O que significa ser anglicano e evangélico (V)

John Stott sobre a diferença entre evangélicos e fundamentalistas

LUCAS
Teologando
16 min readSep 10, 2023

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O presente texto é um excerto do livro “A verdade do Evangelho” (p. 14–26), do revdo. John Stott, que pode ser encontrado aqui. A publicação não significa um endosso absoluto de todas as ideias do texto.

Três refutações

Primeiro, a fé evangélica não é uma inovação recente, uma nova marca de cristianismo que resolvemos inventar. Pelo contrário, atrevemonos a dizer que o cristianismo evangélico é o cristianismo original, apostólico, o cristianismo do Novo Testamento. Exatamente a mesma reivindicação e contra-reivindicação foram feitas no século dezesseis. Os reformadores foram muitas vezes chamados de inovadores pela Igreja Católica Romana; mas eles refutaram essa acusação. Quem estava inovando, sustentavam, eram os acadêmicos medievais; eles, pelo contrário, seriam renovadores, pois queriam voltar ao início e resgatar o evangelho autêntico e original. “ Não ensinamos nada de novo” , escreveu Lutero, “ mas repetimos e estabelecemos coisas antigas, que os apóstolos e todos os mestres piedosos já ensinavam antes de nós.” Hugh Latimer, conhecido pregador da Reforma inglesa, fez a mesma declaração: “Vós dizeis que é um novo ensinamento. Digo-vos, porém, que é o velho ensinamento.” Mais eloqüente ainda é a insistência de John Jewel em sua famosa Apologia (1562): “ Não é doutrina nossa que trazemos a vós neste dia; nós não a escrevemos, não a descobrimos, não a inventamos; nós vos apresentamos nada mais do que aquilo que nos trouxeram os antigos pais da Igreja, os apóstolos e o próprio Cristo nosso Salvador antes de nós.”

A mesma crítica, de que os cristãos evangélicos são inovadores, sempre se ouve de novo, geração após geração; e é sempre seguida da mesma refutação. John Wesley, por exemplo, foi muitas vezes acusado de introduzir novas doutrinas na Igreja da Inglaterra. Ele negava vigorosamente. “ O que eu ensino é o bom e velho cristianismo” , insistia ele

No início da extraordinária carreira evangelística de evangelização de Billy Graham, ele foi acusado, não de inovação, mas de ser um antiquado incorrigível, pois situava a causa da religião uns cem anos atrás. Mas sua réplica foi a mesma: “ Eu respondi que na verdade eu queria mesmo voltar atrás com a religião — não apenas cem anos, mas 1900 anos, até o livro de Atos, onde os seguidores de Cristo do primeiro século foram acusados de revirar o Império Romano de cabeça para baixo.”

Em segundo lugar, a fé evangélica não é um desvio do cristianismo ortodoxo. Não é um cristianismo alternativo nem de vanguarda, é cristianismo conservador. 0 cristão evangélico não vê problema algum em recitar o Credo Apostólico ou o Credo Niceno ex animo, sem reservas mentais e sem precisar cruzar os dedos ao fazê-lo. “ Evangélico” , apesar da antipatia que tem suscitado, é na verdade uma palavra nobre com um “ pedigree” extenso e honrado. 0 termo só foi se tornar jargão comum no início do século dezoito, ao ser relacionado com o chamado “ reavivamento evangélico” associado a John Wesley e George Whitefield. Mas no século dezessete ele já era aplicado tanto aos puritanos da Inglaterra quanto aos pietistas alemães, e no século dezesseis aos reformadores. Eles se autodenominavam evangeiici\ de evangeiici viri, “ homens evangélicos” , uma designação que Lutero adotou como die Evangeiischen.

Mas nem foi assim que a coisa começou de fato. No século quinze, John Wydiffe, às vezes descrito como “ estrela da manhã da Reforma”, foi chamado de doctorevangeiicus. E mesmo antes disso nós reconhecemos como proto-evangélicos aqueles que atribuíam autoridade final às Escrituras e a salvação apenas ao Jesus Cristo crucificado. Isso poderia incluir até mesmo Agostinho, um dos grandes pais da Igreja, que proclamava a graça divina como a única solução para a culpa humana. Daí é apenas um pequeno passo de volta ao próprio Novo Testamento, e ao seu evangelho, de onde os cristãos evangélicos tiram seu nome.

É na história mais recente da Igreja, contudo, que os termos “ evangélico” e “evangelicalismo” passam a ser de uso corrente (e, mais recentemente ainda, a diferenciação entre o genérico “evangélico” e o específico “evangelical” ).11 Na Inglaterra do século dezenove, por exemplo, vários líderes evangélicos ganharam proeminência nacional. Charles Simeon, em seus cinqüenta anos de ministério público (1782–1833), exerceu uma enorme influência sobre gerações de estudantes através de sua pregação expositiva. William Wilberforce, que lutou quarenta e cinco anos pela abolição da escravatura africana, junto com seus aliados conseguiu primeiramente a abolição do comércio negreiro em 1807 e, depois, da própria escravidão em 1833. As inúmeras reformas sociais instituídas por Anthony Ashley Cooper (1801–1885) foram inspiradas em suas convicções evangélicas. E J. C. Ryle, que desenvolveu seu ministério em Liverpool de 1880 a 1900, foi um ardente defensor da verdade evangélica contra as tendências que ele denominava “ romanismo” e “ceticismo”.

Na América do Norte do século dezenove houve também evangélicos proeminentes. Charles G. Finney (1792–1875), por exemplo, era tão comprometido com a evangelização quanto com a reforma social. Ele fundou toda uma série de “sociedades beneficentes” para todo tipo de filantropia que se possa imaginar; e um de seus discípulos foi Theodore Weld, que dedicou toda a sua vida à luta antiescravagista. Outro foi D. L, Moody (1837–1899), muito conhecido por sua eficiente atuação como evangelista, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra. Além disso ele atuou na área da educação e teve uma influência pessoal muito grande. Outro educador foi Charles Hodge (1797–1878); professor do Princeton Theological Seminary durante cinqüenta e seis anos, ele não só lutou pela ortodoxia evangélica como também ensinou a mais de 3.000 alunos. Convém mencionar também os irmãos Arthur e Lewis Tappan, homens de negócios muito bemsucedidos que custearam generosamente obras de reforma social, missão e evangelismo, distribuição de Bíblias, educação cristã e o movimento anti-escravagista.

Voltando à Inglaterra, foi em 1846 que nasceu uma entidade que assumiria o pomposo nome de “Aliança Evangélica M undial”- que, aliás, começou com nome errado, pois era uma organização britânica, não internacional. Então, em 1951 fundou-se a Aliança Evangélica Mundial (esta, de fato mundial) ao mesmo tempo em que aquela primeira adotava o mais modesto (e mais preciso) nome de Aliança Evangélica Britânica, tornando-se um dos membros fundadores da Aliança Evangélica Mundial que hoje conhecemos.

Em terceiro lugar, afé evangélica não ésinônimo de fundamentatismo. /Isduas coisas têm diferentes histórias e diferentes conotações.

0 “fundamentalismo” (designação que hoje em dia se costuma usar como um termo teológico pejorativo) teve origens de muito respeito. Surgiu de uma série de doze livretos intitulados Os Fundamentos, que foram distribuídos entre 1909 e 1915 por Lyman e Milton Stewart, irmãos da Califórnia do Sul. Cada livreto continha diversos artigos escritos por diferentes autores. Eles circularam aos milhões, gratuitamente. Os “fundamentos” em questão incluíam verdades cristãs básicas como a autoridade das Escrituras, a divindade, a encarnação, o nascimento virginal, a morte expiatória, a ressurreição corporal e a volta de Jesus Cristo em pessoa, o Espírito Santo, pecado, salvação e julgamento, adoração, missão mundial e evangelismo. A palavra “fundamentalista” foi cunhada para definir qualquer pessoa que acreditava nas afirmações centrais da fé cristã. Os autores de Os Fundamentos & am todos da Grã-Bretanha ou da América do Norte e incluíam personalidades evangélicas do porte de R. A. Torrey, B. B. Warfield, A. T. Pierson, James Orr, Campbell Morgan, J. C. Ryle e Handley Moule.

Originalmente, portanto, “fundamentalista” era um sinônimo aceitável para “evangélico”. Tomemos como exemplo o livreto do Dr. Carl Henry, A Incômoda Consciência do Fundamentalismo Moderno, que foi publicado em 1947 e influenciou muita gente. Nele, embora ressalte que “ o cristianismo evangélico torna-se cada vez mais indefinido no que diz respeito à referência social do evangelho” , o autor não faz distinção entre fundamentalismo e evangelicalismo.12 Aos poucos, contudo, fundamentalismo foi se associando, na mente das pessoas, a certos extremismos e extravagâncias, de maneira tal que lá pela década de 1950 líderes evangélicos norte-americanos como o próprio Carl Henry, Billy Graham e Harold Ockenga passaram a promover aquilo que convencionaram chamar de “ novo evangelicalismo” , numa tentativa de distingui-lo do antigo fundamentalismo que haviam rejeitado.

Por isso é compreensível que os c.istãos evangélicos fiquem desiludidos ao lerem livros como O Fundamentalismo, de James Barr, e Libertando a Bíblia do Fundamentalismo, de Jack Spong, os quais, seja por ignorância, seja por equívoco ou mesmo por malícia, perpetuam essa velha identificação. Esses autores escrevem como se a única opção para a igreja fosse escolher entre um liberalismo iluminado e um fundamentalismo obscurantista.

Mas é bom dizer aqui e agora, com clareza e convicção, que a grande maioria dos cristãos nega o rótulo de “fundamentalistas”; e, se eles o fazem, é porque discordam de muitos fundamentalistas autoproduzidos em muitos pontos de extrema importância.

A dificuldade de identificar quais são exatamente estes pontos devese ao fato de o fundamentalismo nunca ter se definido claramente em oposição ao evangelicalismo, ou publicado uma base doutrinária aceitável pela maioria. E eu, ao tentar fazer o contrário — ou seja, estabelecer uma distinção entre “evangelicalismo” e “fundamentalismo” seguramente me arrisco a cometer o pecado da generalização e de produzir caricaturas. Mas peço a meus ieitores que tenham em mente que o que estou tentando retratar aqui não são pessoas ou grupos identificáveis, mas certas tendências contrastantes. Reconheço plenamente que o retrato do fundamentalismo que eu apresento aqui pode espelhar um estilo norteamericano antiquado, mas não alguns de nossos contemporâneos que retêm o rótulo mas rejeitam partes da substância. De igual maneira, o retrato que eu apresento do evangelicalismo é certamente idealizado, pois, convenhamos, muitos evangélicos contemporâneos reivindicam esse nome mas estão longe de viver à altura do ideal.

A meu ver, há pelo menos dez tendências a considerar. (Por tratarse de uma diferenciação, vou referir-me, particularmente aqui, a “fundamentalistas” vs “ evangelicais”)

  1. Tratando-se do pensamento humano, a impressão que transmitem os fundamentalistas da antiga escola é que eles não confiam em conhecimento algum, inclusive as disciplinas científicas; alguns tendem a um completo anti-intelectualismo, para não dizer obscurantismo. 0 evangélico autêntico, porém, reconhece que toda verdade é verdade de Deus; que nossas mentes nos foram dadas por Deus e são, portanto, um elemento vital da imagem divina que portamos; que insultamos a Deus se nos recusamos a pensar e que o honramos quando, seja através da ciência ou das Escrituras, “ pensamos os pensamentos de Deus, assim como ele” (Johan Kepler).
  2. Quanto à natureza da Bíblia, diz o dicionário que os fundamentalistas “enfatizam a interpretação literal das Escrituras” . Isto é certamente uma calúnia, uma vez que a palavra “ literal” é usada aqui de maneira muito generalizada, Mesmo assim, não se pode negar que muitos fundamentalistas se caracterizam por um literalismo excessivo. Os evangelicais, pelo contrário, embora acreditem que tudo que a Bíblia afirma é verdade, ressaltam que parte do que ela afirma é verdade figurativa ou poética (em contraposição ao literalismo) e que ela foi escrita para ser interpretada desta forma. Com efeito, nem mesmo os fundamentalistas mais extremistas acreditam, por exemplo, que Deus possua penas (Salmo 91.4)…
  3. Em relação à inspiração bíblica, os fundamentalistas têm a tendência de crer que esta se deu num processo como que mecânico, em que os autores humanos foram passivos e não desempenharam absolutamente qualquer papel mais ativo. Do ponto de vista fundamentalista, portanto, a Bíblia teria sido ditada por Deus, algo similar ao que os muçulmanos crêem acerca do Corão, que teria sido ditado por Alá em arábico através do anjo Gabriel, sendo que a única contribuição de Maomé teria sido a de pôr as palavras no papel. Dessa forma, o Corão é tido como uma reprodução exata de um original divino. Os evangelicais, porém, enfatizam a dupla autoria da Escritura, ou seja, que o autor divino falou através de autores humanos estando estes de plena posse de suas faculdades mentais.
  4. Quanto à interpretação bíblica, os fundamentalistas parecem supor que eles podem aplicar o texto diretamente a si mesmos como se este tivesse sido escrito primariamente para eles. Com isso, ignoram o abismo cultural que se estende entre o mundo bíblico e o mundo contemporâneo. Pelo menos em tese, porém, os evangelicais tentam fazer a transposição cultural, pela qual buscam identificar a mensagem essencial do texto, retirá-la do seu contexto cultural original e recontextualizá-la, ou seja, aplicá-la ao mundo de hoje.
  5. No que diz respeito ao movimento ecumênico, a tendência dos fundamentalistas é ir além da desconfiança (para a qual há, com certeza, uma boa razão) e partir para uma rejeição cerrada, acrítica e feroz. A expressão mais gritante dessa atitude foi certamente a que se viu no Conselho Americano de Igrejas Cristãs, que foi fundado em 1941 por Carl Mclntyre. Muitos evangélicos, contudo, embora sejam críticos à agenda liberal e à metodologia muitas vezes sem princípio do Conselho Mundial de Igrejas, tentam agir com discernimento, afirmando no ecumenismo aquilo que parece ter para eles suporte bíblico e ao mesmo tempo reivindicando o direito de rejeitar aquilo que não o tem.
  6. Quanto à igreja, os fundamentalistas tendem a adotar uma eclesiologia separatista, afastando-se de qualquer comunidade que não concorde em todos os pormenores com sua própria posição doutrinária. Eles esquecem que Lutero e Calvino foram ambos cismáticos relutantes, que sonhavam com um catolicismo reformado. Já muitos evangelicais, enquanto acreditam ser certo buscar a pureza ética e doutrinária da igreja, também acreditam que neste mundo não se pode atingir a pureza perfeita. Não é fácil achar o equilíbrio entre disciplina e tolerância.
  7. Em relação ao mundo, muitas vezes os fundamentalistas tendem a assimilar acriticamente os valores e parâmetros deste (vide teologia da prosperidade); e então, em outras ocasiões, guardam distância deles, por medo de se contaminar. Quanto aos evangelicais, é claro que eles não são todos imunes à influência do mundanismo. Mesmo assim, pelo menos teoricamente, procuram manter em mente a exortação bíblica a não nos conformarmos com este mundo e esforçam-se ao máximo para obedecer ao chamado de Jesus para impregnarmos este mundo sendo sal e luz, impedindo que este se corrompa e iluminando-o em meio às trevas.
  8. Quanto à questão da raça, a tendência dos fundamentalistas (especialmente nos Estados Unidos e na África do Sul) tem sido a de ater-se ao mito da superioridade branca e defender a segregação racial, mesmo no seio da própria igreja. Seguramente o racismo existe também entre os evangelicais; mas há uma vontade majoritária de arrepender-se dele. Pode-se dizer que eles, em sua maioria, proclamam e praticam a igualdade racial, manifesta originalmente na criação e sobretudo na pessoa de Cristo, que derrubou os muros de separação racial, social e sexual para criar uma humanidade única e unida.
  9. Com respeito à missão cristã, a tendência dos fundamentalistas é insistir que “missão” e “ evangelização” são sinônimos e que a vocação da igreja consiste tão somente em proclamar o evangelho. Mas os evangelicais, mesmo dando prioridade à evangelização, acham impossível dissociá-la da responsabilidade social. Como no ministério de Jesus, também hoje palavras e atos, proclamação e demonstração, boas novas e boas obras se complementam e reforçam mutuamente. Separálos, escreveu Carl Henry, tem sido “ o vergonhoso divórcio do protestantismo” .
  10. Quanto à esperança cristã, os fundamentalistas tendem a criar dogmas sobre o futuro, se bem que certamente não detenham o monopólio do dogmatismo. Mas eles costumam prender-se a detalhes consideráveis no que tange ao cumprimento das profecias, dividindo a história em rígidas dispensações; além disso, aliam-se a um sionismo cristão que ignora as graves injustiças cometidas contra os palestinos. Já os evangelicais, ao mesmo tempo que afirmam com fervor e expectativa a volta visível, gloriosa e triunfante de nosso Senhor Jesus Cristo em pessoa, preferem continuar agnósticos no que diz respeito aos detalhes sobre os quais até mesmo cristãos de profunda solidez bíblica diferem em seus pontos de vista.

Tendências e doutrinas do evangelicalismo

Ao expor as três refutações acima eu fui, sem dúvida alguma, bastante negativo. Já é mais do que hora de ser positivo. Até aqui nós vimos o que a fé evangélica não é. Mas então, o que ela é? Antes de tentarmos responder esta questão, é importante que se reconheça que na medida em que o assim chamado “ movimento evangelical” cresce pelo mundo afora, ele também se diversifica.

Já houve várias tentativas de classificar as diferentes tendências evangélicas. Em abril de 1998 o editor do “Jornal da Igreja Inglesa” sugeriu, num clima de gozação bem pertinente à nossa realidade local, que haveria “ 57 variedades de evangélicos” (uma alusão às 57 variedades de produtos de supermercado Heinz). Rowland Croucherfaz menção a um certo professor de seminário da Califórnia que diz ter conseguido identificar dezesseis tipos de evangélicos,15 enquanto que Clive Calver escreve sobre as “ doze tribos” do evangelicalismo.16 Outros observadores reduzem este número à metade.

Já houve várias tentativas de classificar as diferentes tendências evangélicas. Em abril de 1998 o editor do “Jornal da Igreja Inglesa” sugeriu, num clima de gozação bem pertinente à nossa realidade local, que haveria “ 57 variedades de evangélicos” (uma alusão às 57 variedades de produtos de supermercado Heinz). Rowland Croucherfaz menção a um certo professor de seminário da Califórnia que diz ter conseguido identificar dezesseis tipos de evangélicos,15 enquanto que Clive Calver escreve sobre as “ doze tribos” do evangelicalismo.16 Outros observadores reduzem este número à metade.

Em 1975, o ano seguinte ao Congresso de Lausanne para Evangelização Mundial, o professor Peter Beyerhaus, de Tübingen, distinguiu seis agrupamentos evangélicos diferentes:

  1. Os Novos Evangélicos (incluindo o próprio Billy Graham), que se distanciaram da “ dendafobia” e do conservadorismo político dos fundamentalistas e lutam pelo máximo possível de colaboração.
  2. Os Fundamentalistas Conservadores, que não se comprometem em sua atitude separatista.
  3. Os Evangélicos Confessionais, que atribuem muita importância a uma confissão de fé e a uma rejeição dos erros doutrinários contemporâneos.
  4. Os Pentecostais e Carismáticos.
  5. Os Evangélicos Radicais, que reconhecem um compromisso sociopolítico e tentam conciliar testemunho evangélico com ação social.
  6. Os Evangélicos Ecumênicos, que vêm desenvolvendo uma participação crítica no movimento ecumênico.

Quase vinte anos depois, em seu livro Fé Ecumênica numa Perspectiva Evangélica (Eerdmans, 1993), Gabriel Fackre (da Escola de Teologia Andover Newton) publicou uma lista parecida, composta de seis categorias: fundamentalistas (‘‘polêmicos e separatistas” ), antigos evangélicos (cuja ênfase jaz na conversão pessoal e no evangelismo de massa), novos evangélicos (reconhecimento da responsabilidade social e apologética), evangélicos da paz e da justiça (ativistas sociopolíticos), evangélicos carismáticos (que frisam a manifestação do Espírito Santo através do dom de línguas, da cura e adoração) e evangélicos ecumênicos (preocupados com unidade e cooperação). É uma classificação interessante de tendências, algumas das quais compartilham áreas comuns.

Uma outra pergunta que convém fazer é: que outras doutrinas os cristãos evangélicos têm em comum? Afinal, se é verdade que se pode traçar uma certa continuidade na fé evangélica através de séculos da história da igreja, às vezes brilhando intensamente e às vezes quase morrendo, de que se constitui essa continuidade? Obviamente, houve uma evolução, e assim como os desafios mudaram, também as reações se transformaram. Mesmo assim, a maioria dos observadores concorda que é possível discernir um consenso genérico.

Convém destacar um cuidadoso estudo sobre os fundamentos do evangelicalismo feito por dois acadêmicos britânicos, um deles teólogo anglicano e o outro, um historiador batista. Estou me referindo à monografia de J. I. Packer intitulada O Problema da Identidade Evangélica Anglicana (1978) e à extensiva obra de D. W. Bebbington, O Evangelicalismo na Inglaterra Moderna (1989).

A “ anatomia do evangelicalismo” do Dr. Packer é caracteristicamente completa. Consiste de quatro afirmações genéricas e seis convicções específicas. As afirmações são: que o evangelicalismo é “ cristianismo p rático” (um estilo de vida de total discipulado sob o Senhor Jesus Cristo), “ cristianismo p u rd ‘, até mesmo “mero cristianismo” (já que “ não se pode acrescentar nada ao evangelho sem, conseqüentemente, tirar algo dele” ), “ cristianismo unitivd’ (que busca unidade através de um compromisso comum à verdade evangélica) e “ cristianismo racionai’ (em contraposição à preocupação popular com a experiência).

Em seqüência a estas quatro afirmações gerais, o Dr. Packer assim identificou seis fundamentos evangélicos (as frases-chaves são dele, as sinopses entre parênteses, minhas):

  1. A supremacia da Escritura Sagrada (em virtude de sua inspiração única e exclusiva).
  2. A majestade de Jesus Cristo (o Homem-Deus que morreu como sacrifício pelos pecados).
  3. O senhorio do Espírito Santo (que desempenha uma série de ministérios vitais).
  4. A necessidade de conversão (um encontro direto com Deus que somente Deus pode efetuar).
  5. A prioridade da evangelização (na qual o testemunho é uma expressão de culto).
  6. A importância da comunhão (por ser a igreja essencialmente uma comunidade de crentes atuante).

Cerca de uma década mais tarde publicou-se a obra magistral do Dr. David Bebbington, O Evangelicalismo na Inglaterra Moderna. Nela, Bebbington delineia o que seriam para ele as “quatro características principais” do evangelicalismo. Seriam elas: “ conversionismo, a convicção de que vidas precisam ser transformadas; ativismo, a expressão do esforço evangelístico; bibiicismo, uma consideração especial pela Bíblia; e o que se poderia chamar de crucicentrismo, uma ênfase no sacrifício de Cristo na cruz.” “Juntos”, concluiu David Bebbington, “estes formam um quadrilátero de prioridades que constitui a base do evangelicalismo”.19 0 Dr. DerekTidball conclui que o quadrilátero de Bebbington “se estabeleceu muito rapidamente como a coisa mais próxima de um consenso a que se poderia pretender chegar”.

Podemos até não gostar muito dos quatro “ismos” um tanto quanto esotéricos do Dr. Bebbington. Mas não se pode deixar de atentar para a seleção que ele faz — a Bíblia e a cruz, o evangelismo e a conversão — , elementos que o Dr. Packer já havia enfatizado. Isso ilustra o julgamento de Bebbington de que embora o evangelicalismo tenha sido “ moldado e remoldado pelo seu ambiente” ,21 mesmo assim ele tem “ um núcleo comum gue permaneceu notavelmente constante através dos séculos”

Ao mesmo tempo, ao refletir nestas duas listas similares de diferenciais evangélicos, eu confesso uma certa inquietação. Será de todo apropriado, pergunto a mim mesmo, que uma atividade como o evangelismo, uma experiência como a conversão e uma observação como a necessidade de comunhão, por mais que tenham uma sustentação teológica, sejam enquadradas no mesmo escalão de verdades tão imponentes quanto a autoridade das Escrituras, a majestade de Jesus Cristo e o senhorio do Espírito Santo? Para mim, elas parecem pertencer a categorias completamente diferentes. Talvez o que eu esteja pedindo seja apenas um remanejamento das cartas. Mas me parece importante, ao tentarmos definir a essência da nossa identidade evangélica, que façamos distinção entre ação divina e ação humana, entre o primário e o secundário, entre o que tem seu lugar no centro e o que está nalgum lugar entre o centro e a circunferência.

Por essa razão eu tomei a liberdade de sugerir um ajuste. Na lista de fundamentos do evangelho proposta por Jim Packer e Alister McGrath, os três primeiros têm a ver (deliberadamente, sem dúvida) com as três pessoas da Trindade: a autoridade de Deus nas Escrituras e através destas, a majestade de Jesus Cristo na cruz e por meio dela, e o senhorio do Espírito Santo nos seus múltiplos ministérios e por meio deles. Mas as três características evangélicas seguintes (conversão, evangelismo e comunhão) não são tanto uma adição às três primeiras, mas sim uma elaboração destas. Afinal, é o próprio Deus, a Santíssima Trindade, que leva à conversão, promove o evangelismo e gera a comunhão. Portanto, do meu ponto de vista, seria muitíssimo esclarecedor se limitássemos nossas prioridades evangélicas a três, sejam elas: a iniciativa reveladora de Deus Pai, a obra redentora do Deus Filho e o ministério transformador de Deus o Espírito Santo. Todos os demais fundamentos evangélicos encontrarão o seu espaço apropriado em algum lugar sob o guardachuva dessa rubrica trinitária.

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LUCAS
Teologando

História, teologia, vida e o que mais me vier à cabeça.