A Era das Playlists

Débora V
Tendências Digitais
4 min readSep 28, 2018

Existe hoje uma mudança no jeito como consumimos música, e por conta dessa transformação, na “era das playlists” as experiências sonoras começaram a ser desenvolvidas pensando na fragmentação do cenário musical. A desvalorização da noção de “álbum” levou os artistas a repensarem o formato que apresentam seu som ao público.

O álbum “DAMN. do músico Kendrick Lamar leva isso em extrema consideração, onde as faixas presentes foram realizadas de forma onde a ordem em que se escuta não importa, e a coletânea funciona tanto em conjunto como individualmente.

O álbum não é linear, ele é livre, como um hipertexto, onde o ouvinte pode escolher por onde começar e terminar. O que reforça ainda mais essa ideia é a estrutura da versão Deluxe do mesmo, onde as faixas estão agrupadas de uma forma diferente de sua versão original.

É possível citar como o início da experimentação as Mixtapes: compilados de música gravados de forma artesanal em cassete, para reprodução posterior. A experimentação se dá no final dos anos 1960, até a década de 80, dando lugar posteriormente para seus sucessores da era digital.

Conjunto de Mixtapes, popular nos anos 1960–1980.

A interação através das Mixtapes apareceu tímida no início e até com um pouco de discriminação, mas logo se popularizou principalmente entre o público jovem e mais curioso. A novidade tecnológica permitia pela primeira vez a gravação e reprodução quase simultânea de sons, além de permitir a entrada em uma nova fase de playlists (que começam aqui a ter um contexto mais específico — como playlists relacionadas à humor ou temáticas específicas).

A possibilidade que esses cassetes deram ao público contribuiu inclusive para o surgimento de alguns gêneros de música eletrônica que hoje já são estabelecidos no mercado, e possuem ouvintes fiéis.

A fase das fitas também ampliou a interação que já existia em torno da música: ao se reunir e trazer faixas novas (e até remixadas), a divulgação da música se amplificava. O que antes se dava de poucos “distribuidores” para a maioria do público, agora achava meios mais democráticos de reprodução.

Posteriormente, as gravações em CDs virgens permitiram um compartilhamento mais instantâneo, e bem mais personalizado do que as Mixtapes. Apesar disso, existe uma individualização maior da aquisição musical. Enquanto nas fases anteriores existia uma coletividade atrelada às músicas, onde o consumo estava acompanhado de um grupo social, nessa fase é o início da particularização do ouvinte.

Essa particularização se propaga para as playlists, que hoje entram mais fortes. Alternativamente aos álbuns de artistas superfaturados, as playlists gravadas em CDs ou iPods toranaram a experiência de ouvir uma playlist própria ainda mais singular.

Exemplo de agrupamento de músicas com estética sonora semelhante.

Produtores fazerem o público comprar um CD inteiro por uma ou duas músicas que eram hit, era uma estratégia bem comum a partir dos anos 1980 e até o início dos anos 2000.

Hoje, o formato de CD morreu, e o modo atual de consumo de música é muito diferente em vários ângulos. Começando com o fato de que dificilmente paramos hoje para escutar um álbum completo, pois a experiência de um álbum conceitual exige uma dedicação e concentração exclusiva, que é algo raro no cenário contemporâneo.

A evolução dos CDs e Mixtapes de antigamente culminou justamente na conveniência de ter plataformas que oferecem música de forma praticamente imediata, refletindo a necessidade do público de ter músicas instantaneamente.

Por consequência disso, existe uma crescente popularização de playlists que simulam um padrão estético e sonoro, geradas automaticamente por serviços de streaming, sem conter músicas muito peculiares ou desviantes daquele padrão.

Sessões dentro do serviço de streaming que sugerem novas playlists.

Hoje é necessário, por parte do artista, encontrar o equilíbrio entre algo diferente o suficiente para chamar atenção do ouvinte, mas não diferente demais a ponto de destoar do padrão que os serviços de streaming atuais oferecem.

Padrão esse, claro, que é formado por uma demanda do público, já que diferentemente dos CDs, quando se usa um serviço de streaming, é possível ver exatamente os dados relacionados às músicas ouvidas pelo assinante. Assim, esses serviços têm informações suficientes para promover uma experiência auditiva boa e sem muitas surpresas, de baixo compromisso.

Ou seja, diferentemente da época das Mixtapes, o desenvolvimento das playlists tem participação totalmente indireta do público, no sentido de que é apenas através de dados que ele dita o que irá e não aparecer na playlist.

Apesar do compartilhamento e consumo de playlists estar extremamente estabelecido no comportamento da maior parte da população já, prevemos uma volta dos discos de vinil, tanto em um sentido vintage quanto em um sentido retrô. Essa especulação se dá ao fato de o número de vendas de discos de vinil ter aumentado nos últimos anos, e indicar que existe realmente uma demanda por esse tipo de artigo.

É estranho pensar que em tempos onde músicas tão intrinsecamente digitais e experiências tão atuais (como o álbum DAMN. já citado) têm demanda suficiente para um formato ultrapassado. Talvez seja pela nostalgia, pela falta do coletivo que hoje se ausenta não só na forma como consumimos playlists, mas na forma como consumimos música no geral.

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