O que significa ser anglicano e evangélico (VI)

“Evangélico: uma maneira de ser anglicano”, de Robinson Cavalcanti

LUCAS
Teologando
7 min readSep 10, 2023

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O presente texto foi transcrito na íntegra da coletânea “A diversidade teológica do anglicanismo”, do antigo Instituto Anglicano de Estudos Teológicos (IAET). Por ter sido lançado em 2000, algumas informações do texto estão desatualizadas (John Stott faleceu em 2011, e Dom Robinson em 2012). Sua publicação não significa um endosso da minha parte de todas as ideias, tanto do texto, quanto de Dom Robinson.

O “Evangelicalismo”

O “Evangelicalismo” se constitui em um dos mais dinâmicos movimentos no cristianismo contemporâneo, como manifestação de um protestantismo confessante e missionário. Confessante pela crença na necessidade e veracidade de certas proposições doutrinárias: os Credos Históricos e os pontos convergentes das Confissões de Fé resultantes da Reforma no século XVI. Missionário, pela rejeição do sacramentalismo e do universalismo e a ênfase no cumprimento da Grande Comissão. Em seu meio, tem-se procurado equilibrar certas tônicas: a ortodoxia, a piedade, a reflexão teológica, a evangelização, a responsabilidade social e política, a unidade e a contextualização.

Um marco histórico em sua caminhada foi o Congresso de Lausanne, de 1974, e o seu famoso “Pacto”, considerado o mais importante documento confessional desde Westminster. A Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial (LCWE) e a Aliança Evangélica Mundial (WEF) são as principais agências promotoras de unidade, cooperação e avanço evangélico. Em nosso continente, a associação de pensadores conhecida como Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL) tem-se notabilizado pelo caráter holístico (integral) de sua produção intelectual.

Em alguns círculos eclesiásticos, por desconhecimento ou preconceito, se teima em generalizar a denominação de “fundamentalistas” para os evangélicos, o que não é exato no que concerte aos momentos históricos, e não faz justiça a diversificação de suas tendências.

Muitos dos mais influentes líderes evangélicos são anglicanos. Não seria exagero afirmar que a liderança teológica desse movimento é cada vez mais anglicana. O bispo David Guitari (Primaz da Igreja Anglicana do Quênia) preside a Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial. Os bispos Jack Daian (Diocese de Sidney) e Festos Kevengere (Uganda), dentre outros, têm estado à frente do Movimento de Lausanne.

Incontestavelmente, o pensador mais influente no “evangelicalismo” atual é o Rev. John Stott, Reitor Emérito da paróquia de All Souls, Capelão Honorário de S.M. Britânica, com suas obras amplamente traduzidas, atualmente dirigindo o Instituto Londrino para o Cristianismo Contemporâneo (LICC).

A influência anglicana também se faz presente no “evangelicalismo” brasileiro, por meio de livros, artigos e conferências. O Rev. James Packer (“Evangelismo e soberania de Deus”), o Rev. Michael Green (“Mundo em fuga”), e o Rev. John Stoot (“Cristianismo básico”, “Contra-cultura cristã”, e outros) estão entre os mais lidos em todas as denominações, especialmente entre os jovens.

Talvez onde esses teólogos sejam menos conhecidos, paradoxalmente, seja entre os seus irmãos da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. O conhecimento desses autores, bem como da vitalidade do movimento que representam, somente seria benéfico para nossa igreja, em termos de consciência dos feitos de Deus naquele meio, de aprendizagem de seus aspectos positivos e de uma percepção maior da riqueza da diversidade anglicana.

Anglicanismo evangélico

Os anglicanos evangélicos, herdeiros da tradição da “Igreja Baixa”, esstão organizados em uma entidade internacional, a Fraternidade Evangélica na Comunhão Anglicana (EFAC), com vários movimentos associados na maioria de nossas províncias eclesiásticas, e que publica o informativo “EFAC Bulletin”, promovendo encontros e intercâmbios.

O que é, afinal, um anglicano evangélicos?

1. Um anglicano evangélico se considera parte da comunidade protestante. Vê o anglicanismo como um dos ramos históricos do protestantismo, enriquecido pela manutenção de sadias tradições pré-reformadas e pela consciência de sua catolicidade. Não fosse a Reforma do século XVI não existiria anglicanismo.

Para o evangélico, a leitura histórica anglo-católica parece carecer de suporte científico, sendo antes o resultado da opção restauracionista que varreu o Velho Mundo na segunda metade do século passado, como reação de inseguranças diante da modernidade. No lugar de suportes objetivos (autoridade das Escrituras, Confissões de Fé) e de suportes subjetivos (conversão), escolhe-se a via do fundamento eclesiástico-institucional, com a história reescrita de frente para trás, e sobre ela erigindo-se todo um questionário sistema doutrinário e litúrgico, em um espírito de “Contra-reforma” anglicana. Na revalorização do passado o evangélico prefere uma aproximação à Igreja Primitiva que uma aproximação à etapas posteriores, devendo-se evitar confundir o apenas antigo com eterno.

Os 39 Artigos da Religião são considerados fundamentais para a nossa identidade histórico-doutrinária. Eles devem ser aprofundados, enriquecidos, atualizados, nunca desprezados. O anglicanismo evangélico considera-se devedor ao puritanismo, ao pietismo, ao avivalismo e ao movimento missionário pelos aspectos de sua rica herança que a nós foram incorporados.

2. Um anglicano evangélico enfatiza o conceito histórico-confessional-orgânico-espiritual da Igreja mais do que o institucional. Onde um grupo de cristãos se reúne com regularidade para o anúncio da Palavra e a ministração devida dos sacramentos, aí está a Igreja. Onde há um culto trinitário, aberto a todos, aí está a Igreja Católica. Os pesados edifícios institucionais, hierarquizados, formais e de tendência centralizadora, são considerados herança de um império, distante do ideal da ecclesia.

A Igreja dos primeiros séculos conheceu formas variadas de administração. O episcopado é uma dessas formas válidas, e se inclui em uma de nossas honoráveis tradições. O conceito e o papel dos bispos tem variado no tempo e no espaço. O sacerdócio é uma condição de todos os crentes, alguns chamados especificamente para o ministério da Palavra e dos sacramentos. A pluralidade de carismas deve ser reconhecida e exercitada. Todo clericalismo deve ser evitado. Todos os ministros cristãos, devidamente chamados, reconhecidos e ordenados, são legítimos, independentemente do modo administrativo de sua denominação. A real democratização da Igreja é condição para um honesto profetismo para uma ordem secular que se quer democrática.

3. Um anglicano evangélico privilegia a Palavra aos sacrmantos. O cristão assim se torna por uma resposta (Sola Fide) ao anúncio da graça (Sola Gratia), de Deus em Jesus Cristo (Solus Christus) pela Palavra (Sola Scriptura), e é por ela edificado. Os sacramentos são símbolos e meios auxiliares da ação da graça, desprovidos de quaisquer conotações mágicas. No Batismo, o anglicano evangélico se aproxima da noção calvinista da inserção no novo pacto; na Eucaristia, se aproxima de Zwínglio, com a noção de presença real espiritual ambiental. Ressalta-se a autoridade das Escritura Sagradas como única fonte de Revelação, e a necessidade de uma experiência de conversão.

4. Um anglicano evangélico prefere a simplicidade no culto. A liturgia é valorizada e a beleza e os símbolos na adoração são valorizados. Evita-se, porém, os riscos de um formalismo frio, repetitivo e descontextualizado, ne do mero “magno espetáculo”, que apontam mais para a Igreja do Cristo do que o Cristo da Igreja. Deve-se ater para o essencial e o acidental, para se diferenciar o que é historicamente anglicano, do que é meramente inglês, ou do que representa apenas uma corrente historicamente localizada (o tractarianismo, por exemplo). Deve-se evitar o mimetismo e o reboquismo a outras confissões, bem como a tentação do fundamentalismo da forma.

5. Um anglicano evangélico enfatiza o caráter missionário da Igreja. A Igreja ou é missionária e evangelizadora, ou não é Igreja. A Igreja cresce, em quantidade e qualidade, ou perece. O chamado ao novo nascimento deve-se dirigir inclusive aos cristãos nominais e aos igrejeiros.

6. Um anglicano evangélico tem um compromisso com o pluralismo. Por maiores que sejam suas convicções, reconhece que o seu ponto de vista é um dos pontos de vistas legítimos dentro da tradição e do ethos anglicano. É ciente da legitimidade das demais visões, e espera sempre consideração recíproca. Apesar de suas profundas discordâncias, reconhece na tradição anglo-católica uma busca de renovação da espiritualidade na unidade e na recuperação de tradições, e na tradição liberal a busca do conhecimento e do compromisso social.

Diversidade para crescer

Ser um anglicano evangélico não é nada de novo, nem de estranho. Essa corrente não somente está fincada nas raízes do anglicanismo, como nas gloriosas etapas primeiras da Igreja Episcopal do Brasil. Em algumas províncias, dioceses, paróquias e seminários, é a corrente hegemônica, em comunidades tanto vivas quanto leais.

O regionalismo, a não-convivência interdenominacional, o isolamento geográfico e cultural, a carência de leituras e contatos e uma forte influência das ideias e práticas derivadas do Movimento de Oxford (via igreja-mãe norte-americana), podem concorrer para uma falta de compreensão e aceitação de novas experiências evangélicas entre nós. O relativo êxito dessas experiências, contudo, parecem apontar para a abertura e predisposição de amplas camadas da população brasileira a essa maneira de ser anglicano. Não seria essa uma das vias para o crescimento de nossa Igreja?

Com essas experiências, o decantado pluralismo anglicano desce do terreno da retórica para o dia a dia da convivência concreta. O que nem sempre pode ser fácil em uma cultura de tradições autoritárias e exclusivistas no que concerne ao religioso. Um país onde não parece ser fácil encontrar liberais, mas apenas anti-conservadores.

A ortodoxia de ocasião, como nos adverte Rubem Alves, pode ser apenas o controle do aparelho de poder da instituição eclesiástica pelos seguidores de determinada corrente. Esperamos poder constatar, nos próximos anos que, unidos, na diversidade, realizaremos melhor nossa missão.

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LUCAS
Teologando

História, teologia, vida e o que mais me vier à cabeça.