Politicamente Correto: “Inquietações acerca das Liberdades Individuais”

Alexandre Teles
Terça à Noite
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7 min readNov 25, 2018

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EPISÓDIO 01: “POLITICAMENTE CORRETO”

É difícil para um vivente de seu tempo, analisar de forma direta e sincera a natureza dos fatos que o circundam: vive de inquietações e questionamentos, mas jamais de respostas. Estas, por sua vez, apresentam-se apenas em um futuro no qual os fatos que analisava já não são mais que, isso se é que são, história. De certo que não se pode subestimar o poder dos métodos, em especial aqueles através dos quais as coisas que se tem por certa a existência revelam-se, em fato, desconhecidas.

Supomos certa a existência, a vida e a morte, o sofrimento e as alegrias. Diria eu que, as únicas coisas que se pode tomar por certas são as inquietações, as dúvidas e a angústia de a tudo desconhecer e a tudo querer descobrir, como no texto de Clarice Lispector “O Ovo e a Galinha”:

“Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. — Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. — Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. — O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito.”

No tempo em que se vive, não importa o que se sabe ou o que se tem: importa o intangível daquilo que sequer concebemos possível. É a partir daí que somos capazes de dar real valor àquilo que possuímos, como quando afetamos-nos pela falta de alguém querido apenas após perdê-lo. Enquanto sabemos de sua existência (e até compartilhamos dela), mas ignoramos o desconhecer da ausência, nunca experimentamos de fato o quão absurda é a realidade. O que sei não me é importante, só posso experimentar e moldar o meu mundo se busco o que não sei e, antecipando-o no tempo, vivencio a inteireza das coisas.

Vivemos uma contemporaneidade de coisas fluidas, e fluindo com elas vai-se a nossa liberdade. Kierkgaard, quando afirma que a “a porta da felicidade abre só para o exterior; quem a força em sentido contrário acaba por fechá-la ainda mais.”, apresenta-me um questionamento poderoso: é possível viver (ou melhor, viver bem) olhando o mundo apenas do lugar onde estou?

Arrisco-me a dizer que não. Arrisco-me ainda mais em criticar aqueles que, partindo de seus preconceitos, apenas enxergam-se nos outros sem vê-los. Não falo aqui, por favor, do narcisismo de Freud. Não. Muito menos questiono a ideia Junguiana de que aquilo que vemos do outro nada mais é que sua persona. Desejo falar de caridade, e de como reconhecer-se no outro vai além de imprimir-lhe sua própria sombra.

Sombra. Admiro-me da alegoria construída ao redor dela por Platão: somos nós que a ela damos significado. Significamos o amor alheio, o corpo alheio, a existência alheia. Invalidamos o outro não pelo que deles buscamos conhecer, mas pela sombra projetada por uma chama, quase sempre rica em beleza, ocultada por nossa própria incapacidade de buscar nos conhecer.

E assim, cerceamos a liberdade do outro e, como são universais os princípios herméticos, cerceamos também a nossa. Discutimos, de um lado, se seremos resistência a estes que impõem suas incapacidades sobre nós ou se aceitaremos, de braços cruzados, a demolição daquilo que tomamos ternamente como certo por ser tudo que nos foi permitido conhecer.

Erguemos muros ou derrubamos todas as barreiras, erigimos o politicamente correto e a liberdade de expressão: escolha um lado. Isto é, apenas se isto vos apetece. Sim! Apenas se vos apetece. Isto digo porque, inspirado pelo Santo de Claraval em seu maravilhoso De Diligendo Deo, aprendi que tudo isso fazemos apenas (e aqui escreveria com letras capitais) para satisfazer os nossos apetites.

A vida, recordaria-nos Kierkgaard, é uma sucessão do tédio e da angústia. Sentes isto? Sim, todos sentimos. E quanto mais pensamos nisto, Pascal riria, mais desesperados nos tornamos. E o desespero, este sim, nos impede de viver. Reconheço as raízes históricas de nossas dores, as queixas acerca do Marxismo e do Capitalismo e como estas duas criaturas, cada uma a seu modo, limitam-nos em relação àquilo que podemos ser.

Mas, aproximando-me do fim, ao observar uma coluna de pessoas sofridas buscarem refúgio onde não encontrarão, ao ver as armas levantarem-se contra os desprovidos, não posso deixar de questionar se a forma como observamos o mundo não está profundamente contaminada por um egoísmo mortal e uma incapacidade (creio eu, criada) de sentir pelo outro.

Citaria Bernanos, não fosse o duro golpe de suas palavras sobre a esperança alheia, mas citarei Cioran, em seu maravilhoso “Breviário da Decomposição”, pois o desespero de ver o mundo sempre me recorda o seu texto:

“Ainda que o problema da liberdade seja insolúvel, podemos sempre discorrer sobre ele, colocar-nos do lado da contingência ou da necessidade… Nossos temperamentos e nossos preconceitos nos facilitam uma opção que circunscreve e simplifica o problema sem resolvê-lo.”

Não me parece que aqueles que tanto defendem o respeito às liberdades individuais, sobre as quais parece (e a mim só parece) debruçar-se o “politicamente correto”, reconheçam que ao tomarem partido e imporem uma censura sobre a crítica às formas de viver, desrespeitam eles mesmos as liberdades alheias e cobram de outros que abram mão de seus eus para serem aquilo que estes desejam que sejam.

Do mesmo modo os bastiões da moralidade esquecem-se que as formas de viver dos homens são fruto de intrincadas relações, muitas vezes fora do controle do próprio indivíduo, e não buscam compreender que estes a quem acusam de todo tipo de perversão são apenas seres humanos. Mais ainda! Por vezes vêem com certa inveja a liberalidade com que enfrentam a vida e fazem disto desculpa para levantar as mais constantes odes à decência e à moralidade, projetando sobre outros as sombras que lhes pertencem pois não são eles mesmos nem morais, nem decentes.

E assim, posicionando-nos em lados opostos (não, não há centro), empurramos a comunidade humana rumo a um chaos ab ordo, onde ou a garantia das liberdades individuais precede o bem comum, ou a tradição e o “jeito de sempre” impõem-se sobre tudo e sobre todos, ignorando sempre o princípio Kierkgaardiano de abrir-se para o mundo a fim de encontrar, e até mesmo apaixonar-se, pelo desconhecido.

Todos gritam: “moral”, “justiça”, “razão”, “amor”! Bem, é impossível não repetir então a pergunta de Alasdair MacIntyre: “Whose Justice? Which Rationality?” (Justiça de Quem? Qual Racionalidade?). E voltamos, enfim, para as inquietações, as dúvidas, as questões. Voltamos ao desconhecido, olhamos para os lados: pós-verdade, pós-ética, pós-virtude. O que há, então, a que possamos nos agarrar para permanecer de pé?

Quando nos deparamos com tamanha liberdade, com um mundo sem barreiras, sem verdades, onde as virtudes já não valem e a ética é a do mercado, as duas posições desfazem-se: não é possível nem despir-se (e forçar o outro, tirando-lhe as vestes) e muito menos recobrir-se com o manto de uma imagem do passado. Sim, Cioran tinha razão quando escrevia:

“[…] não estando preparados para uma revelação tão vasta e tão súbita, para esse bem perigoso ao qual aspiramos e ante o qual retrocedemos. Que vamos fazer, habituados às cadeias e às leis, frente a um infinito de iniciativas, a uma orgia de resoluções? A sedução do arbitrário nos apavora. Se podemos começar qualquer ato, se não há limites para a inspiração e para os caprichos, como evitar nossa perda na embriaguez de tanto poder?”

Sejamos livres! Não livres como animais (que somos), mas almas livres de preconceitos e apaixonadas pelo desconhecido. Dedicados a este escrutínio constante das diferenças, ao diálogo perene a partir do qual já não precisaremos ter medo da liberdade pois caminharemos juntos, construindo em nossos discursos a compreensão de que ainda que determinados valores, em especial os morais, sejam absolutos, devemos defendê-los com toda a humanidade possível pois apenas por meio da empatia é que se pode verdadeiramente compreender o sofrimento do outro.

E aqui, ponho naqueles que consideramos mais favorecidos (os válidos, os não discriminados, os ricos, aqueles de quem a sociedade se orgulha) não só o papel mas a obrigação de reconhecerem-se (quando de fato forem) culpados e de estender a mão àqueles que hoje gritam por reconhecimento pois, mesmo que de forma temerária, gritam verdadeiramente por conta de um sofrimento que apesar de (quase sempre) inconscientemente imposto, ainda nos exige compaixão pelo que justa e moralmente podem reivindicar: aos humanos, os seus direitos.

Recordo-me a tempo então, para terminar, de um texto do Dr. Derek Parfit:

“Minha vida parecia um túnel de vidro, através do qual eu me movia mais rápido a cada ano, e ao fim do qual havia escuridão … [No entanto] Quando mudei minha visão, as paredes do meu túnel de vidro desapareceram. Eu agora vivo ao ar livre. Ainda há uma diferença entre minha vida e a vida de outras pessoas. Mas a diferença é menor. Outras pessoas estão mais próximas. Estou menos preocupado com o resto da minha vida e mais preocupado com a vida dos outros.”

Paz!

Por Alexandre Teles

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