Interesse público ou do público: o impacto das métricas de audiência nas decisões
editoriais

Inovação em Jornalismo
Tendências no Jornalismo
8 min readNov 20, 2018

O jornalista passa a ter em mãos dados privilegiados de sua audiência, mas faz-se necessário atrelar a interpretação dos números de audiência às decisões estratégicas da empresa, de forma a encontrar um equilíbrio na rotina jornalística e não comprometer a credibilidade e os valores jornalísticos

Carla Escaleira

A análise da audiência passa a ser a busca por geração de dados que mostrem um detalhamento fiel do número de pessoas, suas características e comportamentos relacionados ao consumo de notícias

Osavanços digitais impulsionados pelo advento da Internet comercial, em 1995, transformaram as tecnologias da informação e da comunicação (TICs) e impactaram o ecossistema jornalístico. Em um intervalo de apenas 20 anos, o jornalismo migrou do analógico para o digital e se deparou com a consolidação do mobile. Ademais, a emergência de novas redes sociais também transformou o jornalismo industrial e abriu precedentes para mudanças no processo de produção e consumo da notícia em rede, transformando a forma pela qual os conteúdos são produzidos e consumidos.

Neste contexto, o aumento da informação que circula na Web transformou o
comportamento da audiência e também a rotina da redação jornalística. Grande parte da audiência migrou para a plataforma online e as novas gerações, os chamados nativos digitais, não foram acostumados a assinar, pagar ou até mesmo ler jornais impressos, uma vez que cresceram em meio ao ambiente digital. Trata-se, porém, de uma mudança de paradigma, que não se restringe aos jornais impressos, mas também afeta a audiência da rádio e da televisão. Segundo Egle Spinelli e Elizabeth Saad (2017, p. 75–76), “os negócios precisam ser readaptados a partir da formação de uma cultura organizacional que seja construída e evolua na direção dos valores mutantes requisitados por uma sociedade digitalizada”.

Tal cenário potencializa a urgência dos jornalistas pensarem em novas formas de produzir e distribuir conteúdo, além da necessidade de aferição detalhada de sua audiência, de forma a contribuir para o engajamento do público — estimulando o consumo de conteúdo, compartilhamento e circulação. Para João Canavilhas, Vitor Torres e Diógenes de Luna (2016, p.135), “a necessidade de conhecer o leitor é fundamental para todos os meios de comunicação social, mas é particularmente importante no setor online devido às suas potencialidades de interação e personalização”.

Esta análise da audiência passa a ser a busca por geração de dados que mostrem um detalhamento fiel do número de pessoas, suas características e comportamentos relacionados ao consumo de notícias. As redações passam a incorporar ferramentas e métricas de audiência que oferecem dados muito precisos sobre o comportamento da audiência. Ferramentas, tais como Google Analytics, Chartbeat e Adobe Omniture, indicam rapidamente o quê, como e onde o público está consumindo determinado conteúdo, além de indicar suas preferências e assuntos mais debatidos.

O comportamento é produto do nosso tempo. Com tantos dados de consumo e audiência, de perfil de usuário e de seus hábitos e interações sendo coletados em tempo real por meio de softwares como o Google Analytics ou outros sistemas, o jornalismo tem à sua disposição informações quantitativas como nunca antes foi possível. (VIEIRA; CHRISTOFOLETTI, 2015, p. 78)

Dessa forma, a reação da audiência às notícias torna-se um importante balizador na seleção, produção e publicação de conteúdo, alterando a rotina jornalística tradicional.

As empresas estão percebendo que os bancos de dados e as ferramentas de monitoramento de audiência podem ajudá-las a compreender seu público e a desenvolver narrativas, produtos informativos diversificados e multimídias conectados com os valores de um público específico. (SPINELLI; CORRÊA, 2017, p. 86)

Em paralelo, o foco em fidelizar a audiência também traz fortes impactos para a rotina jornalística. Os critérios de noticiabilidade e as questões éticas passam a ser colocados em xeque, uma vez que a busca pelo engajamento da audiência pode potencializar a produção de notícias de interesse do público, em detrimento de conteúdo de interesse público, podendo comprometer, inclusive, a credibilidade do veículo. João Canavilhas, João, Vitor Torres e
Diógenes de Luna (2016) destacam o impacto no nível social institucional.

Percebem-se também as alterações que a cultura das métricas pode provocar no nível social institucional, principalmente pela força externa que a audiência (e a sua presença nas redações simbolizada pelos dados oferecidos
por softwares de web analytics) indica nas decisões editoriais e na hierarquização das informações oferecidas ao leitor. (CANAVILHAS; TORRES; LUNA, 2016, p. 140)

Já Lívia Vieira e Rogério Christofoletti (2015, p. 78) destacam que “o problema, contudo, não é a existência de dados e métricas que podem ameaçar a prática de um jornalismo mais inclinado humanisticamente. É a cultura organizacional que frequentemente interpreta essas métricas”. Por exemplo, o profissional pode priorizar temáticas que já estão sendo debatidas pela audiência, ao invés de publicar um assunto que ainda não é público. Claro que há exceções, mas os editores passam a ter que escolher entre colocar em sua homepage, por exemplo, uma matéria de interesse do público — que as métricas aferiram como relevantes para o público -, para alcançar mais cliques e audiência, ao invés de publicar alguma matéria de interesse público — alinhada aos critérios de noticiabilidade e ética jornalística -, que talvez não alcance tantos consumidores.

Em busca de um maior tráfego em suas páginas, as empresas correm o risco de serem “contaminadas”pela audiência, incorporando conteúdos mais voltados ao entretenimento do que a informação, ou apelando para o
grotesco, e ainda deixando de lado a função dos jornalistas como gatekeepers e criadores da agenda. (MESQUITA, 2016, p. 175)

Ainda sobre este dilema editorial, é válido ressaltar que as métricas devem ser usadas como ferramentas auxiliares e não devem ser encaradas como únicos fatores para a publicação ou não de determinado conteúdo, de forma a evitar, inclusive, o prejuízo de sua qualidade noticiosa e sua consequente perda de valor.

A busca de audiência, como objetivo principal, tem sempre um custo para uma mídia séria. Ela produz graves efeitos indesejáveis e geralmente conduz ao sacrifício do rigor deontológico, da existência profissional e, portanto, de
sua credibilidade. (RAMONET, 2012, p.131)

Lívia Vieira e Rogério Christofoletti (2015) reforçam que os jornalistas não podem limitar suas decisões editoriais apenas à mensuração dos cliques e visualizações das páginas; tais ferramentas devem ser auxiliares ao processo de seleção, produção e circulação de conteúdo, de forma a equilibrar o que é interesse público e do público.

Cliques e visualizações de página não podem ser as métricas mais importantes para as decisões editoriais de um veículo jornalístico online. Também não podem ser a únicas a orientar as tomadas de decisão numa estratégia de atração da atenção dos públicos e financiadores. A compreensão crítica e a necessidade de análises qualitativas parecem surgir como alternativas seguras e inteligentes, em meio a um cenário em constante mutação. Conjugar esses esforços é um dos desafios do jornalismo online. (VIEIRA; CHRISTOFOLETTI, 2015, p. 86)

Mesquita ainda reforça que a qualidade e a ética da notícia devem continuar sendo as prioridades jornalísticas.

Há que ser consideradas a questão ética, a necessidade de atenção para que não haja nem um comprometimento da agenda pública, nem um embaçamento do limite entre jornalismo e publicidade, e tão pouco para que o jornalismo não fique preso à “ditadura” dos números (tráfego no site, compartilhamentos no Facebook, seguidores, dentre outros). (MESQUITA, 2016, p. 175)

Em resumo, o jornalista passa a ter em mãos dados privilegiados de sua audiência, capazes de aproximar o veículo de seu público, mas em contrapartida, faz-se necessário atrelar a interpretação dos números de audiência às decisões estratégicas da empresa, para encontrar um equilíbrio na rotina jornalística e não comprometer a credibilidade jornalística e os valores da imprensa. Rogério Christofoletti (2008, p.34) ainda destaca que “no jornalismo, como em outras atividades, é necessário buscar uma forma de combinar fazer bem com fazer o bem. Vincular técnica e ética”. Faz-se necessário uma nova cultura organizacional.

A sedução da visibilidade, a ostensividade dos números, o chamariz das métricas, conjugadas, acabam criando e alimentando um ambiente de preocupação e euforia nas redações. Tais tensões impactam na cultura e na prática do jornalismo online, contribuindo para a adoção de medidas
desesperadas de atração da atenção do público, não devidamente ancoradas em valores jornalísticos ou sequer em estratégias comerciais. As pressões por resultados imediatos, as incertezas sobre como reagem os públicos nesse ecossistema tão complexo, e o abandono de parâmetros efetivamente informativos criam essa “cultura de cliques”, um espírito de manada que contagia todos os postos da cadeia produtiva jornalística. (CHRISTOFOLETTI; VIEIRA, 2015, p. 79).

É uma grande mudança de paradigma, já que antigamente a imprensa não queria formar conceitos com base na opinião pública, muito pelo contrário, seu objetivo era pautar a opinião do público. Faz-se necessário definir novas rotas jornalísticas, financeiras e administrativas para se adaptar a essas mudanças. Ainda não há um modelo de financiamento eficaz para o jornalismo praticado nas redes, mas é notório que ele deverá prever o uso
intensivo de base de dados, novas ferramentas de análise e novas maneiras de comunicar ao público.

Dessa forma, a transformação no ecossistema jornalístico, requer uma maior
compreensão do novo comportamento da audiência, que com o auxílio das métricas e ferramentas da audiência, em equilíbrio com os critérios de noticiabilidade das empresas jornalísticas, busca gerar um conteúdo que atenda aos desejos do público, mas de forma a respeitar a ética, qualidade e clareza da informação e, preservar as informações de interesse público. Assim, como destaca Wilson Gomes (2009, p. 69), “mais que uma função social, o serviço ao interesse público é valor eminente e o princípio que o prescreve torna-se uma determinação moral”. Ou seja, trata-se de uma nova fase comunicacional, que por meio da consolidação das novas tecnologias digitais, busca atrair cada vez mais o público conectado e formular modelos de negócios mais rentáveis e inovadores, mas que não deve deixar de sempre vislumbrar o equilíbrio entre a produção de notícias de interesse público e do público.

Referências

CANAVILHAS, João; TORRES, Vitor; LUNA, Diógenes de. Da audiência presumida à audiência real: influência das métricas nas decisões editoriais dos jornais online. Mediapolis: revista de comunicação, jornalismo e espaço público, n. 2, 2016.

CHRISTOFOLETTI, Rogério. Ética no jornalismo. São Paulo: Contexto, 2008.

CHRISTOFOLETTI, Rogério; DE SOUZA VIEIRA, Lívia. Métricas, ética e “cultura do clique” no jornalismo online brasileiro: o caso de resistência do não fo. de. Dispositiva, v. 4, n. 1, p. 74–87, 2015.

COSTA, Caio Túlio. Um modelo de negócio para o jornalismo digital. Revista de Jornalismo ESPM, v. 9, p. 51–115, 2014.

GOMES, Wilson. Jornalismo, fatos e interesses: ensaios de teoria do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2009.

MESQUITA, Giovana. A audiência potente e as mudanças no jornalismo: um olhar para o espanhol lavanguardia.com e para o latino-americano diariodepernambuco.com. Brazilian Journalism Research, v. 12, n. 3, 2016.

RAMONET, Ignacio. A explosão do jornalismo: Das mídias de massa às massas de mídias. 1ª Edição. São Paulo: Publisher Brasil, 2012.

SPINELLI, Egle M.; CORRÊA, Elizabeth Saad. Reinventar, valorar e fortalecer: estratégias de inovações em modelos de negócio nas organizações jornalísticas. Comunicação & Inovação, v. 18, n. 36, p. 79–94, 2017.

Carla Escaleira é jornalista graduada pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (2016). Atualmente, é mestranda do Mestrado Profissional em Produção Jornalística e Mercado (MPPJM) da ESPM, na linha de pesquisa Lógicas e Modelos de Gestão em Jornalismo.

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Projetos desenvolvidos na disciplina “Inovação, Tecnologia e Sociedade” do Mestrado Profissional em Produção Jornalística da ESPM-SP