projeto dos sistemas. Isto é, parte-se de uma escala macro de análise, levantando dados gerais das cidades, até a escala micro da busca no espaço público por locais que contenham o espaço necessário para que cada estação de bicicletas possa ser instalada. Neste sentido, a escolha da região a ser inicialmente contemplada pelo serviço seria a segunda escala de aproximação, após o levantamento de dados gerais da cidade. Estes dados gerais também contribuem para a escala de aproximação das regiões e, assim como os indicadores das regiões, também não possuem um conjunto fechado e definitivo de dados que podem ser obtidos. Entretanto, observa-se que dados relacionados ao perfil socioeconômico da população, ao padrão de deslocamento dos habitantes, à presença de infraestrutura cicloviária e à políticas de desincentivo aos deslocamentos motorizados e de incentivo à mobilidade ativa [1] são alguns dos dados mais relevantes para esta primeira escala de análise.

Entrando com mais detalhes na segunda escala de análise e objeto deste texto, observa-se que a escolha da região a ser contemplada pelo serviço do SBC busca seguir três pilares fundamentais: motivação, conforto e integração modal. A motivação é o destino para o qual um deslocamento é realizado, cuja finalidade pode ser o trabalho, o estudo, o lazer, fazer compras, cuidados com a saúde, entre outros. Já o conforto é o caminho para se alcançar o destino, e que deve apresentar as condições de segurança e ambiente favoráveis ao uso da bicicleta. Por fim, a integração modal permite que a bicicleta compartilhada tenha um maior alcance e seja uma opção de transporte mesmo para quem vem de longe, uma vez que, na maioria das vezes, o SBC não consegue cobrir toda a área de uma cidade — e eis a principal razão pela qual a escolha da região deve ser feita de forma cuidadosa, de modo a alcançar a maior parte da população e com uma rede de estações que otimize a sua disposição no espaço urbano.

Imagem 2: pilares fundamentais da escolha das regiões a serem atendidas pelos SBCs. Fonte: Tembici.

Com relação à motivação, dados relacionados à concentração de destinos ajudam a identificar as regiões da cidade mais frequentadas não somente pela população local, mas também pela população flutuante — aquela que não vive na região, mas que se desloca até lá habitualmente. Dependendo da finalidade do destino, a frequência de ida a ele é maior ou menor. A finalidade para o trabalho supõe um deslocamento semanal, em média, de 5 vezes[2]. Além disso, a finalidade para o estudo também supõe um deslocamento semanal médio de 5 vezes, mas dependendo das regras de utilização das bicicletas compartilhadas, não se pode considerar que o público que se desloca por motivo de estudo com menos de 18 anos pode se tornar potencialmente usuário do serviço.[3] Já a finalidade do lazer pode estar mais relacionada aos fins de semana e feriados (frequência semanal média de 2 vezes), mas pode apresentar frequências maiores em regiões com apelo turístico ou em locais onde os espaços de lazer são consideravelmente grandes, como grandes parques e orlas de praia ou de lagoa com urbanização no seu entorno. Outros fins como saúde e compras podem se apresentar com frequência variável, sendo mais frequentes em centros de bairro e em pólos comerciais e de serviços.

Já com relação ao conforto, são os dados relacionados ao caminho que pode ser feito de bicicleta entre a origem e o destino que ajudam a identificar as regiões potenciais para o SPBC. Como parte considerável dos usuários de bicicleta compartilhada é composta por novos ciclistas — isto é, não utilizavam a bicicleta antes de começar a usar a bicicleta compartilhada -, o conforto é mais determinante como fator de atratividade à utilização do SBC. Dentre os elementos de conforto, a presença de infraestrutura cicloviária é um fator atrativo do ponto de vista da segurança viária, principalmente se a malha cicloviária estiver disposta na malha viária de forma condizente com o tipo de via. Isto é, se, para uma rua residencial e de baixa velocidade viária, uma ciclorrota pode ser suficiente para garantir a segurança do ciclista, uma grande avenida pode demandar espaços segregados de circulação entre veículos automotores, bicicletas e pedestres, a fim de se evitar sinistros de trânsito. Além disso, a malha cicloviária deve estar presente em rotas de desejo, pois quando ela é disposta de forma desconexa na malha viária da cidade e de forma interrompida, ela se torna pouco atrativa para utilização. Além da segurança viária, áreas planas são mais confortáveis e favoráveis para o uso da bicicleta devido ao menor esforço que precisa ser realizado ao pedalar[4]. Já áreas com muita declividade podem ser atrativas apenas para deslocamentos do local mais alto para o mais baixo, reduzindo quase à metade a atratividade do sistema. Outro dado a ser considerado diz respeito à ambiência do caminho, de modo que vias sombreadas, seja pelos edifícios, seja pela arborização, ajudam a aumentar a sensação de conforto em dias ensolarados, e vias iluminadas, seja pelo sol durante o dia, seja pela iluminação artificial à noite, ajudam a aumentar a sensação de segurança. Embora este pareça ser um dado mais difícil de se levantar de forma objetiva, é um aspecto que pode ser determinante de forma negativa em trajetos longos sem nenhum sombreamento[5], ou em regiões onde não há iluminação à noite.

Imagem 3: Ciclista utilizando uma bicicleta do Bike Rio na ciclovia da Avenida Pasteur, na Urca, Rio de Janeiro. A avenida apresenta arborização frondosa durante todo o percurso, o que torna a pedalada mais confortável durante o dia. Fonte: Google Street View.

Por fim, com relação à integração modal, dados relacionados à rede de transporte público da cidade permitem identificar pontos de conexão e estações de transporte de maior movimento, as quais são potenciais locais de retirada e devolução das bicicletas compartilhadas devido ao fato de que cerca de 22% das viagens dos sistemas da Tembici são realizadas a partir de alguma estação ou terminal de transporte público. Para pessoas cuja localização da origem e destino dos seus deslocamentos se encontra dentro da região mais atrativa para o SBC, a bicicleta pode se tornar a única perna da viagem, sendo utilizada do início ao fim do trajeto. Já para pessoas que residem fora desta região mas para lá se deslocam, a bicicleta compartilhada pode ser a última perna da viagem ao ser combinada com algum outro meio de transporte — a pé, transporte público ou até mesmo o carro. Para que esta combinação ocorra, é importante que o sistema contenha estações de bicicleta nas regiões de intermodalidade, com estações o mais próximo possível dos acessos aos meios de transporte e com oferta de vagas condizente com a demanda. É possível também analisar dados referentes ao custo da combinação das viagens, de forma a identificar se não somente a economia de tempo, mas também de custo, pode tornar o SPBC mais vantajoso para o usuário. Em locais onde a integração modal é realizada sem custo adicional — como a integração entre trens e metrôs em São Paulo -, a utilização do SBC pode representar um custo a mais na última perna da viagem. Já em locais como o Rio de Janeiro, em que a migração entre trens, metrô e ônibus possui custo adicional, a migração da última perna da viagem para o SPBC pode representar uma economia de custo, o que torna a bicicleta compartilhada ainda mais vantajosa.

A reunião dos aspectos apresentados aqui não encerra o debate sobre os fatores atrativos para uma região receber uma operação de SBC. Além disso, a implementação do serviço na região da cidade que foi identificada como a mais atrativa não significa que outras regiões não tenham potencial para futuramente também serem contempladas. Para que isto ocorra, o planejamento constante da rede de estações, o acompanhamento das transformações pelas quais passam as cidades e o diálogo entre o poder público e a empresa operadora permitem que futuras expansões do serviço ocorram, buscando atender e convidar cada vez mais pessoas a utilizarem este meio de transporte no seu cotidiano.

[1] Entende-se aqui a mobilidade ativa como aquela que é realizada para deslocamentos de curta distância e que é realizada a partir da propulsão humana. Dentre os modos, tem-se o deslocamento a pé, por bicicleta, patinete, até mesmo skate e patins.

[2] A pandemia e o aumento do trabalho remoto reduziram a frequência do trabalho presencial, mas por ser um cenário muito recente, ainda existe uma carência de dados amadurecidos que estimem com maior precisão a redução da frequência de deslocamentos para o trabalho presencial.

[3] Algumas regras de utilização dos SBCs incluem que o usuário seja maior de 18 anos para utilizar a bicicleta compartilhada.

[4] A utilização de bicicletas compartilhadas elétricas ajuda a minimizar o impacto do desconforto causado pela declividade, mas isto só pode ser considerado em sistemas que tenham a frota de bicicleta compartilhada elétrica como sendo a predominante sobre a bicicleta convencional.

[5] O sombreamento é um dado relevante com relação ao conforto em locais de clima mais quente, como é o Brasil de modo geral. Em países de clima mais frio, o que se observa é o oposto, pois locais com pouco sombreamento são vistos como confortáveis para se pedalar.

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