Sei lá umas notas pardas

julia bastos
Terra sem medo
Published in
4 min readJan 26, 2020

Eu me lembro perfeitamente, como se fosse hoje — e eu estava na quarta-série, faz bastante tempo, então veja como algumas memórias afetivas penetram na gente — quando recebi pela primeira vez um questionário a ser preenchido com, dentre informações particulares a ele próprio, a questão que depois se repetiria para mim por muitas vezes ao longo da vida:

O que fica de mais forte, para mim, ao me deparar com a questão, é a naturalidade com que preenchi que era parda. Olhei pra minha pele e pensei: ué, parda. Não teve um questionamento complexo, nem nada. Eu só sabia que não era branca — mas talvez não tão escura para ser negra, afinal todo mundo vivia falando que eu era morena.

Eu lembro que, depois disso, estranhei muito quando vi minha mãe preenchendo um questionário com meus dados e, diante da mesma questão, me assinalou como branca. Fiquei completamente sem entender: de onde que minha mãe me via branca? Em algum momento da vida me perguntei já, pensando nessa memória: isso era por ela ser branca ou por, sei lá, talvez ela no fundo desejar que eu fosse branca? Essa segunda teoria faz mais sentido, porque eu ainda sinto o cheiro de formol ou sabe-se-lá-o-que alisando os meus cabelos por quase dez anos. Acho que minha mãe não aguentava mais ouvir minhas tias falando que meu cabelo era indomável, que era feio, que eu parecia mal cuidada. Tinha até uma amiga dela, que a filha também tinha um cabelo tipo o meu, com vida própria, e ela falava pra filha: seu cabelo parece uma bucha. Ou talvez fosse porque nessa época minha mãe trabalhava com moda, grifes, acompanhava muitos desfiles, e o referencial de beleza não era bem esse.

No fundo eu gostei, porque eu também não gostava de ouvir comentários ruins sobre mim, sobre meu cabelo, e cabelo liso é que era bonito. Meu deus do céu, quantas noites de chapinha quando a progressiva começava a sair. O medo de alguém falar alguma coisa.

Outra coisa engraçada (risos nervosos, né) é que criança gosta de assistir televisão com as amigas e falar, como buscando uma referência de si:

— eu sou a personagem tal

— eu sou aquela lá

E aí no meu caso eu era, mesmo “não sendo tão escura assim”, a que não fosse branca nem asiática. E não tinha lá muita diversidade, nesse sentido. Mas não fazia sentido eu ser a loira, ou a ruiva, e ninguém queria mesmo ser a da pele mais escura então ficava pra mim.

uma época em que eu ainda não entendia nada e não tinha crise nenhuma, então eu só dava risadinha

Eu lembro também de um dia, e isso é muito pessoal, mas já faz tanto tempo que acho que dá pra falar sem sentir a culpa que eu tive por anos. Uma vez uma amiga, a gente era criança, foi falar pra um menino que eu gostava dele ou algo assim. Um loirinho que era bajulado. E aí de repente tinha um bando de moleque, de pirralho, me encurralando pra ver quem eu era falando que eu era feia. Falando do meu cabelo, também, é claro, de novo do meu cabelo. Eu nem sei quanto tempo eu fiquei ali, encurralada num canto, só chorando de soluçar. Aí eu lembro que meu primo apareceu — isso tudo foi num clube — e daí pra frente não lembro o desfecho, só que fui embora chorando muito. E hoje eu olho pra foto minha dessa época e fico pensando: poxa, eu era uma gracinha de criança. Não tinha absolutamente nada de errado comigo. Mas por muito tempo (voltando ao início do parágrafo) eu senti que a culpa disso ter acontecido no fundo era da cara que eu tinha, da pele que eu tinha.

Talvez se eu fosse só um pouquinho mais clara.

Mas a verdade é que não tinha nada de errado comigo. Nem com nenhuma das meninas que, vira e mexe, eu vejo depoimento na internet dizendo que passaram pelo mesmo. Eu só sei que tem uma constante — essas meninas nunca (ou, tá bom, quase nunca) são brancas.

Não tinha nada de errado comigo: o dia que eu, ainda criança, quis ir embora da minha avó porque um outro primo fazia piadinhas sobre meu cabelo, meu cheiro, minha cor, minha cara, a cor do meu pai, insinuações sobre sua índole associadas à sua pele… era pra eu querer ir embora mesmo. Mas dava vergonha de contar o motivo então eu deixava meus pais acharem que eu era só chorona, de fato, e com dificuldades de me relacionar.

Vou parar de ladainha.

O lance é que eu demorei muito tempo pra conseguir me olhar no espelho e gostar do que eu vejo. E ainda às vezes eu preciso me lembrar que não é porque eu sou tão diferente de mulheres reconhecidas como muito bonitas que são brancas que, por causa disso, tenha algo de errado comigo. Mudar o referencial, essa coisa complexa, sabe.

Esse não é um post para reivindicar identidade, nem para provar nada pra ninguém. É só uma narrativa parda da nocividade da branquitude.

E que hoje eu vi meu reflexo e pensei: pô, sou gostosa pra caramba.

mantra diário

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julia bastos
Terra sem medo

escrevo pra desafogar das palavras pulando aqui dentro. estudando nutrição mas caminhando pra longe das dietas e pra perto de uma terra livre e soberana.