Na travessia entre o pensar e o aprender — Notas Deleuzeanas por Walter Kohan

Larissa Cabral
Comunidade AVIVA
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4 min readMar 2, 2020

Como pensar o que se pode pensar? Ninguém pensa, deveras, o que se pode pensar, se quer encontrar alguma coisa no pensar. Como não esperar o que não se pode esperar, como não pensar o que não se pode pensar?

Pensar é um exercício ocasional, genital, advindo de um desgarramento vital inaceitável e com aquela imagem pré-filosófica é impossível que possa emergir o pensar porque é impossível desgarrar-se.

Há que pensar sem essa imagem, contra essa imagem dogmática: sem representação, contra o modelo, para além da proposição. Pensar é experimentar, problematizar, encontrar. Pensar na imanência, sobre planos igualmente traçados, inventados, planos sempre móveis, mutantes. Pensar cada vez o que significa pensar. Pensar os problemas, as soluções, os sentidos, as verdades, a diferença. Pensar sempre, sem pontos fixos, sem quietude. Nunca parar de pensar. Nunca parar o pensar. Movimento do pensar. Nomadismo do pensar. Singularidade do pensar.

De modo que a filosofia, tida como mãe do saber, pressupõe uma imagem dogmática do pensamento que inviabiliza o pensar. Coitada da filosofia, colocada como guardiã do pensamento, juíza do que os outros pensam, tribunal da doxa e da razão puras: ela não pode pensar. A filosofia, “o pensar sobre o próprio pensar”, não pensa. E não apenas não pensa; ela impede que as pessoas pensem. Paradoxo? Contradição? O que resta aos outros saberes senão a reprodução de uma imagem e a negação do pensamento? […]

Pressupomos uma imagem do que significa pensar que nos impede pensar. Perdemos há muito tempo, se é que alguma vez a tivemos, a paixão de pensar.

Falta-nos garra e fortaleza no pensamento. […]Pensamos como as maiorias, seguindo modelos, para conformar e não para afirmar uma singularidade. Educamos para um pensar majoritário, a-singular, negador do múltiplo. Educamos para controlar, de forma cada vez mais democrática, não presencial e inclusiva.

[….]

E temos ainda o ensinar e o aprender. Por que quem imagina que com essa política, essa ontologia e essa imagem do pensamento podemos ser capazes de ensinar ou de aprender alguma coisa? Como alguém poderia aprender num mundo onde o controle se impõe sobre a vida, o singular é visto como ameaça e a diferença está presa ao mesmo e ao semelhante, ao análogo e ao oposto? Ninguém aprende deveras se não pode ser sede de um encontro com aquilo que o força a pensar. Quem pode aprender quando se determina de antemão que há as boas e as más aprendizagens?

Páthei máthos, diziam os gregos: por meio da experiência, o saber. Por isso é tão difícil antecipar como alguém aprende alguma coisa, por quais caminhos alguém encontrou a literatura, a história, o cinema. Por isso não há método para ensinar, pelas mesmas razões que não há método para pensar ou para aprender. Porque só se aprende a partir e por meio da multiplicidade. Ao contrário, quando já se sabe de antemão o que há de ser ensinado ou aprendido, se mata a experiência. Pois bem, a educação está cheia de métodos, metodólogos, dos que já sabem como ensinar, agora, a aprender a aprender.

Contudo, assim como não pensamos, também não ensinamos nem aprendemos. Não ensinam nem deixam aprender os que pensam que ensinar tem a ver com explicar e aprender com compreender e reproduzir o explicado. Nem os que pensam, mais aggiornados, que nas competências e habilidades estão os novos segredos do ensinar e do aprender.

Porque aprender, deveras, é uma experiência, algo que não pode ser previsto, antecipado, predeterminado, algo que ninguém pode julgar pelo outro e que não pode levar, propriamente, o nome de ninguém.

O aprender está no meio do saber e do não saber. No meio. Para aprender há que se mover entre um e outro, sem ficar parado em nenhum dos dois. Aqueles que sabem e aqueles que não sabem não aprendem, não podem aprender. O aprender está no fluir do movimento do pensar, nos prisioneiros que continuam presos na imanência do interior da caverna e não naquele que se libertou para apreender a ideia transcendente. Aprender é uma velocidade, um movimento infinito e ilimitado. Mas não é o discurso da enormidade do saber humano nem a dualidade socrática que nos autoriza a descrevê-lo assim, pois não há deuses que saibam mais do que os seres humanos nem há nada que saber. Há, sim, a possibilidade de unir à diferença à diferença. É isso que significa aprender.

Trechos retirados do texto: Entre Deleuze e a Educação: notas para uma política do pensamento — Walter Omar Kohan

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Larissa Cabral
Comunidade AVIVA

Educadora e aprendiz, antropóloga e astróloga, ama filosofia, escrever poemas, viajar sozinha e pedalar