Intelectuais sem Conhecimento Nenhum

Alexandre Teles
Terça à Noite
Published in
4 min readApr 4, 2019

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As últimas três décadas foram marcadas pela presença da internet sendo utilizada por pessoas comuns, como eu e você, antes disso o uso era militar ou empresarial. Mas em especial, nos últimos dez anos, conseguimos alcançar maiores velocidades de navegação e com isso acessar uma gama muito maior de produções digitais, das mais variadas espécies. Blogs de política, culinária, filosofia e artesanato, repositórios de artigos científicos e bancas de jornais hospedados na nuvem, canais de opinião e de entretenimento povoaram a rede e fragmentaram consideravelmente o modo, a qualidade e a quantidade da informação que alcança os leitores. Mas toda essa produção encontrou dois resultados de interesse nosso, que explanaremos a seguir.

O primeiro resultado e o mais problemático, que nos interessa analisar com mais profundidade aqui, aponta que essas tendências atomizadoras e centrífugas do acesso a informação, são, antes de tudo, consequência de um processo de mercantilização da atenção pública. O viés mercadológico da comunicação, não se expressa apenas na utilização do algoritmo do consumo, mas na disputa por quem melhor satisfaz a construção do castelo do conhecimento que dia a dia tentamos erigir.

Se a prensa foi o primeiro passo para transformar todos da sociedade em leitores potenciais, a internet eleva-nos de categoria e distribui, democraticamente, a possibilidade de transformar-nos todos em autores potenciais. Mas diferente dos autores dos livros de outrora que buscavam ser conhecedores profundos daquilo que se dispunham a escrever, o fenômeno do cyberautor é muito raramente de alguém com profundo conhecimento, mas sim alguém que consegue dominar bem as tecnologias da comunicação digital e com isso explanar sobre os assuntos que bem quiser, com base no que outros já falaram sobre o pensamento de algum intelectual realmente relevante, quase sempre de uma maneira menos deglutível, ou simplesmente mais longa.

Aqui pode-se ler duas questões balizadoras, a primeira sobre o fato de que a capacidade de ler e sintetizar os textos, adapta-los para uma linguagem mais próxima do usual da internet, é sim uma porta para uma espécie nova de intelectualidade que é capaz por smesma de produzir um conhecimento e o que estamos experimentando é na verdade a metamorfose da intelectualidade tradicional para a cyberintelectualidade. A segunda questão, que me parece mais real e criticável, é que o processo de aquisição do conhecimento tem perdido o seu valor criativo em vista da perpetuação de sua característica reprodutiva.

Longe de sugerir, que isso é apenas um movimento que acontece na rede, com pessoas isoladas em suas casas, na frente de um notebook, com fones de ouvido, gastando seus dias assistindo vídeos aulas, entrevistas, explanações, ou podcasts como esse, o que se percebe é que essa tendência vista na rede é uma reverberação em alta escala de um caminho trilhado há muito mais tempo, uma estrada que visa formar seguidores, repetidores de argumentos e frases, que só com a superação das fronteiras que a internet proporcionou encontrou alicerce para se erigir como potência político-ideológica supranacional.

O que nota-se cada vez mais é, as pessoas encontraram na internet um espaço para destilar seus pensamentos em palavras, diminuindo ou subutilizando os filtros, que normalmente aplicariam no cotidiano. Pior que isso, encontraram outras pessoas que lhes dão voto de confiança, ou melhor de autoconfiança, através das curtidas, comentários e compartilhamentos. Ora, não se trata simplesmente de ser gentil quando um amigo publica uma foto feia e mesmo achando feio, nós elogiamos, trata-se na verdade de fazer ressoar quando alguém toma uma atitude realmente nociva contra a imagem, quiçá a própria existência, de um outro. Quando não apenas encontramos aplausos para a morte e divulgação do homicídio de uma pessoa (seja ela qual for), mas também argumentos com base em raciocínios de intelectuais (ou pseudo-) que justifiquem que a barbárie seja um mau necessário a sociabilidade moderna.

O fenômeno da configuração de uma gama de novos produtores de pensamento, atualmente chamados de digital influencers, e o desejo da monetização dessas formas de uso da internet, tem carregado consigo algo que compreendemos aqui como uma produção de intelectuais sem conhecimento nenhum, cuja a simples inserção na sociedade civil organizada tem mostrado ser capaz de movimentar parcelas significativas em prol de demandas altamente questionáveis, como é o caso dos terraplanistas, algumas delas moralmente inaceitáveis, como é o caso dos apoiadores de tortura.

Mas, como dito anteriormente, dois são os resultados esperados. Se a priori, falamos duma perspectiva mais distópica do que se povoa a construção do castelo da intelectualização do homem contemporâneo. Agora é hora de falar de um resultado positivo da fragmentação do acesso a informação. Ao mesmo passo que a mídia hegemônica perdeu o poder da narrativa da realidade, as mídias e produções locais ganharam força e com isso, mesmo não tendo acesso aos recursos e as produções intelectuais oficiais, acadêmicas, universitárias, etc., os canais de produção de conhecimento periférico encontraram através da internet a força e o reconhecimento necessários para fomentar a crítica dos paradigmas e estereótipos estabelecidos ao longo dos tempos. Proporcionou levantes e encontros que subsidiaram subjetivamente revoluções estéticas e conceituais, criou novos modelos de oficinas artísticas, culturais e também intelectuais, aos moldes da linguagem e das formas que a periferia concebe e valoriza como preciosas, favoreceu sobretudo a divulgação e até mesmo a imortalização de letramentos únicos.

Por isso, aqui não há uma resposta determinante para os resultados do fenômeno da intelectualização digital, mas antes disso há uma crítica a intelectualidade que estamos experimentando e um reconhecimento de que embora haja intelectuais sem conhecimento nenhum, muitas vezes de onde não se espera conhecimento algum, surgem poderosos intelectuais. Por fim, para deixar claro que também nós, nesse encontro não desejamos provar que devemos ser escutados ou lidos, reiteramos o entendimento apreendido de Sócrates milênios atrás: “Só sei que nada sei!”

Por Uriel Ramos

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