Colonização e Resistência indígena no litoral paulista.

Eduardo Ueda
TERRAMARES
Published in
8 min readApr 7, 2020

Veja também “Origem étnica das populações caiçaras”.

A história dos povos que habitaram o nosso litoral antes da invasão portuguesa é muito rica e envolve longas deslocamentos populacionais, guerras e alianças entre nações indígenas.

Origem e dispersão dos povos Tupis.

Existem duas principais teorias baseadas em estudos históricos, linguísticos e arqueológicos que explicam a dispersão dos indígenas falantes do tronco linguístico Tupi pelo território brasileiro. A primeira aponta para a origem da Nação Tupi no sudeste amazônico e sua dispersão pelo território a partir do ano III D.C.. Já a segunda, mais aceita, aponta para a origem da cultura Tupi-Guarani nos arredores da Bacia dos rios Paraná e Paraguai em meados do início da era cristã, ocorrendo sua expansão territorial no sentido do litoral e para o norte, até chegar à Amazônia. Essa segunda interpretação é mais aceita porque dá conta de explicar as semelhanças culturais e linguísticas percebidas entre os povos Tupis do litoral brasileiro e os povos Guaranis do interior da bacia do Rio Paraná, enquanto a primeira não.

Lattre, Jean, 1743 -1793, Guillaume de, 1675–1726, Buache, Philippe
Título: Carte de la Terre Ferme, du Perou, du Bresil et du Pays des Amazones — Mapa do Continente, Peru, Brasil e Terra das Amazonas (tradução livre).

De qualquer forma, a irradiação dos povos Tupis pelo território tem como principais razões a expansão por meio de guerras contra os Tapuias (povos não-Tupis), a migração religiosa (a busca da “Terra sem Mal”), o crescimento demográfico e esgotamento do solo, alguns autores interpretam que a busca pela “Terra sem Mal” era simplesmente a busca por novas terras de cultivo.

A partir dessa expansão territorial, os povos Tupis foram diferenciando sua língua e seus costumes formando diversas subdivisões. No litoral de São Paulo, no início da invasão portuguesa, destacam-se os Tupinambás e os Tupiniquins.

No primeiro momento, a exploração portuguesa do novo mundo se dava por meio do estabelecimento de feitorias ao longo da costa. Nesses estabelecimentos alguns homens portugueses guardavam madeira tintorial (o pau-brasil) até que uma embarcação viesse buscá-las. Diferente do que comumente costuma-se dizer, o pau-brasil não era trocado com as populações originárias por ninharias da Europa. O antropólogo Pierre Clastres explica que o trabalho de extração e transporte dos recursos naturais pelos indígenas era recompensado com ferramentas que os indígenas não possuíam e cujo valor era significativo para essas populações. Ferramentas feitas de ferro, por exemplo, eram significativamente mais resistentes do que as que estavam disponíveis naquele momento.

Os primeiros colonizadores portugueses não eram integrantes da nobreza, como se costuma pensar, pelo contrário, eram homens degredados que encaravam a ida para o novo mundo como uma punição ou como uma forma de recomeçar a sua vida.

Era comum se estabelecer alianças entre os povos nativos e os portugueses por meio de casamentos, fenômeno conhecido como “cunhadismo”, que em um primeiro momento beneficiava ambos os lados. Para o sociólogo Florestan Fernandes a colonização, em grande medida, só foi possível graças à esse fenômeno.

Esse jogo de alianças não foi simples. De fato, os portugueses tinham amigos e inimigos entre os indígenas e essas relações não eram fixas, foram mudando com o passar do tempo. Os Tupinambás, por exemplo, passaram de colaboradores da extração de pau-brasil das feitorias, para se mostrarem poderosos inimigos da colonização portuguesa.

Os Tupis do litoral de São Paulo.

A capitania hereditária de São Vicente foi fundada em 1532. Quando as primeiras vilas foram fundadas no território brasileiro, os portugueses utilizaram das alianças feitas com alguns povos nativos para impôr derrotas militares à outros indígenas, e com isso iniciaram também a escravização dos povos derrotados.

Canhões do Forte de São João apontados para o Canal de Bertioga.

Os Tupiniquins, povo que habitava as terras entre o que hoje conhecemos como Bertioga (litoral sul de SP), teve importante colaboração com os lusos, inclusive construindo o Forte de São João da Bertioga em 1560, cujo objetivo era proteger a Vila de São Vicente das incursões dos Tupinambás.

Os Tupinambás habitavam o território onde hoje vai de São Sebastião-SP até o Rio de Janeiro-RJ (litoral norte de SP e Serra da Bocaína). Eles eram um povo guerreiro e excelentes artesãos, capazes de esculpir grandes canoas em um único tronco de árvore para se locomover no mar ou em rios. Foi este povo que ofereceu maior resistência à colonização lusitana do litoral brasileiro. A inimizade dos Tupinambás com os portugueses iniciou quando os portugueses chegaram na fase da colonização de fato, com a fundação de vilas no litoral e a escravização dos povos originários.

Caminhos do Litoral Norte.

Os povos Tupis eram caminhantes e muito conhecedores das trilhas no litoral e no interior do continente. Alguns estudos apontam que caminhos como o Peabiru conectam o litoral brasileiro ao interior paranaense, dando acesso a caminhos que levam até os Andes.

No início da colonização a Baía dos Guaramimis, onde hoje é Caraguatatuba, era um dos últimos refúgios de tapuias no litoral. É provável que os Guaramimis utilizassem um caminho que ligava a sua baía até Serra acima. Esse caminho, se realmente existiu, devia coincidir em alguns pontos com a Rodovia dos Tamoios que hoje conecta o litoral ao interior.

O alemão Hans Staden (1525-?) foi um viajante mercenário que esteve no litoral paulista e foi capturado pelos Tupinambás. O seu relato, “Duas viagens ao Brasil” (1557), apesar de ser uma literatura para entretenimento europeu com o “exotismo dos selvagens”, guarda ricas informações sobre o modo de vida e a relação dos Tupinambás com o seu território. Staden conta de um antigo caminho Guaianá (antigos habitantes da região expulsos para o interior pelos Tupinambás) que ligava o Vale do Paraíba, passando pela Serra da Bocaína, até Parati. Os Tupinambás utilizavam esse caminho e os rios de Parati, Paraibuna e o Paraíba até chegar ao vale, onde atacavam seus inimigos Tupiniquins. A vila de São Paulo, fundada no Planalto, também foi alvo de diversos ataques.

Além dos caminhos de terra, os Tupinambás também eram grandes navegadores. Saíam de Iperoig (atual Ubatuba), onde havia uma grande aldeia, até a vila de Bertioga, formando verdadeiras tropas para atacar seus inimigos.

Animação: “Uma História de Amor e Fúria” (2013).

A resistência dos Tupinambás foi responsável por impedir a colonização do litoral norte de São Paulo por mais de 70 anos. Que é o tempo entre a fundação da Vila de São Vicente em 1532 e o estabelecimento da primeira empreitada fixa no litoral norte em 1608.

A invasão portuguesa das terras dos Tupinambás iniciou-se pela Ilha de São Sebastião (atual Ilhabela) em 1603. Esta escolha se deve pelo fato de que a ilha oferece melhores condições geográficas para defesa do que uma vila no continente, bastava expulsar os eventuais habitantes da ilha e defender a posição dos melhores locais de desembarque. Em 1603 foi concedida a sesmaria da Ilha de São Sebastião para um tal Diogo de Unhate por ter combatido os Tupinambás e os franceses anos antes na guerra que ficou conhecida como Confederação dos Tamoios, e em 1608, Francisco Ortiz vem do Espírito Santo “povoar” a Ilha de São Sebastião.

A Guerra dos Tamoios ou Confederação dos Tamoios.

A palavra “tamoio” significa algo como “donos da terra”. O antropólogo Darcy Ribeiro popularizou o termo Confederação dos Tamoios para se referir à guerra dos Tupinambás aliados com franceses da França Antártica (atual Rio de Janeiro-RJ), Carijós, Goitacás e Aimorés do sertão para atacar os portugueses e Tupiniquins. No entanto, estudos mais recentes como “Os Tupi de Piratininga: Acolhida, resistência e colaboração” (2008) do antropólogo Benedito Antônio Genofre Prezia, assinalam que não existem evidencias históricas de que outros povos fora os Tupinambás e franceses se uniram à aliança. Por esta razão Benedito prefere chamar o evento de Guerra dos Tamoios, que uniu diversas aldeias Tupinambás do litoral.

O antagonismo entre os Tupinambás e os portugueses e Tupiniquins do litoral foi se acirrando com o passar do tempo. Os fortes e constantes ataques dos Tupinambás eram uma resposta à escravização feita pelos portugueses de homens e mulheres, muitas vezes por meio de emboscadas. Hans Staden narra um evento no qual alguns Tupinambás foram convidados para trocar produtos em uma embarcação portuguesa, e ao embarcarem foram rendidos e levados para a vila de São Vicente. Um importante chefe guerreiro dos Tupinambás, chamado Aimbiré, caiu em uma dessas emboscadas. De acordo com a carta escrita pelo Padre Anchieta destinada ao Padre Diego Laynes (08/01/1565), foi armada uma cilada onde os portugueses ofereciam trégua à tropa de Aimbiré, mas o Tupinambá foi rendido e capturado. Anchieta narra que “por sua valentia, com uns ferros nos pés saltara do navio e havia escapado de suas mãos [dos portugueses de São Vicente], vindo daí seu ódio pelos colonos”.

A aliança entre os franceses e Tupinambás do Rio de Janeiro proveu os últimos de instrumentos de ferro e armas de fogo. O antropólogo Benedito Prezia apresenta relatos de que alguns caciques pediram para ser levados até a França para solicitar apoio militar ao rei francês. Embora não tenha enviado uma armada, o rei da França enviou quatro naus com armamentos e reforços.

Esta guerra durou quase dez anos, aproximadamente de 1556 à 1564. Diante da constante ameaça na Vila de São Vicente e em toda região, o padre Manoel da Nóbrega ofereceu-se como intermediário nas negociações de paz. Naquele contexto, conseguir a paz com os Tupinambás era salvar o projeto colonial português, do qual também dependia o projeto missionário da Igreja Católica. Era a união da Cruz e da Espada contra os “selvagens”.

No final de 1563, o Padre da Nóbrega, acompanhado do Padre Anchieta, chegaram em Iperoig, mas tanto Aimbiré quanto Cunhambebe, outro importante chefe guerreiro, se opuseram ao tratado de paz. Assim, ao final de junho de 1564 Nóbrega voltou para São Vicente e Anchieta ficou em Iperoig como refém. Este conflito teve fim graças a muitas articulações de paz entre os portugueses e Tupiniquins de São Vicente e do Planalto com os Tupinambás.

Em 1564, quando finalmente a organização das diversas aldeias Tupinambás foi desmobilizada por meio dos acordos de paz, uma epidemia de varíola atingiu o litoral e o planalto matando muitos Tupiniquins e Tupinambás.

Através de informações dos padres sobre a epidemia, os portugueses aproveitaram as baixas de seus inimigos para atacá-los quebrando os recentes acordos de paz. Nesse momento, os franceses foram expulsos do Rio de Janeiro. As aldeias Tupinambás desmobilizadas migraram e não mais se organizaram em um grande exército.

A mentira, a doença e a traição abriram, enfim, o caminho para a colonização portuguesa do Litoral Norte de São Paulo e Rio de Janeiro.

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