“O que Deus quer de mim aqui e agora?”

Resenha do livro: Ética, de Dietrich Bonhoeffer. (12ª ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2020.)

Idinei Carvalho Filho
Garatujas
7 min readApr 21, 2023

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Na obra ‘Ética’, o autor apresenta uma abordagem fundamentada para a pergunta que o intrigava e ainda é relevante para nós nos dias de hoje: qual é a essência de uma ação cristã responsável no mundo? Diferente dos conceitos éticos clássicos, que muitas vezes resultavam em relativismo e ambiguidade, Bonhoeffer propõe uma ética sem espaço para abstrações e casuísmos. Ele enfatiza que o amor de Deus confere significado à realidade criada, proporcionando aos crentes uma posição ética cristã clara em meio ao mundo.

Nascido em uma família de teólogos por parte materna, com seu bisavô Karl August von Hase sendo um renomado teólogo e professor de Dogmática (teologia sistemática e ética) na Friedrich-Schiller-Universität Jena, convidado pelo famoso poeta alemão Goethe, e seu avô Karl Alfred von Hase atuando como capelão e pregador da corte do último imperador alemão, Wilhelm II, Bonhoeffer cresceu em um ambiente privilegiado. Desde cedo, ele nutria um profundo respeito pela vida humana, o que contrastava com os horrores que testemunhava durante a Primeira Guerra Mundial. Aos 13 anos, ele já havia decidido estudar teologia.

Quando Bonhoeffer se tornou pastor, ele ficou cada vez mais insatisfeito com a direção que a Igreja Alemã (Deutsche Evangelische Kirche) estava tomando sob a influência da ideologia nacional-socialista. Ele testemunhou a adição do terrível “parágrafo ariano” à confissão de fé, que proibia a ordenação de pastores de origem judaica e a excomunhão de membros judeus. Diante dessa turbulência na comunidade cristã e em oposição à crescente identificação da igreja com a ideologia nazista, em maio de 1934, Bonhoeffer juntou-se a outros pastores protestantes como Karl Barth, Otho Dibelius e Martin Niemoeller para formar a Igreja Confessante (Bekennende Kirche). No entanto, logo essa igreja se tornou ilegal sob o governo totalitário de Hitler, e os pastores e seminaristas associados foram perseguidos, proibidos de pregar e presos.

Foi durante a terrível “Solução Final” implementada pelo regime nazista na Alemanha — que buscava o genocídio da população judia nos territórios ocupados — que a pergunta que sempre assombrava Bonhoeffer, “O que constitui a ação cristã responsável no mundo?”, se tornou uma questão literal de vida ou morte. Nesse contexto crítico, “Ética” foi escrito como uma resposta prática e não apenas um exercício acadêmico abstrato, visando abordar essa pergunta crucial.

O livro “Ética” foi editado e compilado por Eberhard Bethge, amigo e discípulo de Bonhoeffer, e foi publicado em 9 de abril de 1948. Não se trata de uma obra completa idealizada por Bonhoeffer, mas sim uma organização de papéis avulsos escritos por ele durante seu período de prisão, como explicado por Bethge no prefácio da primeira edição. O livro é dividido em sete capítulos, acompanhados de cinco apêndices. Bonhoeffer considerava “Ética” como sua obra-prima, embora não tenha conseguido concluí-la antes de seu martírio, e a ordem exata proposta por ele ainda seja incerta. No entanto, muitos estudiosos consideram esse livro como a maior obra de Bonhoeffer.

De fato, “Ética” pode ser considerado um livro complexo e de difícil compreensão, mesmo com a presença de traduções e notas explicativas. Comparado às outras obras famosas de Bonhoeffer, como “Discipulado” e “Vida em Comunhão”, ele é mais denso em termos de conteúdo e conceitos. Requer uma leitura cuidadosa e atenta para compreender plenamente sua mensagem e sua contribuição para o pensamento teológico e ético.

No primeiro capítulo de “Ética”, Bonhoeffer aborda a queda do mundo e como o amor de Deus é manifesto nele. Ele argumenta que o conhecimento do bem e do mal se dá na Queda, onde o ser humano foi separado de Deus e passou a conhecer o bem e o mal a partir do autoconhecimento (Gn 3:22). Segundo o autor, tudo o que o ser humano passou a conhecer a partir desse momento está desconfigurado devido à sua desunião com Deus (p. 20–21)

Bonhoeffer também comenta a oitava bem-aventurança, presente em Mateus 5:10, argumentando que o termo “justiça” não se refere apenas à justiça de Deus e à justificação teológica, mas abrange tudo aquilo que pode ser considerado uma causa justa, boa e verdadeira, como mencionado em 1 Pedro 3:14 e 2:20 (p. 42).

No terceiro capítulo de “Ética”, intitulado “Ética como formação”, Bonhoeffer apresenta a pergunta “O que significa praticar o bem?” como inválida para o cristão, enquanto a pergunta “Qual é a vontade de Deus?” é a correta. Para o autor, questionar-se sobre a vontade de Deus é a sua tese principal sobre ética, cristologia e soteriologia. Ele argumenta que na encarnação de Cristo, Deus se reconcilia com a humanidade e a humanidade se reconcilia com Deus, o que traz uma nova realidade e uma nova humanidade. A conformação a Cristo é o que proporciona a liberdade ética ao cristão.

O conceito de “formação” ou “conformação” (Gleichgestaltung), presente em Lutero, trata da estreita ligação do crente com Cristo, sendo uma espécie de “tomar a mesma forma”. A formação acontece quando somos atraídos pela forma única de Cristo Encarnado, Crucificado e Ressuscitado. Conformar-se a Cristo não significa imitar Jesus em todas as nossas ações, nem estabelecer padrões de vida aceitos pela comunidade, pois Jesus não é um programa ético, mas o Deus-homem. Essa conformação nos dá liberdade ética para julgar, aceitar a graça e unir-se a Cristo em comunidade. É menos sobre “em seus passos, o que Jesus faria?” e mais sobre “O que Deus quer de mim aqui e agora?”

“Conformado com o encarnado — isso significa ser realmente humano […] todo heroísmo, toda feição de semideus eliminam-se para o ser humano, porque não são verdadeiros […] Deus fez-se humano real […] Conformado com o crucificado — isso significa ser um ser humano condenado por Deus […] O ser humano morre, diariamente, a morte do pecador […] Só está certo perante Deus dando razão a Deus contra si e quanto a si mesmo […] Conformado com o ressuscitado — isso significa ser um novo ser humano perante Deus. Vive em meio a morte, é justo em meio ao pecado, é novo em meio ao velho […] revela-se como que recebeu o Espírito Santo e está unido a Jesus Cristo em incomparável amor e união.” (p. 55–56)

Bonhoeffer defende em sua ética a ideia da “posição das penúltimas coisas em relação à última”. Ele acredita que há algo que é final, último, que é a doutrina da Justificação. Segundo Bonhoeffer, “a origem e essência de toda vida cristã estão contidas naquele único acontecimento que a Reforma chamou de justificação do pecador somente pela graça” (p. 79). A Graça de Deus sempre ocupa a posição última na vida do crente, sendo a palavra final. Tudo o que fazemos está em direção à justificação pela graça. Todas as coisas que realizamos são penúltimas e só encontram sentido na justificação de Deus, que é a última coisa.

“O penúltimo não é condição par ao derradeiro; ao contrário, o derradeiro condiciona o penúltimo” (p. 87)

A justificação é o encontro de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado com o mundo, segundo Bonhoeffer. Para ele, “vida cristã significa participar do encontro de Cristo com o mundo” (p. 87). Ao longo de seu livro, Bonhoeffer reinterpreta a Teologia dos Dois Reinos de Lutero e defende a unidade da realidade, ou seja, a “realidade de Deus revelada em Cristo na realidade do mundo”. Ele propõe quatro “mandatos” divinos que englobam o casamento e a família, o trabalho, a igreja e o Estado. Participar do mundo através desses “mandatos” é participar da realidade de Cristo no mundo atual.

Toda a obra de Bonhoeffer segue um fio condutor do chamado “Stellvertretung”, um termo que está presente em todo o seu pensamento. É um termo difícil de ser traduzido, como mencionado por Walter Altmann na “Nota explicativa à 2ª edição brasileira”:

“‘Representação” (p. 143–145; original: Stellvertretung) indica uma substituição plena: Cristo “em nosso lugar” e, eventualmente, o ser humano tomando, em responsabilidade, o lugar de seu semelhante. Portanto não deve ser confundido com “encenação”. Também poderia ser traduzido, corretamente, por “vicariato”, mas essa palavra se prestaria a ambiguidades de outra espécie.” (p. 13–14)

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No livro Bonhoeffer para todos (2020), Haynes traduz o termo “Stellvertretung” como “ação representativa vicária”, sendo mais fiel à ideia do autor.

Deus se revela em Cristo encarnado na comunidade, assim como a ação de Cristo nos possibilita agir de maneira substitutiva em nome dos outros. A graça que Deus nos concedeu em Cristo foi algo significativo, uma “graça que custa caro”, como Bonhoeffer menciona em Discipulado. Da mesma forma, uma ação ética e responsável também exige um custo significativo. A “ética como formação”, fundamentada pelo conceito de “Stellvertretung”, requer de nós uma disposição para sofrer em favor do outro.

“O cristão, conformado a Cristo, age e sofre em nome daqueles que estão no mundo.” (HAYNES, 2020, p.120)

Referências

BONHOEFFER, D. Ética. 12ª ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2020.

HAYNES, S. R. Bonhoeffer para todos. Viçosa: Ultimato, 2020.

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Idinei Carvalho Filho
Garatujas

amigo do Amigo. Designer, mestrando, trainee de professor, apaixonado por história e aspirante a teólogo de fundo de quintal https://linktr.ee/idineicarvalho