Pedalar não é perigoso, o perigo reside em compartilhar as vias liberadas a motoristas velozes e furiosos.

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6 min readMay 10, 2023

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Por Renata Falzoni — Arquiteta urbanista e jornalista especializada em mobilidade ativa.

Maio Amarelo é o mês daquele festival de campanhas, focadas em repetir regrinhas de boas maneiras estilo, “pedestre atravesse na sua faixa”, “motorista use cinto de segurança”, “motociclista use capacete”.

Fotografia de Oleksandr Pidvalnyi

O principal motivo dessas campanhas terem um baixo efeito na segurança de trânsito, é que ao não focarem no sistema como um todo, ao não tocar diretamente na emoção dos atores do trânsito, ao não estarem associadas a mudanças estruturais nas ruas, elas não provocam empatia e não mudam o comportamento das pessoas. Elas são mais um ruído inócuo no dia a dia do cidadão, seus resultados são pífios e efêmeros.

O Brasil já foi destaque mundial pelo combate ao tabagismo, pelas políticas públicas de prevenção da AIDS, por atingir metas de vacinação e por ter o SUS como instrumento de acesso universal da população à saúde. Mas, existe uma outra face dessa moeda: O Brasil é campeão de mortes evitáveis pela pandemia, e nunca teve o título mundial de top 3 de mortes e lesões no trânsito ameaçado. São mais de 45 mil vidas por ano, com prejuízo calculado de 50 bilhões de reais por ano. (1)

É sabido que a combinação que mais mata no trânsito é embriagues somada a alta velocidade e até hoje em pleno 2023, aqui no Brasil as conversas em rodas presenciais ou redes sociais, ainda são piadas zombeteiras sobre o pretenso direito de beber e dirigir. Em outras palavras, para o brasileiro, é “chique” transgredir as leis de trânsito e driblar as fiscalizações, estas cada vez mais raras e ineficientes. As mortes, incluindo-se a de muitos parentes próximos, entram numa caixinha esquecida como aceitáveis, são banalizadas.

Fato é que o Brasil está muito atrasado nessa Guerra Mundial contra a violência de trânsito, que segundo a OMS, em 2021 ceifou 1,35 milhões de vidas, sendo a maior causa de mortes entre jovens de 5 a 29 anos de idade. (2) Essa mortandade vem sendo amplamente combatida em todo o mundo e um dos marcos dessa batalha começa em 1997 na Suécia, com o Visão Zero, método de gerenciar a mobilidade, onde nenhuma morte ou lesão no trânsito é aceitável. (3)

Fotografia de Kaique Rocha

O Visão Zero parte de uma premissa lógica: Se tem um ser humano envolvido; principalmente do sexo masculino, principais vítimas e causadores de mortes nas ruas e estradas de todo o mundo; erros humanos e imprudência irão ocorrer. Assim todo o gerenciamento da mobilidade parte da certeza que haverá falha humana e transgressão. Quando isso ocorrer, pois é certo que vai ocorrer, as mortes e lesões deverão ser evitadas.

Com isso muda-se o foco de “culpa”, para “responsabilidade” e isso vai muito além de semântica. No Visão Zero, todo o ambiente urbano é projetado de tal forma que um motorista ao volante é induzido a respeitar as regras e com isso evitar sinistros. Análogo ao que acontece na aviação, onde a cada incidente, toda a sequência de fatos é analisada e modificada para que não se repita; no caso de mobilidade urbana, projetistas, gestores do trânsito, engenheiros automobilísticos, estudam as causas e modificam as circunstâncias podendo ser estas no viário, como também nos próprios veículos, freios, design, e por aí vai.

Em suma, o Visão Zero trouxe a prática da aviação para as ruas e estradas, é um método que trabalha o sistema como um todo. Não se busca um culpado, oriundo de um inevitável erro ou mal comportamento humano; no Visão Zero, enxerga-se a complexidade do sistema, as autoridades assumem para si a responsabilidade e promovem as mudanças a serem feitas. Bem diferente de jogar a culpa na vitima que morreu no asfalto como se faz por aqui.

Nesse contexto, o Visão Zero tem como principal ferramenta o “Acalmamento de Trafego”, que é a redução das velocidades máximas no ambiente urbano, com ganhos para todos.

Velocidades mais baixas, além de ampliar o ângulo de visão do motorista e consequentemente dar a ele a chance de prever e evitar um possível sinistro, salva vidas e aumenta a fluidez de veículos.

Acalmar o trânsito vai muito além de apenas colocar uma placa impondo uma velocidade máxima. Para que as pessoas sigam as regras de trânsito, há que existir uma lógica no espaço urbano, que garanta a preferência e segurança dos que vão de forma ativa e induza os motorizados a garantir esse respeito.

O projeto das ruas, das avenidas, das calçadas é refeito, de tal forma que o motorista ao volante, siga de forma calma e atenta. O mesmo com todos os outros atores, pedestres, ciclistas, motociclistas, enfim toda a cadeia.

As rotas dos pedestres devem obedecer a uma linha de desejo, o motorista deve ter ampla visibilidade dos pedestres e dos ciclistas, o desenho das ruas, as sinalizações de piso, o farão diminuir a velocidade nas conversões. As travessias de pedestres devem ser mais estreitas, enfim, acalmar o trânsito significa muito mais que apenas trocar as placas da velocidade máxima permitida. Todo o contexto é modificado, para que todos os atores compartilhem o espaço urbano em segurança.

Fazendo um recorte na mobilidade ativa, calçadas e ciclovias conectadas são fundamentais, no entanto, em cidades onde os veículos circulam perto e em alta velocidade, essas infraestruturas não trazem a necessária segurança em especial para as mulheres e suas crianças.

Esse eterno desconforto de conviver com automóveis em alta velocidade, desertifica as cidades. E não é a toa, pois ser atropelado a 50 km/h, velocidade ainda hoje aceita como “segura” nas cidades do Brasil, significa apenas cerca de 15% de chances de sobreviver. Se esse atropelamento ocorrer a 40 km/h as chances sobem para cerca de 70 %. Ser atropelado a 30 km/h a chance de sobreviver da vitima aumenta para mais de 90% sendo que a essa velocidade em geral o motorista tem tempo de frear e evitar o incidente. (4)

Ao se deslocar a 50km/h, o motorista tem uma visão muito reduzida de todo o seu entorno, impossível nessa velocidade esse cidadão evitar um sinistro. Portanto as autoridades brasileiras ao permitir velocidades altas nas suas cidades, estão diretamente coniventes com essa mortandade diária sendo que até hoje o Ministério Público não se atinou ao fato.

De volta ao Maio Amarelo, os gestores de mobilidade em vez de apenas repetir as já conhecidas regrinhas de trânsito nas inócuas campanhas de Maio Amarelo, ou aterrorizar os cidadãos com imagens subjetivas tenebrosas de um sinistro seguido de morte banhada a sangue, deveriam aproveitar o Maio Amarelo, para promover mudanças estruturais e eficazes nas suas cidades, e fazer dessas mudanças, o foco de suas campanhas.

Ou seja o que deveria ser feito é usar o mês de Maio para anunciar novos paradigmas na mobilidade, as mudanças que vieram para salvar vidas, e defendê-las em campanhas educativas de Maio Amarelo, provando porquê mudar é bom para todos.

Ainda a tempo, mudar a semântica faz parte do método. Desde Janeiro de 2021, a ABNT — Associação Brasileira de Normas Técnicas — passou a chamar os ”acidentes” de “sinistros de trânsito” seguidos de sua correta denominação, como colisão, atropelamento e por aí vai. Nada mais correto, uma vez que 90% dos sinistros de trânsito são evitáveis, ou seja, não foram mesmo acidentes. (5)

(1) https://www12.senado.leg.br/tv/programas/em-discussao/2022/09/transito-brasileiro-45-mil-mortes-e-r-50-bilhoes-de-prejuizo-economico#:~:text=Tr%C3%A2nsito%20brasileiro%3A%2045%20mil%20mortes,de%20preju%C3%ADzo%20econ%C3%B4mico%20%2D%20TV%20Senado

(2) https://news.un.org/pt/story/2021/11/1771092

(3) https://visionzero.global/

(4) http://vias-seguras.com/os_acidentes/acidentes_com_pedestres

(5) https://www.abramet.com.br/noticias/abnt-muda-terminologia-e-adota-a-expressao-sinistro-de-transito-para-qualificar-incidentes-no-trafego/

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