Watch Espn: a criação de valor em um aplicativo esportivo

Inovação em Jornalismo
Tendências no Jornalismo
9 min readNov 20, 2018

Histórico, modelo de negócio e novos formatos de conteúdo para chegar direto ao consumidor

Renata Soares Netto

Watch Espn — Plataforma de streaming

Não foram apenas os jornais impressos do mundo todo que tiveram que se reinventar quando a internet chegou com tudo na vida dos leitores nos anos 2000. A necessidade de se criar um aplicativo para que o usuário pudesse acessar o conteúdo de maneira mais prática e no celular passou a ser uma demanda de todas as mídias tradicionais, incluindo as emissoras de TV por assinatura. E a ESPN nos Estados Unidos foi uma das primeiras redes a lançar um aplicativo em 2010, o Watch ESPN, para que o fã de esporte pudesse assistir os canais lineares a qualquer hora, em qualquer lugar — evidentemente, desde que já fosse assinante de alguma operadora do ramo. Um produto novo, com um pé no modelo de negócio antigo, mas já com o olho no futuro do que chamam de Jornalismo Pós- Industrial.

O jornalismo pós-industrial parte do princípio de que instituições atuais irão perder receita e participação de mercado e que, se quiserem manter ou mesmo aumentar sua relevância, terão de explorar novos métodos de trabalho e processos viabilizados pelas mídias digitais.[…] Serão mudanças sofridas, pois irão afetar tanto a rotina diária como a autoimagem de todos os envolvidos na produção e distribuição de notícias. Sem isso, no entanto, a redução dos fundos disponíveis para a produção do jornalismo fará com que no futuro a única opção seja fazer menos com menos. Não há, na crise atual, solução capaz de preservar o velho modelo. (ANDERSON, BELL, SHIRKY, 2012, p. 38)

Para uma empresa de mídia esportiva que tem a maior parte de sua programação focada na transmissão ao vivo de eventos – onde a emoção de se assistir uma partida na hora em que ela acontece é insubstituível a qualquer replay posterior — esses eventos ao vivo poderiam ser suficientes para serem atrativos aos fãs de esporte ficarem somente na TV. Porém, não foi o que aconteceu. Até para as mídias esportivas apareceu a necessidade de se criar outros valores além do ao vivo. Num mundo onde a Netflix vem entrando e conquistado usuários que gostam de assistir produtos especiais na hora em que bem entendem, ter filmes e conteúdo diferenciados poderia ser um trunfo para fisgar os fanáticos por séries a gastarem um tempo com o aplicativo da Espn assistindo a bons exemplares de Storytelling (“narrativa” em inglês e termo usado para descrever conteúdo envolvente).

O segredo para qualquer grau de “sucesso” de longo prazo reside no Storytelling e na atração de um público cativo em um espaço digital onde banners, cliques, cutucadas, vídeos de gatos e uma série de outras distrações são abundantes (MILLER, 2014, p. XIII).

A cultura de levar ao universo esportivo a linguagem cinematográfica ganhou maior notoriedade em 2009, quando a ESPN criou o selo “30 for 30” e convidou 30 diretores renomados de Hollywood a escolheram histórias emocionantes do esporte para transformarem em filmes, como parte da comemoração dos 30 anos da rede americana. A série foi muito premiada e serviu como um excelente acervo para posteriormente entrar na área de VOD (video on demand) do Watch ESPN, para segurar espectadores um pouco mais do que só na hora dos jogos, num ambiente ESPN. A iniciativa de prestígio do “30 for 30” deu tão certo (rendeu boas cifras de patrocínio e distribuição) que a Espn continuou a produzir narrativas impactantes, expandindo a marca até para uma versão em podcast. O auge desse selo foi em 2016 com “O.J: Made in America”, um documentário de 7 horas e 47 minutos, exibido nos cinemas, que contou a história do grande astro do futebol americano, que foi acusado de assassinar sua mulher. O filme dirigido por Ezra Edelman venceu a categoria “melhor filme estrangeiro” no Oscar. “O.J: Made in America” virou também uma série de 5 capítulos que bateu recordes de audiência no Watch ESPN no mundo todo, para conteúdo que não são eventos ao vivo.

Seguindo a tendência da ESPN dos Estados Unidos, a ESPN Brasil iniciou um movimento de ter em sua versão regional conteúdos diferenciados no Watch ESPN. Produtos feitos exclusivamente para esta plataforma, para criarem valor e ajudarem os negócios. No Brasil, o Watch ESPN passou a ser vendido também para empresas de telefonia e de internet com serviços de streaming. A notícia de que a empresa tinha necessidade por conteúdos originais, bem produzidos e editados foi música para os ouvidos de repórteres especiais que vinham enfrentando dificuldade para se dedicarem às reportagens especiais. Depois de alguns cortes de pessoas, por conta da crise no modelo de negócio da TV paga que a empresa enfrentou no mundo todo, em 2015 e 2016, as redações espn foram reduzidas. As verbas de produção também caíram. Com isso, as reportagens especiais (que demandam mais saídas com equipes de gravação e mais horas de ilhas) passaram a ser raridade. Mas quando há um modelo de negócio que precisa de atrativos, os recursos voltam a ser priorizados e os repórteres especiais voltam a pensar em conteúdos diferenciados. Porém nesse cenário tão competitivo, há uma cobrança por conteúdos inovadores. Nada de textos em off e passagens — como são chamadas as aparições on camera em matérias nos telejornais de hard news. A quantidade diminui, mas a qualidade tem de ser elevada.

No Watch ESPN Brasileiro existem três bons exemplos de conteúdos jornalísticos inovadores, seguindo a tendência do storytelling que até a publicidade tem ido atrás, que tem ajudado a ESPN Brasil a manter sua credibilidade também nessa plataforma, e claro, a tornar o produto com mais valor ainda. São histórias que não ficam velhas, que são interessantes de serem assistidas por um longo período de tempo. A começar pelos temas ligados ao futebol, o editor chefe Wagner Patti dirigiu 10 episódios da série Código de Ética, que tinha como argumento desvendar o que pode e o que não pode dentro de campo, em regras que não estão no papel, que formam códigos invisíveis e velados. Apresentada pelo repórter André Plihal, que também apresenta o programa de boleiros Resenha ESPN, a série traz uma linguagem diferenciada da reportagem usual, construída também pelo cinegrafista Marcelo D’Sants: um bate papo entre o repórter e jogadores de futebol sem o tradicional microfone de mão, captação aérea com drone, fotografia primorosa, locação em campo de várzea como cenário, participação de jogadores figurantes que representam as jogadas discutidas. O resultado são vídeos de cerca de oito minutos cada, com uma edição leve e curiosa.

Também está disponível no Watch ESPN a série Desafios — duas temporadas de três episódios de cerca de 7 minutos cada. O conteúdo é resultado da sinergia entre o repórter Mendel Bydlowiski e Raphael Correa que juntos realizam um trabalho de direção cinematográfica em cima de histórias pra lá de inspiradoras. Há um garoto com paralisia que conseguiu uma cadeira especial para participar de corridas, um jogador de futebol que foi morador de rua, um ciclista de 61 anos que foi viciado em drogas, entre outros personagens que superaram momentos difíceis e através do esporte vivem histórias de sucesso.

Mas o melhor exemplo de construir um conteúdo jornalístico com uma narrativa diferenciada vem da série de temporadas onde jornalistas da ESPN vivenciaram profissões do mundo do futebol, e na pele, mostraram a realidade de funções que se fosse feito através de uma reportagem normal, não teriam trazido detalhes de quem vive certos papéis. O trabalho tem direção do repórter especial Marcelo Gomes e direção de fotografia de Marcelo D’Sants. Na primeira temporada, chamada “Sangue, Suor e Filantropia”, a repórter Gabriela Moreira treinou durante dez dias no time da Juventos e chegou a jogar uma partida — tendo vivenciado como é difícil se dedicar a um esporte que não tem incentivo, investimento, estrutura. “De comentarista a Professor” mostrou como o comentarista Paulo Calçade teve aulas e se preparou para treinar um time de verdade da periferia. Calçade também atuou durante um jogo real e sentiu na pele como um treinador tem de arranjar forças para motivar jogadores mesmo em situações adversas. “Candidato a Juiz” levou o repórter Mendel Bydlowswi a passar por um curso de árbitro e a apitar num jogo amistoso. “Sonho de Garoto, Vida Louca de Goleiro”deu ao comentarista Leo Bertozzi a chance de vivenciar uma das posições mais cruéis do futebol. “Estado de Choque” teve um clima tenso e colocou o comentarista Gustavo Hofman a ser treinado pela Polícia Militar que atua em dias de clássico, onde frequentemente acontecem brigas nas torcidas. Gustavo atuou num clássico junto com a tropa de choque e no processo passou por um forte trabalho físico, com direito a sentir os efeitos de bomba de efeito moral. Por fim, “Dudu, o Presidente” acompanhou os bastidores de um presidente de clube, o Dudu Monsanto, que também é comentarista, mas que abraçou o Serrano por puro amor ao time de sua terra natal. A linguagem dessas temporadas foi sendo aprimorada ao longo das execuções. E o mais recente teve uma perfeita narrativa cinematográfica, com direito a figurante para representar o Dudu quando criança, misturada com o estilo de reality show de acompanhamento emocionante, quando o Serrano entra em campo depois de tanta dedicação do dirigente jornalista.

Criar familiaridade do espectador com esse tipo de conteúdo é um bom caminho para a próxima fase que este mercado de mídia esportiva de TV Paga está entrando nos Estados Unidos e que em breve deve chegar com mais força no Brasil também: a venda de conteúdo diretamente ao consumidor. Dois lançamentos este ano mexeram com a América : o “B/R Live”, da Turner Sports, serviço streaming que mistura jogos ao vivo com um hub para levar os espectadores para eventos esportivos, com alguns jogos para serem comprados individualmente; e o espn+, o primeiro serviço de streaming direto ao consumidor do grupo Disney, com eventos esportivos diferentes dos que os canais transmitem e uma vasta biblioteca de filmes do “30 for 30” e programas exclusivos, como o Detail, apresentado pelo astro Kobe Bryant que foca no estudo do Basquete para ajudar os espectadores a entenderem melhor os jogos. No Brasil , o aplicativo da Fox ousou entrar nesse modelo de negócio, ainda que as operadoras de TV por assinatura pudessem se incomodar por terem o mesmo conteúdo que serve de apelo para seus consumidores, sendo vendidos diretamente para os fãs, e incluindo em seu cardápio, estão os canais Fox Sports, com todos os jogos de Copa Libertadores, Brasileirão e La Liga (Campeonato Espanhol). Há também o canal Esporte Interativo que na internet já oferece por um custo baixo a assinatura para o fã de esporte assistir aos jogos da UEFA Champions League.

O plano de “compre qualquer jogo que você quiser” da Turner e o “pagamento mensal para acesso ilimitado” da ESPN e da Fox são estratégias divergentes com o mesmo objetivo final: convencer os fãs de esportes que estão cortando assinaturas de TV Paga que eles ainda podem assistir jogos que eles querem, pagando menos, por uma forma de distribuição diferente.

Num artigo recente na revista Variety de março, Justin Connolly, vice-presidente executivo de vendas e marketing de afiliados da Disney / ESPN Media Networks reconheceu que o jogo mudou para as emissoras de esportes: “Temos que nos desafiar sobre como mantemos relevância e conexão em todos os pontos ao longo do caminho, de modo que a marca ESPN continue a significar algo especial”. E há dois fatores que podem tornar esse produto um sucesso. O primeiro é o preço - o fã de esporte americano pode experimentar a magia da marca e ainda pagar bem pouco por isso (U$ 4,99 por mês). O outro fator para a confiança no novo serviço é o fornecimento de tecnologia da BAMTech, pioneira no desenvolvimento de serviços de streaming de vídeo. Desenvolvida sob a égide da Major League Baseball, a BAMTech estava intimamente envolvida na construção da HBO Now para a Time Warner e tem uma reputação de fornecer milhões de streams de vídeo individuais em grande parte sem problemas. A Disney (detentora da ESPN) já controlava um terço do empreendimento, mas em 2017 acelerou um acordo que teve que comprar uma participação majoritária até 2020, gastando US $ 1,58 bilhão para comprar outra participação de 42%, segundo o mesmo artigo da revista Variety.

E vem mais novidade por ai: a Disney está preparando um super serviço de streaming para concorrer diretamente com a Netflix ( que já tem mais de 120 milhões de assinantes no mundo) e pra isso, comprou nada menos do que parte dos ativos de Rupert Murdoch, da 21rst Century Fox, por mais de U$ 72 bilhões. Vem coisa inovadora por aí.

Referências

ANDERSON, C. W.; BELL, Emily; SHIRKY, Clay. Jornalismo Pós-Industrial: adaptação aos novos tempos. Revista de Jornalismo ESPM, abril-junho de 2013, pp. 30- 89.

HAAS, Guilherme. Serviço de streaming da Disney: 5 primeiros detalhes revelados! Tecmundo, 09 fev. 2018.

MILLER, Carolyn Handler. Digital Storytelling: A Creator’s Guide to Interactive Entertainment. Third Edition. Focal Press, 2014.

STEINBERG, Brian. Can a New President and Streaming Service Help ESPN Win Again? Variety, 2018.

Renata Soares Netto é jornalista, gerente sênior de Inovação e Desenvolvimento de Conteúdo na Espn, e mestranda na ESPM onde cursa o Mestrado Profissional de Produção Jornalística e Mercado.

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Projetos desenvolvidos na disciplina “Inovação, Tecnologia e Sociedade” do Mestrado Profissional em Produção Jornalística da ESPM-SP