A Arte Poética … de Horácio

Jaqueline M. Souza
Tertúlia Narrativa
6 min readAug 18, 2016
Horácio, um dos maiores poetas da Roma Antiga, propicia um estudo cheio de conselhos e amor ao ofício de escrever.

“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” — Italo Calvino

A Arte Poética (ou simplesmente Poética ) de Aristóteles encontrou abrigo no meio dos escritores e reina absoluta há mais de dois mil anos como o “Antigo Testamento” da arte de escrever. Nos anos 80 ganhou caráter quase mítico com sua referência no enorme sucesso O Nome da Rosa de Umberto Eco, lançado em 1980. Em 79, Syd Field lança o Manual de Roteiro e bebe na fonte aristotélica lhe dando novos elementos. Não muito depois, Robert Mckee com Story, volta a estrutura de três atos e confirma Aristóteles como referência absoluta para os roteiristas e escritores contemporâneos.

Mas Horácio, um dos maiores poetas da Roma Antiga, também tem a sua Arte Poética. Escrita em forma de epístola aos Pisões, Horácio racionaliza conceitos e regras para a criação literária, mas também aconselha sobre o ofício, suas responsabilidades e sua ética. Horácio não deixa de lado nem a edição do trabalho e o trabalho da crítica, o que mostra que as preocupações atuais não diferem muito das da Roma Antiga.

Quintus Horatius Flaccus em pintura do conterrâneo Giacomo Di Chirico no século 19

Portanto, Horácio nos proporciona uma visão diferente da que estamos habituados. Apesar da clara influência de Aristóteles e a referência respeitosa aos clássicos gregos, Horácio propõe novas abordagens , trazendo referência latinas e com um tom cheio de amor pela poesia. É um clássico em sua essência.

Então para aqueles que nunca leram ou para aqueles que querem relembrar pontos importantes discutidos por Horácio em sua Arte Poética, separamos alguns trechos :

A Unidade

“Foi uma ânfora, sim, que começou a ser modelada: por que razão, da roda circulante é um pote que vai sair? Em suma: faz tudo o que quiseres, contanto que o faças com simplicidade e unidade.”

Horácio começa sua epístola aos Pisões perguntando se visse uma pintura de uma figura feminina com cabeça humana, um pescoço de cavalo e membros de animais variados com plumas, não acharia que o pintor estava louco. Para Horácio, a liberdade poética tem limites e estes são a harmonia e a unidade da obra. O tema está presente em toda a carta e reforça constantemente a preocupação que o escritor deve ter com a unidade e verossimilhança para não criar obras inconsistentes.

O Rigor e Os Gêneros

“Se não posso, nem sei observar as funções prescritas e os tons característicos dos diversos gêneros, por que hei-de ser saudado como poeta? Qual aí razão por que prefiro, com falso pudor, desconhecê-los a aprendê-los? Mesmo a comédia não quer os seus assuntos expostos em versos de tragédia e igualmente a ceia de Tiestes não se enquadra na narração em metro vulgar, mais próprio dos socos da comédia, Que cada gênero, bem distribuído ocupe o lugar que lhe compete.”

Aqui, Horácio reforça a importância do domínio da técnica no ofício da escrita. É o conhecimento sobre a arte dramática e seus gêneros que impede que o escritor cometa erros. O artista deve respeitar o tom de cada gênero, o tema, assim como ritmo da fala de cada tipo de personagem, um herói trágico não deve falar como um personagem cômico. Esse rigor de Horácio rejeita as obras híbridas e que mudam de gênero durante a obra, como “as epopeias retorcidas em comédia”. Tudo deve estar de acordo com a expectativa geral, dentro do mesmo conceito de consistência e unidade da obra.

In Medias Res

“Não inicia o retorno de Diomedes pela morte do Meleagro, nem a guerra de Tróia pelos dois ovos; sempre adiante-se na ação e arrebata o ouvinte para o meio da ação, como se esta lhe fosse conhecida, e deixa de lado a matéria que ele sabe não poder brilhar. De tal modo cria ficções, de tal modo mistura fábulas com a verdade, que nem o meio destoa do princípio nem o fim do meio.”

Existem duas compreensões sobre o In Medias Res. A primeira, a entende como uma estrutura em que a história se inicia em uma ponto intermediária da ação e depois retorna no tempo narrativo para ações anteriores ao ponto inicial. A outra, a compreende como uma técnica de eliminar parte importante inicial da trama, utilizando um início mais direto e próximo da ação, e não sendo necessário qualquer uso de flashbacks. Outros trechos da Arte Poética de Horácio, que valorizam a concisão e evita o supérfluo, tendem a pesar para o segundo entendimento. O termo Ab ovo também é referente ao mesmo trecho da Arte Poética, onde Horácio faz referência à mitologia sobre o nascimento de Clitemnestra e Helena de um ovo duplo posto pela mãe de ambas. Assim, Ab ovo ou No Ovo, seria um início absoluto e cronológico da Guerra de Troia, ou de qualquer história, mas que deveria ser evitado para fisgar o leitor diretamente para a ação.

Assim, podemos considerar tanto Pulp Fiction quanto In Media Res pelo uso do salto temporal para um momento cronologicamente anterior ao seu inicio narrativo, quanto A Metamorfose de Kafka pela omissão de fatos importantes anteriores ao inicio narrativo:

“Certa manhã, ao acordar de sonhos inquietos, Gregor Samsa viu-se transformado num gigantesco inseto.”

Dramático x Narrativo

“Há ações que se representam no palco, outras, só se relatam depois de cometidas. O que se transmite pelo ouvido, comove mais debilmente os espíritos do que aquelas coisas que são oferecidas aos olhos, testemunhas fiéis, e as quais o espectador apreende por si próprio. Não faças, no entanto, representar na cena o que deva passar-se nos bastidores, retira muitas coisas da vista, para relata-las com uma testemunha eloquente. Que Medeia não trucide os filhos diante do público, nem o nefando Atreu cozinhe publicamente entranhas humanas; tampouco Procne se transforme em ave ou Cadmo em serpente. Detestarei tudo o que assim me mostrares, porque ficarei incrédulo.”

Neste excerto, Horácio faz uma distinção entre o dramático e o narrativo. O dramático é sempre presente, representado em palco e o narrativo é o passado, evento relatado por um personagem após o ocorrido. Para Horácio o dramático é sempre mais comovente do que o narrativo, porém o “maravilhoso” e o ofensivo podem estar presente na narrativa, mas nunca deve ser dramático, a ponto que não só diminuir seu impacto como causar aversão e relutância ao público. A exposição dramática de ações repugnantes, irracionais e metamorfoses, acaba por distanciar o público, que questiona ao invés de se comover com a ação.

Estrutura

“Que a peça nunca tenha mais do que cinco atos nem menos do que esse número, se acaso desejar que voltem a pedi-la e tornar à cena depois de estreada.”

Enquanto Aristóteles defendia a estrutura de três atos, esquema clássico com “início (prótase), meio (epítase) e fim (catástrofe)”, Horácio precisa o número de atos em cinco, mas sem maiores detalhes, possivelmente influenciado pela Comédia Nova grega e o teatro helenístico. Lá, as peças eram apresentadas em um padrão de cinco atos (ou episódios) separados uns dos outros pela entrada do coro. Os dramaturgos Elisabetanos influenciados pelos modelos romanos moldavam suas obras em 5 atos, mas hoje já é compreendido que as divisões de atos que vemos hoje em autores como Shakespeare são referentes a editores posteriores da obra. A partir da segunda metade do século 17, a grande maioria das peças eram em cinco atos. A introdução da cortina no teatro também teve alguma influência na estrutura. . A mesma estrutura de 5 atos foi amplamente utilizada pela séries televisivas durante muito tempo, onde as mudanças de atos eram ganchos para a entrada de intervalo comercial.

Deus Ex Machina

“Que na peça não intervenha um deus, a não ser que o desenlace seja digno de um vingador”

A “Machina” realmente era uma estrutura, como um guindaste, que trazia ao palco os atores que interpretavam personagens divinos.

Enquanto Aristóteles condena o Deus Ex Machina como uma técnica que demostra falta de criatividade do autor, Horácio propõe uma possibilidade. O uso da intervenção da divina, não para resgatar o personagem e salvá-lo, mas para complicar ainda mais história, agindo como um vingador. É uma proposta interessante, que vai contra a teoria de Aristóteles de que a técnica causa a descrença do público ao quebrar a lógica interna da obra. Assim, o Deus ex Machina seria possível sem quebrar a lógica interna da obra, trabalhando a seu favor.

A Viva Voz, publicação da UFMG, tem uma versão bilíngue em latim e português da Arte Poética de Horácio disponível gratuitamente online.

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