Sobre tudo que ainda vou dizer

julia bastos
Terra sem medo
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4 min readNov 9, 2021
Arte de Denilson Baniwa

Há 26 anos vivo nesse corpo que, dia após dia, foi tecido de sonhos e dores, dilúvios e secas, lamentos e os mais largos risos. Não menos tempo que isso é o tempo em que habito meu próprio caminho, minha própria jornada e, consequentemente, construo memórias — gritos e silêncios — acerca daquilo que me atravessa.

Entretanto, creio que pela primeira vez nesse tempo todo, há pouco, tenho tido a coragem de falar publicamente — e, não só, recorrentemente — sobre uma intimidade que faz morada em mim desde que sou muito nova: a angústia racial.

Tenho pensado sobre como, dentre outras coisas, o racismo tem por implicação um desgaste imenso de tempo e energia. Lidar com as distorções oferecidas nem um pouco gentilmente pelos espelhos coloniais exige com que, frequentemente, pessoas racializadas precisem gastar seu tempo e energia emocional elaborando tralhas, absurdos, pesadelos e sonhos apocalípticos da branquitude a fim de poder manter-se com algum grau de enraizamento diante da realidade. E isso que se gasta é, no fim das contas, vida.

Falar, portanto, sobre esse tema, nunca é um exercício fácil, confortável ou agradável, pois exige mergulhos profundos em lugares que muitas vezes não são nada bonitos de se ver. Buracos que foram escavados em meio aos nossos estômagos, pregos enfiados sadicamente em nossas mentes, feridas de todas as vezes em que mordemos a própria língua para evitar dizer o que poderia nos custar tudo. Até descobrirmos que o custo de não sentir, não pensar e não dizer é muito, muitíssimo maior.

Então não aceito, e jamais aceitarei, que qualquer coisa que eu diga sobre esse tema seja transformada em picuinha, ou tratada como política da indireta, ou como arma de disputa entre brancos, quando precisam usar de dores que não são suas para se atacar uns aos outros — prática comum da “branquitude antirracista”, uma vez que o racista é sempre o outro, então combate-se o racismo apontando os dedos em riste quando convém, mas esses mesmos dedos não são capazes de abrir frestas para incursões interiores, em si próprios, ou naqueles por quem se tem afeto— pois o que tenho a dizer pessoalmente a quem devo dizer, veja bem, eu digo, com nitidez, com bom tom.

A forma como meu dizer é recebido aí já são outros quinhentos; mas esses outros quinhentos não são novos, são os mesmos desde 1500, a mesma roda girando, da esquiva que quase toda pessoa branca dá ao ser confrontada em sua própria racialização — que se dá justamente a partir da racialização do outro, que se torna depositário de tudo aquilo que se busca negar em si próprio.

É um Narciso que se olha no espelho e, odiando o que vê nele refletido, o joga no chão. Em seguida, nos oferece esse vidro quebrado, sujo, estilhaçado, para que neste seja feita a nossa imagem.

Aceito ainda menos, e jamais aceitarei a partir de agora, que a negociação de que meu silêncio diante daquilo que vejo, sinto e vivo seja pré-requisito para a conservação de relações interraciais. E é evidente que parte dessas reflexões, por vezes, irão recair sobre as pessoas brancas que me cercam mais proximamente no momento presente; mas não é apenas sobre isso e, chega a ser engraçado, até nessas coisas a branquitude é narcisista: seria o racismo estrutural se a causa da angústia racial permanente pudesse ser atribuída a uma única pessoa? Não é o caso: os eventos do racismo são cotidianos e se reproduzem não em uma ou outra relação, mas em todas as esferas que permeiam nossas vidas, desde as mais proximais até as mais distantes, desde as memórias recentes até as mais antigas. Em tudo esse miasma está entranhado.

Não sou racializada perante apenas uma ou outra pessoa, mas perante o cotidiano todo que me rodeia, em todos os espaços que estive, estou e estarei. Viver minha vida, minha própria vida, é justamente admitir habitar minha própria pele, ainda que isso possa alvoroçar o ideário branco sobre como devo me comportar diante de minha própria dor, diante de minha própria raiva, diante de minha própria luta, diante de minha própria alma.

Se tem uma coisa que eu aprendi, sobrevivendo até agora a essa dinâmica podre, é que no fim das contas ninguém me rouba de mim. E a dor, sem medo, agora vou sempre transformar em palavra viva.

O antirracismo só é um disco riscado para quem tenta escutar não com os ouvidos, mas com o umbigo.

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julia bastos
Terra sem medo

escrevo pra desafogar das palavras pulando aqui dentro. estudando nutrição mas caminhando pra longe das dietas e pra perto de uma terra livre e soberana.