O Jogo dos Pseudônimos

Nas décadas de 1950, 1960 e 1970, gravadoras, maestros, grupos e músicos participaram de uma espécie de jogo com o público. Foi nesse período que, por razões comerciais, contratuais ou até por brincadeira, surgiram personagens musicais fictícios que existiram apenas nos estúdios de gravação e nas capas dos discos. Entre eles, estavam alguns dos mais importantes instrumentistas brasileiros.

Mauro Caldas
Teoria musical

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A finalidade deste ensaio é investigar 50 pseudônimos, sondar os motivos que levaram à sua criação, desvendar quem estava por trás deles, caracterizar seus estilos e relacionar as suas discografias de maneira que os ouvintes de hoje possam fazer uma viagem de descoberta musical a um período de grande riqueza na música brasileira.

O Pano de Fundo

Os pseudônimos não surgiram na nossa música na década de 1950. Bem antes disso, o compositor erudito Francisco Mignone se escondia sob o nome de Chico Bororó sempre que sentia vontade ou necessidade de escrever peças populares. O próprio Pixinguinha foi, durante algum tempo, Zé Vicente, quando se apresentava com Os Oito Batutas — um grupo no qual todos os músicos adotaram nomes sertanejos. Este era um artifício bastante comum, e quase uma brincadeira.

Porém, a partir da década de 1950, o jogo se tornou mais sério. Impulsionada pelo crescimento econômico e pelo cinema, a música norte-americana ganhava o mundo. A produção musical passava a circular com mais rapidez. Os ídolos do jazz adquiriam status global. E os modismos cruzavam os oceanos pelas rotas aéreas internacionais. A indústria da música tomava forma, ganhava peso e abandonava pouco a pouco o amadorismo, como o que fizera Jacob do Bandolim gravar dentro de uma cozinha para simular uma caixa de reverberação; surgiam os LPs e, logo depois, as gravações em alta fidelidade.

Acima de tudo, o público ansiava por novidades.

As gravadoras não demoraram a perceber isso. A Camden, selo da então maior gravadora do mundo, a RCA Victor, era especializada em gravações clássicas e, na década de 1950, percebeu o potencial oculto nesse jogo.

A RCA Camden começou relançando discos clássicos com os nomes verdadeiros das orquestras. Depois, para evitar que competissem com os novos discos das mesmas orquestras, adotou uma série de pseudônimos. Assim, a St. Louis Symphony Orchestra era apresentada tanto como a Savoy Symphony Orchestra quanto como a Shuyler Symphony Orchestra; a RCA Victor Symphony Orchestra (que só existia emestúdios, formada por membros da NBC Symphony Orchestra e da New York Philharmonic Orchestra) tornou-se a Golden Symphony Orchestra; a Boston Symphony Orchestra tornou-se a Centennial Symphony Orchestra; a London Symphony Orchestra foi rebatizada como Stratford Symphony Orchestra; a Chicago Symphony Orchestra gravou com o nome de Cromwell Symphony Orchestra; e San Francisco Symphony Orchestra tornou-se a Worldwide Symphony Orchestra; e a Philadelphia Orchestra ganhou o pseudônimo de Warwick Symphony Orchestra. A New York City Symphony Orchestra, criada pelo maestro Leopoldo Stokowski na década de 1940, gravava para a RCA e alguns de seus discos foram relançados pela Camden sob o nome de Sutton Symphony Orchestra.

A oportunidade não deixou de ser percebida por aqui, mas ganhou ares tropicais.

Musidisc

Nilo Sérgio, fundador da Musidisc, era um cantor razoavelmente conhecido na década de 1940, com participações nos populares programas das rádios Nacional e Tupy no Rio de Janeiro.
Depois de tentar, sem sucesso, carreira nos Estados Unidos, retornou ao Brasil e, em 1953 -trazendo na bagagem conhecimentos sobre a indústria do disco, que se expandia devido ao advento do LP e, acima de tudo, sobre marketing, uma disciplina gerencial praticamente desconhecida por aqui — criou a sua gravadora.
Ao contrário das outras gravadoras concorrentes, Nilo Sérgio percebeu na música um produto de consumo, tanto quanto uma manifestação artística.

Em 1953 — ano de lançamento do primeiro LP em 10 polegadas da Musidisc, chamado “Nilo Sérgio — Datas Felizes”, com a participação de As Estrelas e Leo Peracchi e sua Orquestra — o mercado fonográfico se constituía basicamente de discos de 78 RPMs, com apenas duas músicas, e sem nenhum tratamento visual. Os discos vinham embalados em papelão com o logotipo da gravadora ou selo.

Ainda em 1953, aproveitando o sucesso de um programa de rádio, Músicos em Surdina, estrelado por um trio de formação incomum — Garoto (guitarra), Chiquinho (acordeom) e Fafá Lemos (violino, vocal) — Nilo Sérgio cria o Trio Surdina.

Estava lançada a semente do jogo dos pseudônimos da Musidisc. Se com a formação original o Trio Surdina gravou quatro discos, após a saída dos músicos originais a “marca” se manteve, e mais 13 discos do Trio Surdina chegaram ao mercado com músicos diferentes: Gaúcho (acordeom), Nestor Campos (guitarra) e Al Quincas (violino).

Ao longo de toda a sua existência, a Musidisc manteve uma estratégia semelhante à da Camden norte-americana, rebatizando orquestras e conjuntos, ampliando-a para o lançamento de discos de músicos conhecidos, mas escondidos atrás de nomes que variavam ao sabor das modas que vinham de fora, principalmente dos Estados Unidos.

Os Maestros e Suas Orquestras

A década de 1950 abrigou uma enxurrada de discos feitos “para dançar”, aqui e em todo o mundo. Visto como uma variante menos nobre da música, essa modalidade, cujo repertório era formado por canções populares brasileiras e standards internacionais, baseava-se em grandes orquestras e essas grandes orquestras tinham seus maestros — quase todos eles com formação e atuação ligada à música “séria”.

É quase natural, portanto, que tenham preferido gravar esses discos de ocasião protegidos por pseudônimos.

Românticos de Cuba — A Cuba anterior à revolução era um destino caribenho de turistas e jogadores de cassino, e seus ritmos faziam sucesso nas pistas de dança. Percebendo a oportunidade, Nilo Sérgio recrutou o maestro Severino Araújo e vários músicos de sua Orquestra Tabajara, e criou a “Orquestra Românticos de Cuba”.

Entre 1959 e 1979, identificamos 34 LPs na discografia da Orquestra Românticos de Cuba, todos pela gravadora Musidisc — uma discografia maior do que a totalidade das orquestras “de verdade”.

Guerra-Peixe — Maestro e compositor erudito, quando se aventurava na música popular Guerra-Peixe usava três pseudônimos: Jean Kelson, Bob Morel (homônimo de um ator de cinema), e Célio Rocha. Dos três, apenas um deles, Jean Kelson, “gravou” discos. Os outros dois eram compositores de boleros, choros e sambas.

Os dois LPs de Jean Kelson foram lançados pela gravadora Copacabana em 1964.

Leo Peracchi — O maestro Leo Peracchi, a quem Tom Jobim chamava de mestre, utilizou o pseudônimo de Henry Nirenberg na gravação de um disco orquestral no ano de 1961. Além disso, era o regente e arranjador de Os Violinos Mágicos, uma orquestra completa, com todos os naipes, e com a qual gravou uma série de discos de bastante sucesso. Os músicos da orquestra eram recrutados, quase todos, nas orquestras sinfônicas do Rio de Janeiro e, à falta de estúdios que comportassem de uma só vez a orquestra inteira, tinham que gravar divididos pela metade.

Neste caso, os discos não se dirigiam às pistas de dança, mas às residências das classes alta e média que começavam a investir em equipamentos de alta fidelidade. Mais uma idéia de Nilo Sérgio e da Musidisc.

Os Músicos

Ed Lincoln — Ed Lincoln é nome artístico de Eduardo Lincoln Barbosa Sabóia — de longe o recordista nesse jogo dos pseudônimos. Conseguimos identificar 17 nomes diferentes usados por ele, entre “pessoas”, grupos e orquestras.

Curiosamente, Ed Lincoln — que parece ser um pseudônimo — é apenas um nome baseado em seu nome verdadeiro. Com esse nome gravou seus discos “oficiais” de carreira, iniciada em 1955 com um trio em que tocava contrabaixo, ainda como Eduardo Lincoln, ao lado de Luiz Eça (piano) e Paulo Ney (guitarra).

Usando o mesmo nome, gravou com Luiz Bonfá, em 1956, um disco considerado precursor da bossa nova, “Noite e Dia”, que também contava com a participação de Carlos Lyra ao violão e de Luiz Marinho no baixo,. Nesse disco, Ed Lincoln trocou o contrabaixo pelo piano, adotando posteriormente o órgão elétrico.

Após gravar seu disco de estréia pela pequena gravadora Helium, Ed Lincoln ingressa na Musidisc, na qual permaneceria por duas décadas. E ali os pseudônimos brotaram um atrás do outro.

A estréia foi um grupo de bastante sucesso na época, Les 4 Cadillacs, que gravava versões instrumentais de standards norte-americanos em ritmo de dança suave. A formação de um dos lançamentos dos Les 4 Cadillacs, o disco de 1963 do selo Masterpiece, pertencente à Musidisc, contava com Ed Lincoln (piano), Durval Ferreira (guitarra), Luiz Marinho (baixo) e Wilson das Neves (bateria).

O mesmo grupo gravou outros quatro discos, porém seus músicos não foram identificados na ficha técnica, e não se pode afirmar quais eram.

Vamos reencontrar Ed Lincoln em outro selo da Musidisc, chamado Nilser (letras do nome de Nilo Sérgio), liderando um grupo de nome The Lovers, com o mesmo conceito de música dançante suave encontrado nos Les 4 Cadillacs.

Também na Musidisc, Ed Lincoln gravou com o pseudônimo de Don Pablo de Havana um disco orquestral com repertório de música brasileira em ritmo de chá-chá-chá.

Segundo Ed Lincoln: “Eram muitos nomes. Nilo Sérgio, proprietário da Musidisc, era um sujeito criativo! Ele viajava e ouvia muito. Na volta, me chamava, tocava um disco e me pedia para fazer algo parecido. E evidentemente eu fazia. Por que não? Eu vivia me desafiando musicalmente e descobrindo coisas que, até então, desconhecia por inteiro.”

Foram aproximadamente 30 discos com 15 pseudônimos.

Ao se desligar da Musidisc, Ed Lincoln não se afastou do jogo, e lançou a maior parte de sua produção usando pseudônimos, inclusive em sua própria gravadora, chamada De Saboya, que tinha entre seus contratados um grupo chamado exatamente De Saboya.

Exemplos de outros nomes adotados por ele são: Berry Benton (Tapecar), Claudio Marcelo (Itamaraty), EdKennedy (Star), John Marcel (Esquema). A relação completa dos pseudônimos identificados pode ser encontrada na seção final deste ensaio.

Bob Fleming — Bob Fleming não é um músico, mas um personagem, talvez o mais conhecido entre todos em nosso Jogo de Pseudônimos. Criado em 1959 por Nilo Sérgio, o personagem Bob Fleming (saxofonista) foi responsável pelo lançamento de mais de 20 discos, todos com vendagem significativa.

Sendo o personagem propriedade da Musidisc, Nilo Sérgio tinha a liberdade de escolher e contratar o músico que interpretaria Bob Fleming. Pelo menos dois deles estão identificados: Moacyr Silva, responsável pela gravação dos dois primeiros discos; e Zito Righi, que provavelmente gravou todos os outros discos do personagem.

A motivação era claramente comercial. O repertório de músicas internacionais — boleros e sucessos do hit parade da época — dificilmente teria grande sucesso se executado por “nomes” como Moacyr Silva ou ZitoRighi. Nilo Sérgio fez sua aposta num personagem de nome norte-americano e foi bem sucedido. Todos os discos de Bob Fleming estão fora de catálogo e, paradoxalmente, são disputados por colecionadores.

Pierre Kolmann — João Leal Brito, ou apenas Britinho, foi um pianista de expressiva produção fonográfica entre as décadas de 1930 e 1960, quando lançou mais de 40 discos.

Na Musidisc, utilizou o nome Pierre Kolmann, outra criação de Nilo Sérgio. Registramos nove discos desse pianista fictício, inclusive um com uma peculiaridade a mais: um disco em colaboração com o Trio Surdina, talvez o único disco em que dois personagens diferentes atuam como artistas principais.

Em razão da grafia e sonoridade do nome Kolmann ser muito próxima do sobrenome do pianista Waldyr Calmon, Pierre Kolmann é frequentemente creditado como um personagem interpretado por Waldyr Calmon, o que não é verdade.

Walter Wanderley — Walter Wanderley foi um organista muito conhecido nas décadas de 1960 e 1970, com uma longa carreira fonográfica no Brasil e, também, nos Estados Unidos, onde fixou residência a partir da metade dos anos 1960.

Aqui, Walter Wanderley usou pelo menos dois pseudônimos: Mike Falcão, com três discos lançados pelo selo Imperial (uma subsidiária da gravadora Odeon, especializada em vendas pelo correio), e Ivan Casanova, que lançou apenas um disco no mesmo selo Imperial.

Walter Wanderley era um músico que gostava de estúdios de gravação, e não perdia a oportunidade participar de discos de outros artistas, em gravadoras que não o tinham sob contrato. Seu estilo no órgão é bastante característico, e os especialistas serão capazes de distingui-lo.

Como exemplo, Walter Wanderley se esconde sob o nome de Sir Walter Scott no disco A Meiga Elizeth No. 5, da gravadora Copacabana.

Com certeza, Walter está escondido em vários outros discos.

Tony Brazil — Tony Brazil é o personagem mais ilustre do nosso jogo. Sua importância não se dá por qualquer atuação em particular, nem pelo conjunto da obra, que se resume na participação como violonista em um único disco. Por trás de Tony Brazil, esconde-se o maestro Antonio Carlos Jobim.

Convidado para participar de um disco do pianista norte-americano Jack Wilson, Tom Jobim, contratado pela gravadora Verve, atendeu ao pedido porém adotou o pseudônimo Tony Brazil para evitar problemas contratuais. Curiosamente, o disco credita a participação de Tony Brazil como “special guest artist” incluindo aspas na grafia Tony Brazil, sugerindo que havia algo de pouco comum por trás desse convidado muito especial. O disco se chama Jack Wilson Plays Brazilian Mancini, e foi lançado em 1965.

Conclusão

O objetivo deste breve artigo foi lançar alguma luz sobre uma prática comum durante certo período da música brasileira. A lista completa dos pseudônimos e da discografia que pudemos localizar está a seguir. E ela é bem maior do que os exemplos ilustrativos que apresentamos aqui.
Porém, o Jogo dos Pseudônimos não se esgota. Músicos e produtores ainda vivos certamente conhecem histórias que não estão contadas; capas de disco e fichas técnicas guardam nomes que, se estudados em detalhe, revelarão surpresas; e a análise detalhada dos muitos conjuntos e orquestras surgidos principalmente nas décadas de 1950 e 1960 certamente trará a assinatura de músicos que, por um motivo ou outro, preferiram se esconder dos holofotes.

Os Personagens

Antonio Carlos Jobim — Tony Brazil
Astor Silva — Lord Astor and His Dixierolls
Azymuth — Som Ambiente
Britinho — Pierre Kolmann
Carlos Monteiro de Souza — Maurício Monthier
Celso Murilo — Roberto Rutz
Durval Ferreira — Dovel
Ed Lincoln — Don Pablo de Havana, Berry Benton, Les 4 Cadillacs, Conjunto Balambossa, The Lovers, Claudio Marcelo, Gloria Benson, Ed Kenned, John Marcel, Danny Marcel, Marcel Saboier, Les Amants, Orquestra Casablanca, TecnoOrquestra
Ed Lincoln / Moacyr Silva — Muchacho nas Bocas
Eumir Deodato e Os Catedráticos — Conjunto Castelinho
Geraldo Vespar — Delano
Hector Costita — Don Junior, Bil Bell
J. T. Meirelles — Joao & His Bossa Kings
José Roberto Bertrami — Orquestra Som Bateau
Luiz Eca, Eumir Deodato & Cipó — Ipanema Pop Orchestra
Francisco Mignone — Chico Bororo
Guerra Peixe — Jean Kelson, Bob Morel, Celio Rocha
Leo Peracchi — Henry Nirenberg, Os Violinos Magicos
Radamés Gnattali — Vero
Renato de Oliveira — Cid Gray e Sua Orquestra
Severino Araújo — Orquestra Românticos de Cuba
Manfredo Fest Trio — Os Sambeatles
Moacyr Silva / Zito Righi — Bob Fleming
Ribamar — Quinteto Romantico
Waltel Branco — Airto Fogo
Walter Wanderley — Sir Walter Scotch, Mike Falcao, Ivan Casanova

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Mauro Caldas
Teoria musical

Where technology. music, culture and nonsense collide