COMO FUNCIONAM OS ESQUETES DE HUMOR DO PORTA DOS FUNDOS

Lucas Zacarias
Tertúlia Narrativa
10 min readSep 16, 2015

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O Porta dos Fundos não é vanguarda na criação de esquetes de humor, mas com certeza é a grande referência da comédia curta para a internet no Brasil. Vários canais surgiram depois com a mesma proposta — os que vieram antes não tiveram o mesmo impacto — e sem vergonha de explicitar sua grande referência. A maioria deles, entretanto, não entendeu como funcionam as episódios que Duvivier, Porchat e Tabet escrevem. Vamos tentar, portanto, refletir sobre alguns tipos de estrutura recorrentes no canal. (Para deixar claro, nem todos os esquetes obedecem ao modelo que será apresentado a seguir.)

Há três anos, o Porta dos Fundos aparecia nas timelines como a salvação do humor brasileiro. Naquela época, o que borbulhava na comédia nacional era uma velha discussão — e não um novo formato — sobre os limites do humor, quando se formalizava o “politicamente correto” como a nova expressão mais purgante da língua portuguesa. Produtores de comédia se acomodavam em formatos ultrapassados, variando entre o sitcom novelesco e o estilo Zorra de fazer rir (?), sempre esbarrando na estética Multishow. Em miúdos, salvo comediantes-em-pé com algumas piadas opressoras, ninguém se arriscava, ou sequer se interessava, em renovar os comos.

Aí surgiram uns virais de um grupo que ironizava a TIM e o Spoletto de um jeito que todo mundo se identificou. O discurso e a abordagem dos esquetes conversava com o espectador dentro de um mesmo universo. As situações cotidianas retratadas no Porta dos Fundos carregavam códigos sociais muito mais aproximados da audiência do que os que vemos em novelas e sitcoms brasileiros. A partir daí, se expuseram as vísceras podres das produções televisivas: pela primeira vez não havia o compromisso de cumprir agendas e códigos de conduta de emissoras, o que se evidenciou como amarra significativa de criatividade. O que na TV já não era engraçado, passou a ser risível.

Apesar de apresentar uma nova forma de humor, o Porta dos Fundos não é nem de perto vanguarda no estilo esquetes. As comédias de situação são feitas desde muito antes da internet, inclusive em bom português brasileiro. TV Pirata, Trapalhões, Casseta & Planeta, Mazzaroppi, Oscarito e Grande Otelo já utilizavam do mesmo recurso de comicidade, consagrado por Monty Python, Mel Brooks, Chaplin, SNL, entre outros. O que diferencia o Porta dos Fundos de todos esses é o meio de veiculação e a linguagem utilizada para se adaptar a ele. Vídeos de no máximo cinco minutos condizem mais com a audiência breve da internet, que precisa de ferramentas narrativas que a convença a não fechar a aba do navegador antes do fim do vídeo. O resultado são mais de 10 milhões de inscritos e quase 2 bilhões de visualizações.

Mas que ferramentas são essas?

Podemos entender um esquete como uma trama única, independente e coesa, que se inicia e se encerra em si. No caso de esquetes curtas, podemos considerar também como características a simplicidade no conflito e a quantidade reduzida de personagens. Por se tratarem de uma unidade narrativa que se esgota, é possível projetar uma estrutura em três atos para cada esquete. Neste texto, vamos utilizar o formato clássico para observar o funcionamento narrativo dos episódios do canal. Por opção metodológica, optamos por não analisar os esquetes do Porta dos Fundos dentro de qualquer outra estrutura, como a estrutura tradicional de piada, formada por Set Up / Toppers / Punchline /Tagline.

No caso do Porta dos Fundos, inserido no Youtube, de duração entre dois e cinco minutos e assistido por uma audiência caracterizada como descrito acima, o conflito geralmente é estabelecido nos primeiros 5–10 segundos de episódio.

Diferente das estruturas narrativas mais longas, aqui as mudanças de atos não são necessariamente determinadas por Pontos de Virada, que são momentos em que a trama sofre uma guinada em seu percurso. As viradas, em vez disso, são usadas muito mais como complicadores do que como indicadores de mudança de ato.

Um exemplo disso é o esquete Ciclo da Vida . Apesar da posição de cada personagem se inverter sempre com a chegada de um novo, a busca principal do objetivo do pastor (conseguir uma informação de localização) não se altera. Portanto, as guinadas se configuram como complicadores. Ainda sim, com a chegada do ultimo personagem (Alexandre), o conflito se encerra e a posição do pastor se altera de personagem ameaçado para personagem ameaçador.

Em geral, nos esquetes, as mudanças de ato são pontuadas no momento em que se institui o conflito e no momento em que termina o conflito. Nada que, por enquanto, seja muito diferente das estruturas narrativas clássicas comuns.

O que difere a maior parte dos roteiros de esquete do Porta dos Fundos (e de boa parte dos esquetes por aí) da estrutura clássica comum é a inclusão do Elemento Incomum. Geralmente, o Elemento Incomum estabelece o conflito e é a primeira ferramenta de comicidade. No caso do Porta dos Fundos, é muito frequente que as tramas dos esquetes enfatizem um tema específico de uma situação comum a fim amplificá-la e torná-la caricata. Existem três formas mais claras que são utilizadas pelos autores para alcançar esse objetivo: a inversão, o exagero e a recontextualização.

Percebemos que há INVERSÃO quando uma situação incomum é retratada na trama como usual e transgride a normativa social, gerando quebra de expectativa.

Essa ferramenta é usada em esquetes como Embora , quando Guilherme, já com 30 anos, expõe aos pais seu desejo de que eles saiam de casa. Em Travesti , Miguel se revolta quando a mulher com quem está prestes de transar se revela, de fato, uma mulher. Em Manjada, os dois amigos chamam Alex no vestiário para ensiná-lo a “manjar rola” de maneira mais discreta. Em todas as três situações, o momento da inversão se apresenta depois do conflito, e a ferramenta é usada com o intuito de quebrar a expectativa. O conflito induz o expectador ao usual, ao corriqueiro, até que o Elemento Incomum surge para mostrar o real universo da situação. Além disso, a presença do Personagem Desentendido é também comum aos três esquetes. Suas indagações sobre a estranheza da situação servem de meio para que o universo em questão seja apresentado.

O EXAGERO é muito recorrente nos vídeos do Porta dos Fundos. Acontece quando um elemento é retratado de forma ampliada ou reiterado de forma excessiva. Em Retrô , Léo é apegado a todos os tipos de tecnologias antiquadas, mesmo que tenham funcionalidades duvidosas. O sotaque retrata Léo como uma caricatura do vintage paulistano. Em Excêntrico, Raul é considerado desaparecido pelos colegas de trabalho por não ter respondido um e-mail enviado há duas horas e por não ter visualizado uma mensagem de Whatsapp. Os colegas vão descrevendo as reações desproporcionais que tiveram ante a possibilidade de sumiço de Raul. Em Vida Real, Ricardo leva uma vida muito bem sucedida no Instagram, mas é na verdade um miserável na vida real. Aqui, o exagero está na discrepância entre a imagem representada nas redes sociais e a realidade, muito mais desproporcional do que costuma ser de fato.

O exagero em Porta dos Fundos também inclui situações que partem do ordinário para o non-sense. Em Barata no Banheiro, cada um que é chamado para resolver a situação sai do banheiro descrevendo um mundo paralelo, que inclui zumbis, um sequestro e até a volta de Hitler.

Nos esquetes em que o exagero entra como Elemento Incomum não é possível generalizar a recorrência do Personagem Desentendido. Em Barata no Banheiro, a descoberta do universo paralelo parece ser factível para todos os personagens. Por outro lado, da mesma forma que acontece na inversão, em Excêntrico, Vida Real e Retro, a presença do Personagem Desentendido é fundamental para esclarecer o universo em questão. Da mesma forma, a inserção do Elemento Incomum não acontece de maneira similar em todos os exemplos: em Retro, Vida Real e Excêntrico, o Elemento Incomum pontua o início do conflito; já em Barata no Banheiro, o exagero da situação surge depois que o problema “há uma barata no banheiro” já foi colocado na trama.

A RECONTEXTUALIZAÇÃO retira um comportamento, procedimento ou um elemento do ambiente a qual pertence os recoloca em outro diferente. Nos esquetes do Porta dos Fundos, é muito comum ver conflitos e interações contemporâneas aplicados a passagens bíblicas ou fictícias. Em Setor de RH — Mosqueteiros e Setor de RH — Jesus , Porthos e Jesus são demitidos do grupo de mosqueteiros e da carpintaria, respectivamente.

Em Gameplay , o jogador coordena a si mesmo como personagem de um jogo que é a própria vida. Em nenhum dos três casos existe a presença do Personagem Desentendido e a situação se desenvolve como verossímil dentro do universo proposto. Entretanto, em Rola, o elemento “rola” é deslocado de seu ambiente comum para se tornar uma opção gastronômica de uma lanchonete. Em Compra Coletiva, Nelson compra os serviços de Natasha, uma prostituta de rua, por um site de Compra Coletiva, oferta dificilmente constaria na lista de promoções do site. Em ambos os casos, tanto a cliente da lanchonete quanto a prostituta demonstram não compartilhar do mesmo universo que os personagens com quem interagem, assumindo assim o papel do Personagem Desentendido.

É possível concluir que, nos casos da recontextualização, a inserção do Elemento Incomum pode tanto disparar quanto tornar o conflito reconhecível. Dessa forma, o Elemento Incomum estabelece a mudança de atos.

Estabelecido o conflito e o Elemento Incomum, os esquetes precisam desenvolver a trama. Considerando o usuário da internet como a público alvo do canal, é preciso ter em mente estratégias para manter a audiência engajada no vídeo, até que ele se acabe. Tanto na Inversão, quanto no Exagero e na Recontextualização, explorar o universo que o público desconhece é uma maneira de mantê-lo interessado na trama. Apesar de ser hipotético e às vezes fantástico, este universo está diretamente conectado com o mundo comum. São comportamentos, reações, ambientes, figuras, que fazem parte dos signos sociais reconhecíveis. Quando Cláudia, em Pra Mim Chega, ameaça Roberto com uma arma, o comportamento improvável (exagero) torna a situação engraçada porque o público consegue projetar cenas da própria vida naquela situação, mesmo que em diferentes proporções.

A partir do momento em que o público se vê, ele se desarma e procura mais de si mesmo naquela situação. Procura enxergar a si próprio de uma nova perspectiva e se torna aberto para que o esquete o atinja. Porta dos Fundos aproveita dessa vulnerabilidade em que sua audiência se coloca para explorar ao máximo o universo de suas esquetes e incluir expressões e piadas para reforçar o desenvolvimento do conflito. Fora que as atuações dos atores são de qualidade inquestionável.

A última ferramenta utilizada em um esquete é o punchline, que é literalmente a fala de impacto que finaliza a história. O punchline pode finalizar o conflito ou surgir como uma piada final, depois que o conflito já está solucionado.

Em Deus, a fala “Quando Malafaia morrer, posso dar a notícia” é um punchline explícito, que antecede uma piscada para a câmera. Em Barata no Banheiro, “mas você matou a barata” é impactante porque, independente da complexidade do universo paralelo que se desenvolve no banheiro, a barata parece ser o maior dos problemas para a mulher do casal.

O punchline não é um recurso tão recorrente nos esquetes do Porta dos Fundos, principalmente nos vídeos mais recentes. Com a ausência da fala impactante, o recurso utilizado para finalizar a história é o fim do conflito puro e simples. Em Barzinho, Juliana leva Kleber para um bar de qualidade duvidosa, justamente o que o torna tão atraente para ela. No momento em que um garçom entrega “uma pizza recém-saída do forno, fofinha, quentinha”, ela se irrita e o bar deixa de ser atraente. A simples reversão da atitude de Juliana, de favorável ao bar para contrária ao bar, a coloca no mesmo lugar de Kléber, sempre relutante, e o conflito se encerra. Apesar de ser um acabamento catártico na comicidade do esquete, a falta do punchline não compromete a qualidade de um canal como o Porta dos Fundos, mas certamente colabora para alçar um roteirista comum para o nível de um bom escritor de esquetes.

Dessa forma, o quadro esquemático que representa um esquete do Porta dos Fundos poderia ser assim desenhado:

É claro que este esquema não reduz todos os esquetes do canal. Existem outras formas de se desenvolver um esquete de humor que não cabem nas estruturas constatadas aqui, como por exemplo o esquete Ciclo da Vida, citado no início, cujo conflito não se enquadra como Inversão, nem como Exagero, nem como Recontextualização. Mesmo assim, é importante entender como algumas de suas estruturas funcionam e entender as ferramentas criativas utilizadas por seus roteiristas em cada trama.

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Lucas Zacarias
Tertúlia Narrativa

Roteirista, documentarista e pesquisador de narrativas tortas