Estudos culturais: as ressignificações sob a óptica do funk

Loys Lorenn
teorias-comunicacao
4 min readOct 31, 2019

A consolidação de um estilo musical e a ascensão do funk feminino.

Arte por MZK, via UOL

O campo de Estudos Culturais teve origem no Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), ligado à universidade de Birminghan (Grã-Bretanha), em 1964. O centro se constituía numa unidade que tinha como eixo principal de estudo aspectos da cultura contemporânea, sendo elas: formas culturais, intuições e práticas culturais, suas relações com a sociedade e mudanças sociais. Dentro deste contexto, surgem os estudos culturais para compreender as práticas culturais cotidianas frente às mudanças que ocorriam na classe operária da Inglaterra do pós-guerra.

Os principais nomes que colaboram para formação desta teoria são Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward Palmer Thompson e seus respectivos textos, The Uses of Literacy (1957), Culture and Society (1958), The Making of the English Working-class (1963). Nestes textos havia informações sobre a história cultural do meio do século XX, históricos do conceito de cultura e partes da história da sociedade inglesa sob uma perspectiva particular das classes menos favorecidas. É importante destacar o nome de Stuar Hall, que apesar de não ser reconhecido comumente junto ao trio, contribuiu de maneira significativa através do incentivo ao desenvolvimento de inúmeros projetos enquanto diretor do Centro.

Na teoria dos estudos culturais, o consumidor/receptor são os objetos de estudo mais importantes e, ao contrário das teorias que antecederam-na, enfatizam que devem ser vistos como sujeitos ativos. Os consumidores são diferentes, não apenas um só. Isso significa pertencimento; ou seja, cada ser humano é diferente, bem como suas interpretações são adversas pois seus pensamentos se divergem e cada pessoa consome algo de forma distinta. A teoria leva em conta o histórico de formação do indivíduo considerando os elementos como raça, localização geográfica, posição política etc., que são chaves importantes para a interpretação final dos produtos da comunicação.

Sendo assim, seguindo as explicações dos estudos culturais, a elite com seu material cultural pode ter a pretensão de se tornar a salvadora intelectual da classe operária, mas estes, a partir de suas individualidades, interpretarão o conteúdo de maneiras diferentes. Desta forma, ampliando a interpretação, ainda que um material de comunicação seja elaborado para manipular alguém, a teoria entende que o consumidor o ressignificará conforme sua ótica particular e disto gerar suas próprias interpretações.

A partir disso, podemos utilizar como um bom exemplo o funk, que em nada é parecido com o consumo musical considerado elitista como a ópera ou os estilos refinados do ballet. O nascimento do funk está ligado com os primórdios do jazz e soul music nos Estados Unidos, que também não eram considerados elitistas e sim uma expressão cultural. Porém, ela se atenuaria com toques de “swing”, fazendo desta sua maior característica.

Grandes nomes da música brasileira, como Tim Maia e Tony Tornado, começaram a imergir no estilo soul music e fizeram o gênero se misturar às suas músicas e estilos. É importante ressaltar que Tim Maia viveu por um tempo nos EUA, podendo assim conhecer e absorver aquele produto à sua maneira. Tais artistas fundaram o chamado “Black Rio” aqui no Brasil — em decorrência à influência do movimento Black Power que estava fervendo nos Estados Unidos.

A partir da década de 80, o funk no Rio de Janeiro foi influenciado — mais uma vez — por um novo ritmo que estava conquistando muito espaço nos Estados Unidos, majoritariamente na Flórida, o chamado Miami Bass. Este ritmo continha batidas mais rápidas, eletrizantes e com um conteúdo mais erótico. No final dos anos 80, bailes começaram a atrair cada vez mais pessoas; as letras se tornaram mais invasivas em demonstrar a realidade das comunidades, ou seja, além de se tornarem meios de ofensa e transgressão, também foram mais à fundo em manter o reflexo da vivência e cotidiano dos frequentadores dos bailes e suas vizinhanças. As letras abordavam a violência e a pobreza das comunidades. Os receptores ressignificaram o produto primário e fizeram dele sua realidade.

Partindo deste outro ponto, o funk — que é um produto cultural — pode ser visto também como uma reelaboração de seus consumidores nos dias de hoje. Antigamente o funk continha muitas letras sexistas, misóginas, erotizadas e de cunho muito explícito. Nos bailes, há mulheres que não se importam em ouvir tais letras, não estão interessadas se estão sendo ofendidas ou diminuídas nas canções, elas apenas querem saber do ritmo, da dança, da diversão e sua satisfação; ou seja, elas reelaboram aquele conteúdo que estava sendo machista e explícito para um consumo de divertimento.

No entanto, precisamos levar em conta que há outros consumidores. Existem mulheres que acabam consumindo aquele produto e que não são uma folha em branco ou complacentes. Elas recebem o produto de forma diferente e se sentem ofendidas a partir das letras produzidas. Com isso, cria-se novas formas recepção de um produto e como lidar com ele. Assim, tal como o funk carioca nasceu e cresceu, o funk feminino ganha cada vez mais espaço, podendo ser visto não somente como uma resposta ao funk tradicional, como também sendo um reflexo do cenário atual em que vivemos, no qual mulheres estão cada vez mais empoderadas, ganhando notoriedade e destaque em vários cenários, inclusive no funk.

Os estudos culturais estão ligados às identidades sociais, e como identidades podem ser alteradas ou ressignificadas de diversas maneiras, os estudos culturais também podem se deslocar no decorrer do tempo e espaço. Sua análise leva em conta todo um cenário e contexto nos quais cada indivíduo está inserido e diante de um produto ao qual a compreensão se dá a partir de valores preestabelecidos que ele tem acerca do que é consumido.

Autora: Loys Lorenn Lima.

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