A Epístola de Tiago é um problema (pra quem?) [I]

Ortodoxia, Ortopraxia e Ortopatia. Uma análise da epístola de Tiago nas lentes da América latina:

Pedro Duarte
Teologando
20 min readSep 25, 2024

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A epístola de Tiago é uma carta de profundo impacto no meio evangélico latino-americano, em um contexto pobre como o nosso, seu conteúdo reconfortante, é uma certeza de que Deus se importa com os pobres e os oprimidos. Deus se importa com a gente.

A América Latina é uma região muito diversa; desfrutamos de uma riqueza de culturas, tradições e cenários sociais que influenciaram as nossas interpretações e vivências da fé cristã. Tudo isso fruto da desigualdade, onde muitos de nossos irmãos e irmãs enfrentam a pobreza e a marginalização. E é aqui na epístola, que encontramos um farol de esperança, onde inúmeros teólogos latino-americanos a utilizam para clamar por justiça social, solidariedade com os menos favorecidos e para denunciar as opressões que pesam sobre os nossos ombros. Movimentos como a Teologia da libertação e a missão integral surgiram no nosso meio defendendo a opção de Deus pelos pobres e que todos os seres humanos têm direito à liberdade e à dignidade. Com isso, a fé cristã deve se engajar na promoção desses valores, gerando libertação na consciência dos seus adeptos.

A mensagem de Tiago, é um chamado urgente para todos nós, povo latino-americano, buscarmos intencionalmente soluções para aliviar o sofrimento dos pobres e oprimidos, assumindo a responsabilidade de agir em conformidade com os princípios da justiça e compaixão, a fim de proporcionar alívio àqueles que mais necessitam.

Também em nosso contexto, teologias americanas como Palavra da fé e batalha espiritual se apoderaram da epístola nos anos 80 e 90, causando grande confusão em nosso meio. Livros traduzidos, pregadores importados, programas de rádio e televisão foram dublados e tudo isso raptou a consciência de brasileiros como os meus pais.

Nasci em uma família do Rio de Janeiro profundamente influenciada pelos movimentos neocarismáticos surgidos na segunda metade do século 20, inevitavelmente, inevitavelmente impactados por tais interpretações. Minha mãe é uma mulher de oração típica, profundamente inspirada pela teologia de batalha espiritual do Pastor Derek Prince e do Benny Hinn. Ela teve contato direto com os ensinamentos de Prince através da Ap. Valnice Milhomens e da Ap. Neusa Itioka, que lideraram dois dos maiores ministérios de oração e intercessão do Brasil, e com Benny Hinn durante as várias vezes que a Igreja Renascer em Cristo o trouxe ao Brasil nas décadas de 90 e 2000. Além da batalha espiritual, o movimento “Palavra da Fé” sempre esteve presente em minha vida. Kenneth Hagin se tornou uma figura influente em minha casa; meus pais foram expostos a muitos ensinamentos sobre confissão da palavra, intercessão, cura divina, teologia da prosperidade e outros temas através da editora Graça.

Recentemente tive a oportunidade de conversar com a minha mãe sobre as teologias neopentecostais, e cheguei a conclusão, que tais pensamentos foram vendidos como as únicas possibilidades de interpretação do texto bíblico. Esses movimentos, hoje, estão entre os ramos mais desenvolvidos do fundamentalismo. Eles pegaram conceitos verdadeiros como “Deus deseja abençoar todos os seus filhos” e “Curas ainda são reais” e os amplificaram ao extremo. Agora, não se trata mais de Deus que cura, mas sim da ideia de que você não teve fé suficiente para ser curado. Não se trata mais de Deus abençoando com riquezas (uma afirmação que tem muitas nuances até mesmo dentro do texto bíblico), mas sim da crença de que “se você é pobre, é porque não se esforçou o suficiente para receber a bênção de Deus”.

A lógica neopentecostal se alia ao fundamentalismo e ao espírito neoliberal do nosso tempo e cria um metamorfo, capaz de dominar o discurso evangélico na América latina. Eles conseguiram transformar a graça em algo capaz de ser alcançado, falar sobre mérito e esforço para alcançar o favor de Deus nunca foi tão escutado antes dos movimentos neocarismáticos. Na busca de tentar entender a nossa realidade e procurar respostas para a sociedade, é crucial buscar uma leitura da epístola através da “pastoralidade” respeitando o nosso contexto e cultura, corrigindo os erros e curando as pessoas que esses movimentos feriram.

Em um contexto evangélico marcado por tantos escândalos, Tiago se torna um farol para uma vivência pura e genuína do verdadeiro evangelho, gerando potência e firmeza no coração de seus leitores.

A epístola tem ensinamentos poderosos sobre uma fé pública relevante e justiça social, dando o cerne para uma vivência responsável enquanto evangélicos, o que faz com que a carta se torne de extrema importância em nosso país. No Brasil, o cristianismo representa aproximadamente 90% da sociedade, sendo esse número divididos entre católicos e protestantes, com 50% dos habitantes sendo católicos e 40% evangélicos¹. Há previsões de que até 2032, os evangélicos ultrapassem os católicos e se tornem a maioria, com 60% da população². Nesse contexto em constante mudança, a responsabilidade de exemplificar os princípios do verdadeiro cristianismo recai sobre todos nós. À medida que o número de evangélicos cresce, é essencial lembrarmos que a fé não é apenas um sentimento, mas um compromisso profundo com os ensinamentos do Cristo. Devemos esforçar-nos para ser uma influência positiva na sociedade, promovendo a compaixão, a justiça social e o amor ao próximo. Isso envolve ações concretas, como o apoio aos necessitados, o respeito pelas diferentes crenças e o diálogo inter-religioso para construir uma sociedade mais harmoniosa.

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Um (singela) introdução:

Ao passar sobre temas como fé e dinheiro, a carta de Tiago nem sempre foi uma unanimidade no cristianismo. Segundo o Dr. Timothy George, a epístola de Tiago não tem nenhuma citação por nenhum pai da igreja (do século II), e não aparece no fragmento de Muratori (uma cópia da lista mais antiga dos livros do segundo testamento). Sendo citada por Atanásio de Alexandria entre os livros canônicos e por Teodoro de Mopsuéstia como uma das obras “Antilegomena” (obra contestada). Durante a Reforma Protestante, Lutero descreve a carta como “uma epístola de palha” em comparação ao ensino paulino, tendo como motivação principal para a sua contestação sobre a “inspiração” da epístola, a sua autoria e seus ensinamentos enraizados no judaísmo.³ Vale ressaltar que essa é uma carta destinada ao público judeu, e infelizmente, o antissemitismo era algo crescente na Europa medieval.⁴

Tradições bíblicas e populares sobre Tiago, o Justo:

Pela tradição da igreja, a carta é atribuída a Tiago, o Menor, irmão — ou primo — de Jesus, mencionado em Mt 13:55; Mc 6:3, onde é identificado como um dos irmãos consanguíneos de Cristo. Tiago era incrédulo (João 7:5), porém tornou-se um dos líderes mais influentes da igreja primitiva, chegando até a ser chamado de Coluna da igreja pelo Apóstolo Paulo em Gálatas 2:9.

Historicamente, Torna-se seguidor de Cristo após a ressurreição e é martirizado pelas mãos dos judeus, em 62, por apedrejamento conforme relatado pelo historiador Flávio Josefo⁵. Contudo, segundo Hegésipo, datado do século II, utilizado por Eusébio no século IV⁶, ele foi empurrado do pináculo do templo pelos fariseus e escribas e morto por uma clava um pouco antes do ano 66 a.C.

Entretanto, existem duas possibilidades apócrifas sobre a morte de Tiago, o Justo, que são encontradas nos textos apocalípticos gnósticos. Consoante, o “Segundo Apocalipse de Tiago”, datado do século II, ele teria falecido por apedrejamento (sendo essa a certeza da existência uma crença popular sobre a morte de Tiago).

…eles decidiram atirá-lo de grande altura e o fizeram….eles o agarraram e bateram nele enquanto o arrastavam pelo chão. Eles o esticaram e colocaram grandes pedras sobre seu abdômen. Eles o chutaram dizendo “Você errou!”. E novamente o ergueram, pois ainda vivia, e fizeram com que cavasse um buraco. Eles o fizeram entrar nele. E tendo preenchido com terra até o abdômen, eles o apedrejaram⁷. (Autor desconhecido, Segundo Apocalipse de Tiago)

O “Primeiro Apocalipse de Tiago” é datado do século 5 e foi concebido como uma continuação do Segundo Apocalipse de Tiago. No manuscrito, o autor relata que ele teria escapado para Pela (a antiga capital da Macedônia) e possivelmente teria falecido de velhice.

Como apontado até o presente momento,a autoria da carta é cheia de controvérsias e não se pode ter certeza alguma sobre ela. É importante evidenciar que esse texto também não propõe o aprofundamento dessas questões). Contudo, partirei do pressuposto de que Tiago é um pseudônimo de um autor judeu que escreve parte da carta para refutar algum ensinamento Paulino ou de Paulo. Assim sendo, é provável que o autor se utilize de alguma tradição antiga direta de Tiago na construção da Epístola

Outras possibilidades são prováveis. Teorias como a de Tiago ser uma carta judaica cristianizada[1], a composição coletiva[2] entre outras[3] são pensamentos relevantes.

O conteúdo:

A carta possui uma linguagem própria, distante dos textos do Novo Testamento. Ele dialoga com os livros poéticos judaicos, mas faz uma leitura própria desses textos, fazendo conversa com algumas das tradições populares dos ensinamentos de Cristo. Por isso, tem ensinamentos que se assemelham ao texto de Lucas e Mateus, pois acredita-se, que beberam da mesma fonte primitiva dos evangelhos ou das tradições populares dos ensinamentos de Jesus.

Apesar de provavelmente a carta ser destinada aos judeus, era uma carta circular e de conteúdo popular que era enviada para as mais diversas igrejas. (No final do texto deixarei as citações e algumas indicações de conteúdos para se aprofundar nas discussões em torno da narrativa de Tiago)

Outras possibilidades são prováveis. Teorias como a de Tiago ser uma carta judaica[1], a composição coletiva[2] entre outras[3] são pensamentos relevantes.

Preta, Pobre e Pentecostal: A religião de Tiago

Relutei por muito tempo em escrever um texto que relacionasse o pentecostalismo à Epístola de Tiago, justamente pela pouca referência pneumatológica presente nessa carta. Sempre que tentava estabelecer essa conexão, parecia que eu estava forçando uma abordagem mais adequada à teologia sistemática do que à teologia bíblica. Isso ocorre porque grande parte da pneumatologia ocidental é fortemente pautada na teologia paulina, enquanto as epístolas gerais, como a de Tiago, recebem menos atenção nas proposições pneumáticas.

Por outro lado, a Epístola de Tiago oferece um vasto campo para os cristianismos de libertação, devido à sua mensagem crítica em relação aos ricos e à defesa dos oprimidos. Propor um diálogo entre a experiência do pentecostalismo latino-americano e a realidade abordada por Tiago parece ser um desafio, mas é uma oportunidade valiosa para explorar novas perspectivas teológicas que integrem experiência espiritual e justiça social.

Tiago, sendo um judeu, está imerso nas figuras de linguagem e no contexto cultural de sua época e localidade. Ele dirige sua epístola a um público diversificado, tanto pobres quanto ricos, com o objetivo de conscientizar os judeus convertidos sobre a importância de uma fé prática, manifestada por meio da justiça social e do apoio aos necessitados.

A Palestina, uma província crucial para o Império Romano, estava sob o controle político e tributário de Roma. A economia de Israel era essencialmente agrária, com a maioria da população vivendo do campo, não só para sua subsistência, mas também para o pagamento de impostos ao governo romano e às elites locais. A riqueza estava concentrada em uma pequena elite composta por sacerdotes, grandes proprietários de terra e cobradores de impostos, enquanto a maioria da população vivia em condições de subsistência. Essa desigualdade acentuava as tensões entre ricos e camponeses pobres, frequentemente levando a sentimentos de revolta.

O cristianismo nasceu dentro desse contexto de pobreza, opressão e forte expectativa messiânica. Jesus, pregando principalmente nas aldeias e cidades da Galileia e da Judeia, atraiu seguidores das classes mais baixas, como pescadores, camponeses e marginalizados sociais. Seu ensino de justiça, compaixão e o Reino de Deus falava diretamente às aspirações das massas oprimidas.

O pentecostalismo surge em um contexto histórico distinto, marcado por profundas transformações sociais, políticas e religiosas, na virada do século XIX para o século XX. Esse movimento nasce nos Estados Unidos, em um cenário de segregação racial, desigualdades econômicas e mudanças industriais e urbanas. A virada do século também trouxe consigo tensões religiosas e um anseio por renovação espiritual, em resposta ao racionalismo e ao formalismo que dominavam muitas igrejas tradicionais.

No período pós-Guerra de Secessão (1861–1865), os Estados Unidos enfrentavam os desafios da reconstrução social, particularmente nas relações raciais e econômicas. Apesar da abolição da escravidão, as práticas segregacionistas continuavam a marginalizar a população negra, especialmente no sul do país. Esse ambiente de opressão e exclusão social criou um terreno fértil para o surgimento de movimentos religiosos que ofereciam uma nova esperança espiritual e comunitária para os marginalizados.

Ao contrário das cartas de Paulo, a abordagem de Tiago em relação aos ricos e poderosos se alinha mais diretamente aos textos dos profetas e às mensagens de Jesus nos evangelhos sinóticos. Sua denúncia não visa apontar dois caminhos, mas expor com firmeza as injustiças, utilizando uma linguagem que remete tanto aos escritos proféticos quanto às exortações de Jesus narradas nos evangelhos.

No Brasil, o pentecostalismo floresceu no início do século XX em um contexto de forte desigualdade social e econômica, especialmente nas regiões periféricas e faveladas. Seus membros, muitas vezes marginalizados e com pouca instrução, eram vistos como a escória da sociedade. Parafraseando a Pastora Viviane Costa no podcast Inteligência Ltda, o típico fiel pentecostal é um pedreiro, alguém que a voz não é escutada, mas à noite, ele veste seu terno, vai à igreja e ali ele possui um título eclesiástico. Nesse espaço, sua voz é ouvida e valorizada. Existe um empoderamento do Espírito e uma capacitação que a experiência da glossolalia traz.

Vivemos em um país machista e estruturado sob o racismo, no qual a maioria da população é composta por pessoas negras e mulheres. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a população brasileira é predominantemente negra, com 56% dos brasileiros se identificando como pretos ou pardos, e 52% como mulheres. No entanto, essas características demográficas nem sempre refletem na liderança e no poder em diversos setores da sociedade, incluindo nossas igrejas. Muitas igrejas mais tradicionais nem acreditam na possibilidade da mulher exercer um cargo de liderança, muito menos pastoral.

No pentecostalismo o recorte é outro, nas igrejas pentecostais o papel feminino desempenha uma tarefa significativa. As mulheres pentecostais, frequentemente provenientes de contextos mais humildes, exercem cargos de liderança, como pastoras, evangelistas, missionárias e líderes de círculo de oração. A experiência da glossolalia, proporciona a elas uma plataforma para se afirmarem, se empoderarem e transformarem suas comunidades.

Igualmente, a igreja primitiva atraiu um número desproporcional de mulheres e pessoas de baixa condição social. A mensagem cristã de igualdade e salvação era acessível a todos, independentemente de seu status social, oferecendo uma oportunidade para serem afirmados e acolhidos. Para muitos, a comunidade cristã servia como um refúgio e uma nova identidade, proporcionando um espaço de valorização e pertencimento para aqueles que eram marginalizados pela sociedade romana⁸.

Ao utilizar a teoria de Gilbert Durand⁹, o conceito de margem remete à distinção entre o centro e a periferia na construção dos imaginários. A margem representa o espaço dos excluídos, dos oprimidos e daqueles que não pertencem ao poder central. Dentro do contexto pentecostal e da Epístola de Tiago, a margem se configura como um lugar de resistência e transformação. Nesse ambiente, as forças simbólicas que emanam dos marginalizados criam novas formas de espiritualidade, marcadas pelo isolamento e marginalização.

Essa espiritualidade marginalizada, portanto, não apenas ecoa as críticas de Tiago às estruturas de poder econômico e religioso, mas também reflete a busca pentecostal por uma experiência direta com o divino, que transcende os limites impostos pelas instituições dominantes. A margem se torna o espaço de emergência de uma teologia encarnada, onde o Espírito Santo atua de forma libertadora, capacitando os marginalizados a reverterem as dinâmicas de opressão por meio de uma fé viva, que se manifesta tanto em práticas de justiça quanto em experiências espirituais transformadoras.

Capítulo 1:

“Eu, Tiago, escravo de Deus e do Senhor Jesus, escrevo às doze tribos espalhadas que aguardam a vinda do Reino: Saudações!”

Essa é a única descrição que o autor faz de si mesmo na carta. O escritor (ou escritores) de Tiago possuía um status grande na igreja de Jerusalém, visto o tom de autoridade presente na carta. Segundo a tradição Tiago, o menor possuía grande estima, pois além de um grande líder, era também irmão de Jesus.

O próprio Eusébio de Cesaréia um historiador cristão do século 4 diz: “Naquele tempo também Tiago, o chamado irmão do Senhor […] a quem os antigos puseram o sobrenome de Justo, pelo superior mérito de sua virtude, refere-se que foi o primeiro a quem se confiou o trono episcopal da Igreja de Jerusalém”

escravo de Deus e do Senhor Jesus

Em um contexto como o nosso, ultilizar a palavra “Escravo” ou “Servo” gera inúmeras dúvidas e gatilhos. A América Latina foi assolada pela escravidão; tendo uma migração forçada de milhões de africanos por europeus e a exploração de inúmeros povos nativos. Tiago está escrevendo a um público judeu, e nesse contexto, se auto-intitular “escravo de Deus e de Cristo” possui um peso religioso, comunica a disparidade entre o autor e Deus; ele se coloca em uma posição de inferioridade e submissão ao propósito divino.úmeras figuras de progonismo, como profetas e reis, eram chamadas assim durante o primeiro testamento. Ser escravo de Deus e de Cristo é possuir grande estima religiosa e social. É ser conhecido como alguem de zelo e responsabilidade com a religião e comunica ao receptor que ser submisso a Cristo e ao serviço de Deus é importante.

“Deus e do Senhor Jesus” como uma possivel afirmação da Divindade de Cristo em um mundo Judeu monoteista:

Essa frase em uma desapercebida leitura inicial, pode até parecer frívola, mas quando olhada com certa cautela percebemos a indicçao de uma possivel afirmação (ainda que primitiva e mal desenvolvida) equitativa entre o Deus-Pai e Cristo.

Tiago de alguma forma compara Servir a Cristo com Servir a Deus. No judaísmo, o termo “Senhor” (Adonai) carrega um profundo significado, classificando Deus como o soberano, o criador e o legislador da história. Quando Tiago menciona a relação entre servir a Cristo e servir a Deus, ele aponta para uma continuidade ou proximidade entre essas duas figuras, sugerindo que a autoridade de Cristo não é apenas como um reflexo moral, mas um reconhecimento da sua Divindade. Sendo essa uma figura de linguagem bem próxima do mundo judeu, visto que o termo era usado com frequencia na torá) como uma indicação ao monoteísmo a judaica (pré-exilio) e ao monoteímo clássico (pós-exilio).

escrevo às doze tribos espalhadas

O autor contextualiza a carta “às doze tribos espalhadas que aguardam a vinda do Reino”. Isso significa que o autor destina a carta a um público israelita mais amplo, pois não se dirige somente às 10 tribos levadas para o cativeiro e posteriormente dispersas. A perseguição fez com que os cristãos fossem dispersos pelo Império, indo da Fenícia à Macedônia. O autor escreve de forma católica, a judeus e gentios, espalhados pelo mundo, conectando-os ao conceito de “povo de Israel” e atribuindo a eles a continuidade da tradição profética.

Os que haviam sido dispersos pela perseguição, iniciada com a morte de Estêvão, foram parar na Fenícia, em Chipre e em Antioquia, mas ainda falavam e se relacionavam apenas com outros judeus. Então, alguns homens de Chipre e Cirene foram a Antioquia e começaram a pregar a Mensagem aos gregos. Deus gostou do que fizeram e mostrou sua plena aprovação: muitos gregos creram e se converteram ao Senhor. (Atos 11:19 — A mensagem)

Chame a dor pra um café:

“Amigos, quando lutas e aflições os atingirem em cheio, saibam que isso é um presente especial. Vocês verão como a fé será fortalecida e como terão forças para continuar até o fim. Por isso, não desistam facilmente. Essa perseverança os ajudará a amadurecer e a desenvolver plenamente o caráter de vocês.” (A mensagem)

Essa parte serve como uma transição de assuntos, marcando uma mudança de foco. O uso de “meus irmãos” por Tiago demonstra ternura e estabelece uma conexão emocional com os destinatários, que em sua maioria eram judeus novos convertidos e frequentemente vítimas da violência do império, sendo constantemente perseguidos e mortos. Embora isoladamente essa afirmação possa parecer injusta e cruel, especialmente considerando o contexto greco-romano dos destinatários, onde o sofrimento era muitas vezes visto como necessário para purificar a alma humana das paixões terrenas, Tiago não encerra seu pensamento aqui. Para ele, o sofrimento é visto como um meio de alcançar a sabedoria, sugerindo uma visão mais profunda e transcendente sobre o caos da vida.

Aqui Tiago aponta um das principais mensagens da epístola, a “alegria moral da religião”, ressoando os textos de sapiencia do seu período. A imagem da Sabedoria aparece constantemente no Primeiro testamento e nos deuterocanonicos, principalmente no livro de Sabedoria e em Provébios onde ela ganha pessoalidade.

Entre o caos e o Deserto:

No pentecostalismo popular, existe um linguajar específico, quase como uma linguagem de gueto compartilhada entre os irmãos. Há várias figuras de linguagem, como manto, mistério, varão, entre muitas outras. O "deserto" é uma dessas figuras; é usado para descrever um período de provação e crescimento, além de estar intimamente ligado aos movimentos de batalha espiritual, representando as tentações que todo crente enfrenta.

A figura do deserto é frequentemente extraída de passagens como a tentação de Jesus no deserto (Mateus 4:1-11) e a jornada dos israelitas rumo à Terra Prometida (Êxodo 13-17). Nessas narrativas, o deserto é apresentado como um espaço de provação e transformação. No caso de Jesus, é o lugar onde, após um período de jejum, Ele confronta diretamente Satanás e suas tentações. A resistência de Jesus às propostas malignas simboliza a vitória espiritual sobre os desejos da carne e a sedução do poder, mostrando que o deserto pode ser um campo de batalha onde a fé é refinada e fortalecida.

Para Israel, o deserto foi um local de formação de identidade, onde Deus se revelou e onde os judeus experimentaram provisões milagrosas. Essa jornada, repleta de desafios, espelha a caminhada do crente, que, no deserto, enfrenta suas fraquezas e falhas, mas também testemunha a fidelidade de Deus.

Tiago tem algo a oferecer a compreensão de "deserto"?

"Aquele que encara lutas e aflições e as superam é um felizardo! É gente assim que ama a Deus e é fiel de verdade. Eles receberão como recompensa a vida plena. Tiago 1:12 (A mensagem)"

O texto de Tiago nos aponta um caminho pra lidar com o sofrimento. Como canta irmão Lázaro: "o deserto é a escola do Senhor". Para Tiago, passar por provações deve ser encarado com alegria (Tiago 1:2), pois é uma oportunidade de sermos aperfeiçoados. Embora pareça uma ideia radical, essa imagem é comum em vários textos do Novo Testamento. Paulo, em Romanos 5:3-5, destaca que as tribulações são necessárias para experimentarmos o que Deus derrama generosamente em nós por meio do Espírito Santo. Para Tiago, as provações são testes divinos que produzem perseverança e prática.

Essa prática é o verdadeiro viver. As provações devem nos moldar em humildade. Assim como Cristo enfrentou o caos desta existência, somos chamados a encará-las com alegria, tal como Ele fez. Jesus é o exemplo de quem suportou dor e sofrimento, mas sua experiência nos mostra o caminho do serviço. Como Filipenses 2 nos ensina, devemos nos submeter como Cristo, que, sendo Deus, não se apegou à sua igualdade com Deus, mas escolheu ser servo. O chamado de Tiago, logo no início de sua carta, ecoa essa mensagem: suportem as provações e vocês serão exaltados pelo Pai. Trata-se de uma exaltação futura, mas também presente, pois as provações transformam nosso modo de viver, nos conduzindo a um bem viver.

O caos da existência deveria nos apontar um caminho de serventia. Amar ao próximo. Pra Tiago de nada adianta ter uma fé desencarnada, a fé precisa ser manifestada em atitudes palpáveis. Só assim podemos aliviar os sofrimentos da vida e da existência. Tiago não nos chama para respondermos o problema do mal e sim para aliviarmos ele. Assim como Cristo morre para salvar a muitos, Tiago nos chama a uma postura semelhante. Uma fé encarnada.

O caos da existência deveria nos direcionar ao caminho da serventia, levando-nos a amar o próximo de maneira prática e real. Para Tiago, não basta professar uma fé teórica ou desencarnada; a fé verdadeira precisa ser visível e se manifestar em atitudes concretas e palpáveis, refletindo o amor de Deus em ações que tocam a vida das pessoas ao nosso redor. Não se trata de uma fé isolada, confinada a palavras ou crenças internas, mas de uma fé que se encarna no cotidiano, que se expressa na solidariedade. Tiago nos desafia a vivermos uma fé que faz a diferença, que, ao invés de responder filosoficamente o problema do mal, respondermos através do abraço e choro. Assim como Cristo morre em favor de muitos, Tiago nos chama a uma postura igual, em que estamos dispostos a sacrificar nossos interesses e confortos pessoais para vivermos o evangelho de uma maneira genuína. A fé que ele nos propõe é uma fé encarnada, que se faz presente nas realidades difíceis e dolorosas da vida, transformando a existência através do serviço.

O clamor de Tiago é por uma fé que se encarna em nossa vida cotidiana, que não ignora as mazelas que enfrentamos, mas as reconhece e as denuncia.

¹ https://veja.abril.com.br/coluna/reinaldo/o-ibge-e-a-religiao-cristaos-sao-86-8-do-brasil-catolicos-caem-para-64-6-evangelicos-ja-sao-22-2

² https://veja.abril.com.br/brasil/evangelicos-devem-ultrapassar-catolicos-no-brasil-a-partir-de-2032

³ https://www.bible-researcher.com/antilegomena.html

⁴ As Cruzadas (1096–1291), originalmente organizadas como expedições militares cristãs para retomar Jerusalém e os lugares sagrados da Terra Santa, também intensificaram o ódio contra os judeus. Durante a Primeira Cruzada, muitos judeus na Europa, particularmente na Renânia (Alemanha), foram massacrados sob o pretexto de vingar a morte de Cristo. Este episódio foi um marco inicial da religiosidade medieval associada ao antissemitismo, reforçada pela crença de que os judeus eram “deicidas” (responsáveis pela morte de Jesus), uma ideia profundamente enraizada na cristandade medieval, que alimentava uma visão negativa sobre os judeus.

A Peste Negra, que assolou a Europa entre 1347 e 1351, marcou outro ponto crítico no aumento do antissemitismo. Com o avanço da doença e o desespero da população, judeus foram falsamente acusados de envenenar poços para espalhar a peste, resultando em massacres de comunidades judaicas inteiras, como o massacre em Estrasburgo em 1349. Além disso, a marginalização econômica dos judeus, associados à prática da usura em uma sociedade cristã que proibia a cobrança de juros, contribuiu para o ressentimento econômico e religioso contra eles. Esses eventos intensificaram a violência e a discriminação, consolidando o antissemitismo que moldaria as atitudes europeias em relação aos judeus por séculos.

⁵ JOSEFO, Flávio. Livro XX. In: Antiguidades Judaicas. (https://www.biblestudytools.com/history/flavius-josephus/antiquities-jews/book-20/chapter-9.html), capítulo 9.

⁶ CESARÉIA, Eusébio. De como Tiago, chamado irmão do Senhor, sofreu o martírio. In: CESARÉIA, Eusébio. HISTÓRIA ECLESIÁSTICA. São Paulo: Novo Século, 2002. cap. XXIII, p. 47–48.

http://www.gnosis.org/naghamm/2ja.html

⁸ Stark, R. (1996). The rise of Christianity: History, documents, and key questions. Princeton University Press.

Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1969.

[1] A tese apresentada por Arnold Meyer em "Das Rätsel des Jakobusbriefes" segue uma abordagem que se baseia em escritores anteriores, como Spitta e Massebieau, e argumenta que a Epístola de Tiago (ou Jakobusbrief, em alemão) representa uma obra originalmente judaica, que foi posteriormente influenciada pelo cristianismo de forma moderada.

Meyer sugere que o autor de Tiago tinha raízes judaicas sólidas e que suas preocupações e temas refletiam o contexto judaico da época. No entanto, ao longo do processo de escrita, elementos cristãos começaram a se entrelaçar na mensagem, levando à cristianização gradual do texto. Isso significa que o autor inicialmente estava escrevendo para uma audiência judaica, mas acabou incorporando elementos cristãos em sua mensagem.

Essa tese desafia a visão tradicional de que o autor de Tiago era um cristão com uma perspectiva cristã distinta, enfatizando em vez disso a influência judaica em sua obra. No entanto, é importante lembrar que as interpretações acadêmicas podem variar, e a tese de Meyer é apenas uma das muitas abordagens possíveis para entender a natureza do livro de Tiago.

[2] Uma das alternativas propostas para explicar a autoria da Epístola de Tiago é a teoria da composição coletiva. De acordo com essa teoria, a carta foi escrita por um grupo de pessoas que estavam intimamente envolvidas na comunidade cristã primitiva. Cada membro desse grupo teria contribuído com seu conhecimento, perspectiva e estilo pessoal para a redação da carta.

A carta também exibe variações no estilo de linguagem e na abordagem retórica. Isso pode ser interpretado como um reflexo das diferentes vozes dos autores envolvidos na composição.

[3] A Epístola teria sido composta por um escritor que permanece no anonimato, optando por assumir a identidade de Tiago como uma estratégia para dar peso e credibilidade à sua mensagem. Tal escolha poderia ter sido motivada pelo desejo de atrair a atenção da comunidade cristã primitiva ou pela intenção de se alinhar com uma figura respeitada no contexto do Cristianismo nascente.

Referências bibliográficas:

KONINGS, Johan. Cartas de Tiago e Judas. São Paulo: Edições Loyola, 2022.

TAMEZ, Elsa. No discriminen a los pobres: lectura latinoamericana de la Carta de Santiago. Navarra: Editorial Verbo Divino, 2008.

PADILLA, René. Comentário Bíblico Latino-americano. São Paulo: Mundo Cristão, 2022.

ENG, Daniel K. Eschatological approval in the Epistle of James. University of Cambridge, 2021. Disponível em: https://www.repository.cam.ac.uk/bitstreams/a9f46040-fb36-4781-94f6-e3ac2d71a145/download.

FILHO, Heitor Bittencourt. IAKWB: A enunciação do discurso religioso. Leitura/análise do texto grego da Epístola de Tiago. Tese (Doutorado em Letras) — Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2008. 382 p.

Oliveira, . E. de, E. O. de Aquino, e E. P. L. Oliveira. “Cristianismo E Responsabilidade Social: A epístola De São Tiago Aplicada Aos Dias Atuais”. Último Andar, vol. 24, nº 38, dezembro de 2021, p. 176

Davids, Peter H. "The Epistle of James." In The New International Commentary on the New Testament. Eerdmans, 1982.

McKnight, Scot. The Letter of James. The New International Commentary on the New Testament Eerdmans, 2011.

Martin, Ralph P. James. Word Books, 1988.

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Pedro Duarte
Teologando

Amante de livros e Teologia. Espero que gostem da bagunça.