Religiosidade e Política: “Estando Deus na política, qual seria seu partido?”

Alexandre Teles
Terça à Noite
Published in
7 min readDec 3, 2018
EP 02: “RELIGIOSIDADE E POLÍTICA”

“…Após proclamar a religião como braço do Estado, Constantino não só une o povo a seu favor, como também estabelece um grande trunfo na condução moral e política do povo. Seria, logo depois, aclamado por cristãos com o título de Apóstolo Rei…”

Esse ensaio foi organizado para ser um diálogo direto, uma porta para o conflito de ideias. Não traz clareza ou doçuras. Antes disso, se pretende chá amargo para a política intestinal que sobrecarrega o fígado brasileiro. Em sua formação, a pesquisa foi realizada em redes sociais, livros, textos, diálogos de botequins e entrevistas com homens santos… E o que se pretende com isso? Ora, observar a forma como o desejo pela autocracia religiosa se espalha como um câncer por diversos setores da sociedade, como se traduz em falso moralismo tolhedor da liberdade e, como a democracia se enfraquece nesse processo. A democracia já enfrentava a corrupção sistêmica, a falta de representatividade entre parlamentares e seus eleitores, o ataque constante as liberdades individuais como forma de controle da população, o crescimento do crime organizado, dentre muitos outros males… Como se já não bastasse tantas dores, tantos estertores, tantas contrações no baixo ventre… Agora é visível o crescimento de grupos religiosos que aprisionam a mente e o coração da democracia com palavras advindas de Deu-X! Ditadas por diversos apóstolos que guiam a Nação Brasileira. O mal se esgueira nas sombras produzidas pela “moral social” que nem mesmo esses homens, ditos santos, seguem, mas que se pede para que a população as siga de forma cega e propaguem, em nome de uma causa maior, o desrespeito, a intolerância, o autoritarismo, o moralismo barato e o patrulhamento ideológico em locais públicos e escolas. Esses parecem ser os sentimentos comuns que transformam a jovem democracia brasileira no sonho dourado de um Estado Religioso, que, aos moldes Xiitas, é institucionalizada no peito de paladinos públicos que se pretendem políticos.

É de tirar o sossego a possibilidade de que o cidadão que vai todos os dias aos templos, terreiros ou igrejas e que crê naquele líder religioso, ali, posto em sua frente. Crê na ligação direta com o ser sobrenatural que representa sua fé. Todos os dias ele pensa em como a divindade utiliza determinado sujeito como receptáculo de sua inspiração divina e por isso mesmo o coloca separado do vulgo, o mantém sagrado para seu trabalho metafísico de transmitir as mensagens do além. Contudo, essa pessoa ao adentrar na vida política, o faz como indivíduo humano ou como ente sagrado? Toma decisões como pessoa ou como avatar do poder de Deus sobre a terra? Bem, estando Deus na política, qual seria seu partido político? E ao se opor a um grupo político, a oposição é feita aos homens ou ao Deus que os ungiu?

A presença de líderes religiosos entre os quadros políticos é comum em estados não democráticos, praticados por aiatolás, por reis apóstolos da idade média, por líderes ungidos por uma divindade para tomar o poder e guiar o povo para o fortalecimento da nação e crescimento de um pretenso nacionalismo que logo sugere uma superioridade étnica, cultural e religiosa. Pode a religião, e seu desejo por autoritarismo, conviver passivamente com a democracia sem aprisioná-la? Não é possível deixar de pensar em como estaria Balman, com seu cachimbo, no momento presente, seja lá onde estão os mortos, ao ver que a religião, em pleno mundo líquido, volta a se colocar como boia de salvação, presente no discurso político de muitos líderes que se pretendem novos apóstolos de alguma divindade, que se pretende ente político, além de criador do universo. Nietsche diria : “A modernidade líquida morreu, e foi Deus, o morto, que a matou”.

Sócrates previu um “mundo humano”, onde a razão pudesse ser baliza das decisões sobre a existência, sobre a moral e sobre a política. Negou aos sacerdotes o direito divino de ditar todas as regras sobre a vida humana em sociedade. Morreu, Sócrates, o estadista ateniense. Morreu e o povo escarneceu de sua morte… É claro que não somos helenos, é claro que não estamos nos tempos socráticos, e ainda assim, muitos têm tomado a cicuta política ao se oporem aos devaneios do proselitismo religioso que, em prol de uma política de afirmação de pseudos valores morais, extrapolam a razão e agridem as liberdades individuais e a democracia … valores quiçá cristãos… quiçá neopentecostais… quiçá católicos… De todos os lados surgem moralistas, religiosos e mártires prontos para carregarem em seus ombros a dura missão de ganhar alguns milhares de reais na difícil vida política e guiarem o povo pelo caminho santo contra as minorias não religiosas, surgem como bichos que, saídos dos esgotos, travestidos de ursos de pelúcia, conquistam os corações dos pobres e órfãos democratas.

O sistema democrático é uma proposição de diálogo, de voz e de auto-reconhecimento dos grupos diversos que convivem sob uma mesma constituição que também os reconhece e protege. Porém, se essa constituição não reconhece a existência e as necessidades desses grupos não hegemônicos facilmente a democracia se torna em opressão e no controle extremo da maioria. As formas de controle que o Estado pode exercer sobre o indivíduo se espalha facilmente por muitos campos de atuação, desde as possibilidades financeiras e acesso ao crédito, a adesão ao modelo religioso ou mesmo a uma suposta moral de grupo.

Em seu livro, Em que creem os que não creem, Umberto Eco e o Cardeal Carlo Maria Martini, integram um belo diálogo sobre a possibilidade de convivência entre a moral laica e a moral cristã. Por diversos momentos do delicioso passeio literário, temos a impressão de que os lugares de discurso mudam, se entrelaçam e se confundem. O que os dois propõem, em seu trabalho de civilidade e política, é a percepção de que a moral deve servir à população como um farol que aponta para o lugar do bem estar e da estabilidade política. O que diria Marcos Aurélio, o estoico, em sua filosofia da prática da vida em sociedade? Poderia facilmente fazer eco ao texto de Eco, e discorrer longamente sobre a interconectividade das coisas na vida em sociedade e sobre a importância da tolerância e do lugar de cada instituição com aparato social? O diálogo entre Eco e Martini, segue cercado de muita cordialidade e pode ser interpretado como um modelo de “fazer política”, de estoicismo, um exercício de democracia estadista que deveria ser praticada em nosso sistema bicameral. Seria possível que Eco estivesse prevendo a morte das democracias e a passagem para um novo modelo de governo? Um modelo que se estabelece no domínio da maioria sobre as minorias e na estruturação de uma moral religiosa como fonte de determinação comportamental social? Se sim, de onde pode vir o eco das vozes que pensam não ser isso a democracia? De onde virá a luz, após entrarmos no abismo do autoritarismo?

Extra! Extra! Extra!

No Estado da Georgia surge o novo Rei, um Rei cristão, coroado por um rabino… um rei para a Nova Era, do Novo cristianismo!

O cristianismo neopentecostal parece ter uma paixão fora do comum por títulos. Já possuem Pastores, Reverendos, Apóstolos, Bispos, Patriarcas e agora, Rei! Se um Rei é coroado por Deus, e torna-se um déspota, como não culpar esse Deus por suas ações? Afinal, os 25 mil membros de sua igreja o chamam de Rei coroado por Deus! Assumem suas palavras e sua interpretação da bíblia como única possível. No passado, isso seria motivo para uma guerra, um rei se levantando dentro de um Estado que não o pertence, era motivo para ser perseguido e executado. Ora, não foi esse o motivo de ter sido um rabino pregado na cruz? No entanto, os tempos parecem não ser outros. O quanto irá demorar para que esse Rei reclame para si um reino terrestre, já que não pode reinar no céu, a não ser que destrone seu próprio Deus… Pois bem, o Rei Eddie Long, é suspeito de pedofilia. E agora, como será possível que um Rei coroado por Deus possa cometer pecado e abusado sexualmente de crianças? A primeira linha de defesa de seus fiéis é: ele é um homem santo, um Rei coroado por Deus… Não faria algo desse tipo! A principal pergunta feita pelo cético é: quem comete o crime, o homem ou o avatar? Esse é um dos maiores dilemas em se ter um líder religioso ocupando um cargo político, alguém que faça uma crítica ao político, estará criticando também a fé e seus prelados? Acredito que não, porém, é impossível esquecer que não sou prelado de fé, não pratico o proselitismo e nem possuo um séquito de seguidores que acreditam que minhas ações sejam guiadas por uma divindade e por isso estaria isento das leis humanas.

O pensamento democrático não propõe, no entanto, um ambiente não religioso para a vida social. A religião e a política estão entrelaçadas como base de um mesmo status quo da sociedade pós-contemporânea. Os ensinamentos morais advindos dos livros religiosos, de suas proposições orais e suas práticas estruturais são importantes aparatos para o funcionamento do Estado. Para além disso, a democracia estabelece o direito para que cada indivíduo pratique de forma livre sua religião, desde que a mesma não coloque em risco a vida ou a integridade dos indivíduos. É importante que os verdadeiros líderes religiosos se levantem contra o desejo autocrata por poder social e tomem em suas mãos a tarefa de colocarem-se como verdadeiros faroleiros da moral e dos bons costumes necessários para ordenar o espírito de vida em grupo. Neste tocante é imprescindível que o parlamento exerça sobre si mesmo um esforço para livrar-se da praga do proselitismo político religioso que parece se espalhar como uma pediculose irritantemente perigosa que distorce o pensamento e suga, como que por ventosas, o sangue da liberdade e autonomia política.

Por Isac Rabelo

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