falando em línguas

julia bastos
Terra sem medo
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5 min readApr 13, 2021

Quando eu tinha mais ou menos 17 anos, quase 10 anos atrás, tomei contato pela primeira vez com um texto de Glória Anzaldúa chamado “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”. Nesse momento, foi como se pela primeira vez eu pudesse entender, através de um pensamento um pouco mais elaborado, porquê a escrita sempre ocupou um lugar de tanta centralidade na minha vida.

Não me lembro de um momento sequer que a prática dos diários não tenha estado presente em meu cotidiano. Por outro lado, lembro com precisão de vários momentos em que a privacidade da escrita me foi violada, com meus diários sendo lidos e até mesmo usados contra mim. Esse é uma das razões pelas quais escrever publicamente sempre desperta em mim um duelo: é um grito mas também um medo de me ver desnuda diante de quem me lê; não sei compor linhas em que eu não escancare a mim mesma. É meu espaço de egocentrismo mas também de reencontrar os fios de uma história coletiva. De narrar quem sou e através da narrativa me autoconstruir. Me autodestruir e fazer algo novo, inteiramente inédito, de toda poeira de minhas ruínas.

Criei esse blog achando que poderia ser um espaço de confabulação. No fim, nunca escrevo; a razão sempre coloca o dilema que já expus: vou falar o que penso? Expor assim, tão disposto, meu pensamento e suas rachaduras? Até que algo me toma por inteiro e de tão forte o terremoto quando vejo já estou vomitando palavras e fazendo essa longuíssima introdução que, de algum jeito, é um modo de ver se perco a coragem no meio do caminho.

Mas vamos em frente. Esse é um texto sobre frestas e fronteiras.

Tenho aprendido a criar frestas em mim para que a dor possa me atravessar ao invés de ficar presa em uma garganta que se faz como represa. Tenho aprendido a construir fronteiras para que a dor não ultrapasse os limites que eu mesma construo. Isso às vezes é tão difícil.

Me encanta na escrita poder criar um lugar próprio pros meus sentimentos. Um lugar próprio para os fragmentos de mim que só eu mesma tenho condições de captar. Se a gente não se debruça na arte da cartografia de si, se a gente não busca enfiar as mãos no corpo-território que somos, se desconhecemos nossa topografia pessoal e coletiva, ficamos reféns de mapas coloniais que descrevem perspectivas equivocadas sobre quem somos, deixamos de ser ou deveríamos ser.

Na letra colonial, sou um bando de coisas que não consideram os caminhos por onde já andei; que me reduzem ao lugar de uma mulher que não deveria ter o direito de ocupar o próprio lugar; que pode ter o corpo disputado e fixado em uma ou outra categoria racial a depender de como resolva pensar a vida.

Na letra colonial, a história contada é de relações que se dão por serventia. Uma palavra dura, mas poderosa: remete à passividade e, ao mesmo tempo, tem um sentido de utilidade. Enquanto minha agressividade é passível de ser instrumentalizada, ela é exaltada e sou uma mulher forte, uma presença que se almeja; mas se essa mesma agressividade se dá em defesa de mim mesma, ela se torna um grande problema, que me lança às marginais do campo comum.

Na letra colonial, nos espaços da afetividade, devo me conformar aos lugares de reserva, de espera, aos lugares de passagem, senão serei colocada como competitiva. Como se a competição pudesse existir em um contexto em que uma das partes adentra à batalha — que é a própria vida — com um sem-fim de vantagens. É uma proposição complexa: que se esteja disponível, em aguardo, mas sem jamais poder conclamar o desejo de receber o mesmo. Essa disponibilidade não tem a ver com tempo, mas com prestígio. É saber que o desejo da sua presença se dá na medida da indisponibilidade do outro; você precisa estar ali, mas só enquanto outra pessoa não puder estar no seu lugar.

Nomear essas experiências é muito difícil. É muito mais fácil pensar que tem tudo a ver com nossas personalidades, nossos interesses, pensar que são aspectos da vida que podemos mudar se moldarmos nós mesmas a agir de um ou outro jeito. Essa experiência de mutilação do espírito, se já não fosse grave, é também insuficiente; há a questão, aquela questão ruim de dar nome. Ou melhor, aquele defeito, tão bem expressado nas palavras de Ana Maria Gonçalves: um defeito de cor.

Mas esse defeito de cor não é a mesma coisa que a teoria do colorismo tenta impor como a única égide sobre a qual o ódio racial se sustenta. O defeito de cor não é só sobre a intensidade de uma única tonalidade; é sobre as diversas possibilidades de existência que são impedidas de se materializar para que a branquitude possa se sustentar.

Ontem eu assisti uma palestra maravilhosa do imenso, gigante, Ailton Krenak. Ele fala do pardismo e da mestiçagem como categorias de pobreza e expressa isso muito bem ao narrar o lugar que esses corpos, assim nomeados, ocuparam durante toda a história desse emaranhado de dores chamado Brasil. E esse lugar de pobreza não é apenas material: o etnocidio se dá também na imposição de que não sejamos quem somos; que tentemos ser uma outra coisa, mas que nunca poderemos alcançar em plenitude.

Nunca serei branca. Nunca agirei como branca. Nunca sentirei como branca. Esse lugar não é meu. Eu já desejei que fosse e eu choro todas às vezes que penso que essa, que é a verdadeira pobreza epistemológica, existencial e cultural, me exige que eu seja outra coisa e não eu mesma; que eu seja uma caricatura, uma fantasia do pensamento colonial. Mas eu já não quero vestir essa roupa. Também já não quero ser a exceção, o único corpo desviante, mas que também não pode se desviar em demasia, nos espaços de sociabilidade que frequento.

Os lugares de pobreza são também os lugares de resistência e rupturas. A verdadeira miséria não me pertence. Estoy aprendiendo a escribir con mi sangre y a hablar con mis lenguas.

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julia bastos
Terra sem medo

escrevo pra desafogar das palavras pulando aqui dentro. estudando nutrição mas caminhando pra longe das dietas e pra perto de uma terra livre e soberana.