Contendo Conflitos Socioambientais

O risco por erosão costeira sob a ótica da abordagem sistêmica

Gael Mota
TERRA001

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Desde a década de 60, diversos autores contribuíram para a construção e compreensão da abordagem sistêmica como conhecemos hoje. Dentre os mais conhecidos estão Bertrand e Sochava, passando por outros nomes como Solntcev, Strahler, Stoddart, Tricart, Chorley, Culling e Christofoletti, por exemplo. Para o desenvolvimento deste ensaio que tem como objetivo aplicar a epistemologia sistêmica na interpretação de uma problemática real, serão utilizadas as discussões de geossistemas originadas desde Viktor Borisovich Sochava até os dias atuais, para assim compreender situações de risco por processos de erosão costeira sob a ótica da teoria dos sistemas.

Abordagem sistêmica e geossistemas

Segundo a definição de Sochava, o Geossistema compreende uma classe particular de sistemas que condiz ao espaço terrestre onde todas os elementos naturais se encontram e possuem uma relação entre si, bem como também com a sociedade e seus valores sociais e econômicos. Basicamente, a proposta hierárquica de Sochava compreendia duas unidades, os geômeros e geócoros. Ainda com enfoque na hierarquização, Bertrand incorpora a definição de geossistema como uma unidade taxonômica na categorização de paisagens, na seguinte ordem: Zona > Domínio > Região > Geossistema > Geofácies > Geótopo. Em paralelo aos componentes do geossistema, está os ecossistemas, aqui relacionados com as relações dos indivíduos entre si e o meio físico. Para uma análise completa dos elementos que compõe um sistema é necessário estar atento não somente ao meio físico e biótico presente, mas as relações superiores e inferiores ao sistema estudado, as componentes escalares de tempo e espaço, bem como sua a interação de cada um dos elementos nessas diferentes escalas.

Uma evolução dos estudos hierárquicos de sistemas compreende a proposta do sistema GTP por Claude e Georges Bertrand, nesse modelo o sistema é dividido em três aspectos: geossistema, compreendendo elementos físicos, biológicos e químicos; território, com as ações antrópicas, impactos socioambientais e transformações históricas; e paisagem, com as marcas das sucessivas sociedades em concepção sócio-cultural.

Balneário Hermenegildo, Rio Grande do Sul (fonte: Mar Sem Fim)

Análise Sistêmica Aplicada a Processos Costeiros

Poderíamos considerar o litoral brasileiro como um todo, especialmente entre Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte, como um único e amplo geossistema litorâneo, mas nesse meio encontraríamos importantes diferenças climáticas, de vegetação, relevo e geomorfológicas, só para começar. Partindo da nossa localização e da temática que pretendemos compreender, poderíamos encarar o litoral meridional brasileiro, assim descrito por Suguio, como um geossistema aberto com características similares entre o Farol de Santa Marta e alguns quilômetros além da fronteira com o Uruguai. Porém, logo ao encararmos uma nova classificação, como a geomorfológica de Ab’Saber, notamos que ela ainda não é definitiva, talvez nenhuma escala de abordagem realmente possa ser considerada uma escala definitiva.

As variáveis espacias e temporais são fundamentais para compreender os processos naturais e antrópicos, não é diferente com processos erosivos costeiros. Se pretendemos acompanhar e analisar processos erosivos, precisamos descrever suas variações no tempo e espaço, sendo impossível adotar uma análise estática do processo, visto que são um exemplo da dinâmica terrestre em uma escala de tempo bastante restrita, passível da nossa observação. Questões gerais de erosão costeira poderiam ser identificados em uma escala regional, contemplando toda essa área supracitada, transformando-se em um grande mapa de processos nesse ambiente costeiro. Porém, com essa abordagem fica difícil tratar de riscos, visto que a designação de riscos está intimamente relacionada com fatores antrópicos, visto que só há risco, se há chance de perdas materiais, econômicas ou de vidas. E isso requer uma escala local de análise.

Para a devida análise sistêmica do risco por processos erosivos costeiros, necessitamos, desta forma, de uma análise multiescalar e temporal, já que existem processos em desenvolvimento em escalas regionais (geossistema), locais (geofácies) e de detalhe (geotopo). Aqui, para compreendermos melhor o processo, vamos analisar uma situação real de risco por erosão costeira e tentar desenvolver uma breve análise holística sistêmica sobre tal.

Balneário Hermenegildo (fonte: RBS)

Áreas de Risco e Conflitos Socioeconômicos

Tomemos como exemplo o balneário Hermenegildo, no extremo sul do Brasil, na cidade de Santa Vitória do Palmar. O que temos nessa localidade é um histórico processo erosivo, o qual tem sido enfrentado arduamente pelos moradores através da implantação de métodos para a contenção das águas, especialmente destrutivas em eventos de marés metereológicas. Ao observarmos uma foto do balneário, o problema é nítido mesmo em períodos de maré baixa, onde podemos ainda observar cerca de uma dezena de metros de pós-praia logo a frente das habitações, porém o enrocamento rústico com pedras em frente as mesmas logo entrega a situação.

Agora, consideremos o balneário Hermenegildo como nosso sistema de análise. Quais são os elementos que influenciam no conflito socioambiental instaurado pelos processos erosivos?

A erosão na linha de costa é resultado do aporte de sedimentos, da forma de incidência de ondas, variações no nível do mar, remoção de dunas e tem sua evolução catalisada por interferência antrópica no meio (o que também possibilita a instalação de uma situação de risco). Ao considerarmos o sistema praia como um ambiente altamente dinâmico, com trocas de energia frequentes dentro e fora desses sistema, é necessário observar todas as interações presentes nesse meio.

Sabemos que no Hermenegildo temos componentes naturais, especialmente relacionados a incidências de ondas, que convergem especificamente para o local em que o balneário foi instalado. Desta forma, naturalmente a região do balneário é erosiva, porém tal condicionante não foi observada na instalação dos primeiros membros da comunidade. Com o passar dos anos, a faixa de areia sofreu um processo de estreitamento, e cada vez a linha de costa se aproximava mais das primeiras casas, no local onde deveriam estar as dunas frontais. A medida para conter o avanço do mar e a força das ondas sobre as casas foi a instalação e reposição de matacões logo a frente das primeiras habitações, proporcionando a dissipação da energia das ondas.

Ao analisarmos o sistema, temos componentes de diversas naturezas atuando, sejam elas oceanográficas (incidência e refração de ondas, marés, variação do nível do mar, correntes de deriva), geológicas (tipo de sedimento, características do embasamento, posição das dunas, profundida do nível freático), vegetação (preservação da vegetação nativa, remoção dos campos de dunas e sua vegetação), clima (histórico climático local, influência de eventos meteorológicos), componentes socioeconômicos (modelo de uso e ocupação da terra, relações de trabalho, planejamento urbano adotado, valor de mercado das habitações, especulação imobiliária, interesse da comunidade na área, turismo, perda histórica e cultural pelos conflitos e processos, perdas materiais, econômicas e de vidas).

Todos esses componentes, mesmo que concentrados na área do balneário, não podem ser analisados restritamente a ele, tanto componentes naturais quanto da sociedade são fortemente influenciados por fatores externos. Assim, tanto variações regionais no aporte sedimentar (por eventos extremos ou obras de infraestrutura) quanto a influência de mercado nacional e internacional (visto a proximidade com a fronteira) podem resultar em aspectos que influenciam diretamente os processos erosivos, já que estes são resultados tanto de condicionantes naturais quanto dos modelos de desenvolvimento da área, afetando desta forma o meio físico, biótico, social, cultural, histórico e econômico da região.

Balneário Hermenegildo (fonte: RBS)

Assim, notamos com facilidade o papel da análise sistêmica, onde a mudança de um simples componente influencia o todo. A adotação de um modelo de planejamento urbano que não leva em conta as dinâmicas naturais ou, mesmo, a simples remoção de dunas frontais em prol da construção de habitações, pode colocar todo o equilíbrio de uma localidade em xeque. Afinal, por medidas assim, podem se instaurar processos erosivos, acarretar em perdas materiais, culturais e de vidas, bem como possibilitar o surgimento de conflitos socioambientais em áreas que jamais tiveram tal histórico. A gestão integrada de todos os elementos que compõe um sistema é fundamental para a preservação de uma comunidade, seja ela natural ou antrópica. Respeitar esses limites e interações ainda durante as etapas de planejamento é o grande salto para prevenir o surgimento de conflitos e injustiças socioambientais.

*Imagem de destaque: Richard Barnes via National Geographic

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Gael Mota
TERRA001

geoscientist and professor; dreaming of electric sheep.