Teresa Vignoli
Blog da Teca
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7 min readSep 1, 2017

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Novo e precioso livro sobre psicoterapia e gestalt-terapia, de Beatriz Cardella, De volta para casa, Ética e Poética na Clínica Contemporânea. A competente introdução foi feita por Nilton Júlio Faria, gestalt-terapeuta e professor da Puc Campinas.

Tive a alegria de escrever, junto com a amiga e colega Fátima Martucelli, a apresentação do mesmo, de forma livre e poética. Segue sua cópia:

Apresentação

Fátima Martucelli e M. Teresa Vignoli (Teca)

A Porta, a Casa, a Ponte e as Flores

Estamos aqui, a Fátima e eu, uma em cada lado da porta da Casa, morada da sabedoria da nossa amiga Beatriz, a Bia. Cada uma de nós duas com um cesto de flores, a acolher, com afeto e alegria profunda, cada um de vocês que chegou até Aqui.

Estamos em silêncio, em reverência ao encontro possível dos futuros visitantes com o que é essencial na trajetória humana e no caminho do ofício de ser terapeuta e professor de terapeutas, no caminho também dos andarilhos que apenas (apenas?) buscam o saber de si e o saber comum, o saber que mora em todos os humanos.

É uma honra estar aqui nesta porta, desta Casa — Templo do Inominável. Nela já entramos, e dela saímos transformadas. Houve encontro, houve encantamento. Por isso estamos à sua espera.

Estamos descalças, acolhendo vocês. Tirem os sapatos, o chão é aquecido, há afeto. Deixem-se afetar pelo inusitado. Venham, aqui é possível o “habitar confiado” de que fala a Bia. Aqui é lugar de Diálogo, abertura ao Novo, abertura ao Outro. Aqui há lugar para o Sagrado.

A Poesia aqui habita, feliz. Foi ela que escolheu as flores que ofertaríamos a vocês. Colheu-as no jardim tão cuidadosamente cultivado pela Bia, jardim de aromas vários e sabores de saber compartilhado. Sabor de Vida nascida a cada Morte acontecida quando nos entregamos ao Mistério.

A cada um cabe uma Flor, guardiã de sua singularidade. O gesto de ofertá-la será guiado pelo invisível que brota do encontro entre nós e vocês, no instante mesmo dessa leitura. Mãos e flores saberão aonde ir. E vocês seguirão com a sua Flor como a levar um candeeiro a iluminar palavras.

Palavras da Bia, palavras de seus mestres, palavras das/dos poetas por ela evocados. Palavras mágicas, tecidas entre as que nomeiam o nunca antes visto e as que falam palavras já antes inauguradas. Tradição e ruptura, verso e reverso, verso que revira os sentidos já percorridos e lhes dá novas roupagens, ousadas, transgressoras, inaugurantes.

Palavras portadoras de um Saber no Vazio renascido, no Não-Saber concebido, gestado em noites e luas, parido em auroras claras. Saber que nos abre à vivência do

…pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…” (…).

Saber que nos ensina a abertura

(…) “para a eterna novidade do Mundo.”

como lindamente foi dito pelo poeta Fernando Pessoa, na voz do heterônimo Alberto Caeiro, num poema tantas vezes citado entre gestaltistas, por sua ressonância tão íntima com a postura fenomenológica que fundamenta nosso caminhar.

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E assim vamos nós, conduzidos pelas generosas mãos da Bia, entre chão e sonho, luz e sombra, medo e coragem, na gangorra dos opostos que nos dilaceram, ou nos redimem quando podemos integrá-los.

Velho e Criança se encontram na ciranda dos ciclos, cantam e dançam. Integram inocência e experiência, um corpo com marcas e outro tão vivo, um livro em aberto e um todo escrito.

Criança é a que cria, criando com a Bia. Velha é a que guia, recriando o já vivido, como a Bia um dia. Como num rio, elas seguem.

Num toco de madeira que flui rio abaixo, duas mãos se aproximam, uma tem rugas grandes e profundas, a outra tem maciez e brilho. Chegarão ao Mar, onde as espera a Barca de ser o que se É, que as conduzirá ao Nada onde Tudo pode acontecer.

Seguirão, a caminho do Horizonte, onde pedrinhas, besouros e andorinhas esperam, silentes. Onde miudezas guardam Mundos Infinitos. Onde, meninos-velhos/meninas-velhas, estaremos a salvo da falta de ventos, estaremos abrigados de certezas, estaremos vivos de Esperanças nascidas em Desabamentos.

Seguiremos, em novas Travessias, na terra das Imagens curadoras, das Palavras que desenham, dos Silêncios que germinam os Sonhos mais verdadeiros, os mais humanos, os mais divinos.

Seguiremos.

E, neste instante
da nossa caminhada
surge uma nova
Ponte,
lugar entre o ontem
e o porvir,
lugar em que,
em iluminada paisagem
esboçada
pelos pincéis da Bia,
os espera a Fátima,
fada a inventar mais
Flores, Cores, Amanhãs:

Teca e eu visualizamos a ponte poética, ética e competente da nossa querida Bia. Como se estivéssemos dentro de um quadro de Monet, seguimos em direção à grande travessia. Encontramos, nas cores fortes que davam contorno às questões profundas e inesgotáveis do humano, pinceladas precisas do sagrado em toda a obra.

Compreendemos que, no mundo contemporâneo, somos conduzidos a um distanciamento da essência que revela a singularidade do ser. Perdemos a bússola interna. Buscamos respostas para questões puramente íntimas e direcionamentos dos nossos próprios caminhos em fontes externas ou em “normas” sociais, muitas vezes regidas por manipulações a serviço de interesses de pessoas e grupos que ditam como devemos Ser, Pensar, Sentir e Agir.

DE VOLTA PARA CASA traz, em muitos momentos, implícita, a ênfase de Edmund Husserl sobre a importância de “voltarmos às coisas mesmas”, de nos abrirmos ao estado original, pré-reflexivo, periodicamente, como método de aproximação ao que nos cerca. O livro convida-nos a, fenomenologicamente, voltarmos ao sentido que dá origem ao nosso estar em construção/evolução. Entre versos, poesia e cuidados, Bia nos conduz a fazer essa travessia — estar na ponte — , entrar em “suspensão”, a chamada EPOCHÉ (termo usado pelos filósofos céticos gregos para nomear a suspensão do julgamento quando se deparavam com situações problemáticas insolúveis).

Para acionarmos novamente a bússola interna, precisamos silenciar os ruídos externos e voltar a escuta para a voz interior, que acontece nem dentro nem fora, mas no “intervalo” que subverte a dicotomia fora-dentro.

A ponte é o “entre”, a travessia é o “encontro” que não é um lugar demarcado, mas um “acontecimento” neste aqui e agora.

Clarice Lispector, em seu poema MUDANÇAS, diz: “mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade. ”

Velocidade?

Velocidade é o que mais o mundo contemporâneo solicita… assim, saímos correndo para fora dos nossos destinos e caímos nas armadilhas do vale sombrio da mesmice e do inóspito, terreno que não oferece condições para as flores germinarem.

Bia traz, em seu trabalho, a ponte que conduz à hospitalidade, que torna fértil o lugar do entre, em que pode florescer o encontro, que em mim evoca as cores vivas dos quadros de Monet.

Essa travessia favorece o reconhecimento do “eu interior”, abrigo das nossas emoções, sensações, confusões, frustrações e demais vivências, que, na verdade e paradoxalmente, ocorrem nas relações, nem dentro nem fora, na fronteira.

Traz a possibilidade de entrar em contato com a própria alteridade e a do outro, o que favorece a compreensão das diferenças que somam e não destroem.

Quando temos as fronteiras nítidas e flexíveis, o que caracteriza um estar no mundo saudável, podemos reconhecer os nossos vizinhos, respeitar o quintal de uma comunidade e o jardim do mundo ao qual pertencemos. O micro gera o macrocosmos, indivíduo e meio constituem-se mutuamente.

O re-ligare se faz presente diante do Mistério que não pode ser desvendado, mas sim ser sentido na generosa relação de respeito e permissão para ser e estar em comunhão.

A ponte traz a possibilidade do ir e vir, este prazeroso exercício do “transitar”, que eu e a Teca realizamos nesta obra, algumas vezes. Fomos para casa e saímos para as descobertas, e depois retornamos para casa.

Diz o cantor Milton Nascimento, em sua música Encontros e Despedidas, que só podemos partir quando temos um lugar para voltar. Complemento que só saímos confiantes de uma casa quando nela temos suporte para inaugurar um novo trilhar.

Bia é uma artista das palavras que se transformam em imagens e movimentos. O leitor consegue, tal o realismo e a alma pulsante do seu escrever, aceitar o convite de rever suas dores e delícias, sua concretude existencial, sem perder a capacidade de cultivar seus mais profundos sonhos celestiais.

A cada capítulo, um graveto é trançado e um macio ninho é artesanal e minuciosamente preparado. Para ter a coragem de fazer a travessia, é necessário, primeiro, se acolher e ser acolhido, ter ninho quente de onde depois renascer.

Acolher não é aprisionar. É dar lugar para a pausa, oferecer nutrição, gestar, confirmar.

Soltar não é deixar/abandonar, é a confirmação amorosa de que o outro está pronto para ir e retornar quando desejar. É ser a casa que hospeda o peregrino, abre a porta a seu voo e gera alegria ao voltar.

Fritz Perls dizia: nascer, morrer e renascer não é nada fácil.

Bia carinhosamente nos conduz ao ninho tecido com o seu amoroso saber. Faz o convite para o leitor experimentar o silêncio, a incubação, o semear, o florescer, a colheita, as pontes, as portas e a passagem pelo grande Portal .

E agora chegou a hora da despedida.

Descalças/descalços,
no solo sagrado,
fizemos a primeira travessia.
Estivemos juntos no Portal.

Mostramos, como anfitriãs do local da Passagem,
nossos corações nutridos com os sabores servidos
nessa obra da Bia,
obra sensível às mais pertinentes e finas questões humanas,
às mais genuínas manifestações do sagrado.

Chegou o momento da visita ao ninho da anfitriã de todos,
a Bia.

Seja esse ninho para vocês o pouso
de onde alçarão, pássaros renovados,
seus voos para novos ciclos, novas construções,
com as asas afiadas no ofício de inventar e reinventar a Vida.

Carinhoso abraço,

Fátima e Teca

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