Realidade

Maria João
Tenho voz!
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3 min readMar 28, 2018

Estávamos em 1994 e um grupo de quatro fotógrafos sul africanos, em ambiente de plena luta pelo fim do Apartheid, decidiu lutar de objectivas em punho. O mundo e as agências noticiosas decidiram chamar-lhes The Bang Bang Club.

Quatro homens (Kevin Carter, de quem falo hoje, Greg Marinovich, Ken Oosterbroek e João Silva, luso descendente) decidiram enfiar olhos dentro dos países de primeiro mundo as atrocidades e a realidade africana, sem dó, nua e crua como a própria realidade que viviam.

Carter, cansado da indiferença do Mundo perante a calamidade sul africana de então, decidiu expandir a realidade ao continente e rumou ao Sudão, juntamente com Oosterbroek.

Ainda hoje as atrocidades e a fome, sejam onde forem, são realidades duras de engolir.

O ponto de viragem na vida de Kevin Carter foi esta fotografia: ganhou o Pullitzer, ganhou o World Press Photo, ganhou fãs, ganhou inimigos. Acusaram-no de negligência, de frieza, de falta de humanidade, de doença… Disparou primeiro, afastou o abutre da menina esfomeada depois. Sentou-se à sombra de uma árvore a fumar um cigarro e a chorar, declarou ao receber o Pullitzer.

A realidade é brutal seja para quem a vive, seja para quem se vê obrigado a vê-la. Há todo um conjunto de emoções e revoltas quando nos apresentam uma realidade que não concebemos. O fotojornalismo no fim dos anos 80 teve exactamente esse propósito: mostrar a quem não vive as realidades que elas existem e precisam ser desmanteladas, com a rapidez de um telefonema e, na altura, à distância e tempo de um fax. Rápido, urgente, muito urgente, imprescindível, inegável!

Em 1945 (o fotojornalismo começou muito antes, mas isso é uma conversa para outro dia.), Roosevelt , presidente dos Estados Unidos, ordenou que as atrocidades dos campos de concentração fossem documentadas, aquando da queda do regime Nazi. Há-de chegar o dia que um imbecil qualquer vai dizer que isto nunca aconteceu, disse. Fotografaram vivos e mortos, cadáveres que respiravam e as condições dantescas que encontraram.

O dia que alguém tentou negar chegou, mas as fotografias estavam lá. Os registos da realidade sobreviveram ao contrário dos milhares de judeus que caíram e que muitos quiseram negar.

Quando falamos de Carter, falamos de um dos que ajudou a termos a Etiópia, o Sudão, a Nigéria e outros, todos os dias nos blocos noticiosos do Mundo inteiro à hora de jantar com as imagens mais inacreditáveis do que o ser humano pode fazer ao seu semelhante. Falamos de um militar sem armas, que registou o que o Mundo não queria mas precisava ver! Falamos da realidade que o fotojornalismo nos espeta até à alma quando queremos viver cegos para o sofrimento dos outros. Falamos de gente que não teve formação militar, mas que também vai à guerra e sofre de Síndrome Pós Traumático.

Carter suicidou-se 6meses depois de receber o prémio, por culpa, dizem.

A Fome é uma realidade, a morte por razão nenhuma é uma realidade.

O que Kevin Carter ( e Greg Marinovich, Ken Oosterbroek, João Silva, James Natchwey…) me deu na minha formação foi a concepção de realidade, de não deixar de disparar seja pelo que fôr, em que condições fôr (João Silva continuou a fotografar no momento em que uma bomba lhe amputou as pernas em 2010). Vigora a lei do Texas: disparas primeiro, prestas auxílio depois. Porque a realidade que estás a documentar nunca está na imaginação de quem não a vive e o Mundo tem de ser confrontado com ela!

Maria João

Todos os direitos reservados ao autor.

Consultem:

Getty Images , para história completa da Menina Sudanesa (que na realidade era um menino)

Leiam o livro The Bang Bang Club, Snapshots of a Hidden War. (vejam o filme também.)

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