Contar, não mostrar

Lucas Zacarias
Tertúlia Narrativa
4 min readOct 13, 2016

As séries de TV estão quebrando a regra mais básica de roteiro?

Não torne seu diálogo expositivo. Não crie diálogos literais. Utilize seu diálogo para criar subtexto. Não crie personagens verborrágicos. São inúmeras as razões para defender uma das primeiras lições que o dramaturgo aspirante recebe em seu aprendizado: mostre, não conte. Este princípio é reiterado ininterruptamente, com o intuito de estimular o escritor a criar ações para transmitir uma informação e, nesta finalidade, considerar o diálogo que entregue a informação como última opção. Concordo; o diálogo funcional neste sentido é um sintoma latente de má escrita. Entretanto, a quebra dessa máxima dramatúrgica é uma tendência constante nas novas séries de TV.

O relato da história através de um narrador é o que fundamentalmente caracteriza o gênero épico do teatro clássico. Com o surgimento do gênero dramático, ao invés de narrar a história, em um deslocamento para o passado onde se situa o fato, passou-se a dramatizar o fato e encená-lo no presente. A dramatização cria uma relação muito mais aproximada do espectador com o personagem que vivencia o fato — que gera imediatamente um sentimento de empatia, de sentir junto. No recurso épico, a presença do narrador funciona como ponte entre espectador e fato, mas dificulta a aproximação entre público e personagem. Numa equação simples, o gênero dramático se tornou hegemônico e o “mostre, não conte” se cristalizou como um mandamento da dramaturgia que se estende até hoje.

No episódio “The Contest” de Seinfeld, George Constanza conta como foi pego pela própria mãe em pleno exercício sexual auto-aplicado.

Na TV, entretanto, esta regra começou a ser subvertida por necessidade. Relatar um fato em vez de dramatizá-lo é um recurso já há muito tempo utilizado, por exemplo, em sitcoms. Programas neste formato se passam em poucos cenários fixos, geralmente gravados em estúdio e encaixados em janelas de 30 minutos da grade de TV. Ou seja, têm pouco tempo e pouco espaço para entregar o que precisam. Neste contexto, o relato passa a ser uma ferramenta. O personagem narra uma história para instituir ou piorar o conflito e o recurso é admitido em uma proposta narrativa que se favorece dele.

A opção pelo relato em detrimento da dramatização é um movimento comum em produções de baixo ou limitado orçamento. No entanto, o que parece uma escolha que induz ao erro da escrita pobre, foi no fim um estímulo criativo. Um exemplo é a websérie The Booth at the End, que se passa em apenas uma locação e é 100% construída sobre diálogos.

O ponto é que as séries dramáticas passaram a utilizar o mesmo recurso sem se importar com o risco que correm de criar cenas expositivas. Talvez, o exemplo mais significativo tenha acontecido em BeTipul, série israelense e em sua popular versão americana In Treatment da HBO, que se passa em meia hora de consulta de um psicólogo e seus cinco pacientes por temporada. A série se baseia fundamentalmente no recurso épico: o paciente chega na consulta e narra. A baixa dramatização, entretanto, fez esgotar o recurso e a série, apesar de inovadora, não passou da segunda temporada na série original e da terceira em seus remakes. A deixa, porém, já estava no ar: é possível narrar e manter o espectador interessado, em certa medida.

In Treatment

Este movimento está diretamente relacionada com a tendência à verticalização do caráter do personagem, que é prática fundamental nas séries de TV contemporâneas. As séries diminuem na história o grau de importância da perseguição do objeto de desejo pelo protagonista — o que convencionou-se qualificar como plot driven — e jogam luz sobre o percurso psicológico do personagem, em uma trajetória interna. O personagem não só se transforma ao longo da história, como revela diferentes traços de personalidade, contradições, falhas, em função da construção da complexidade de sua humanidade.

No episódio Gloves Off de Better Call Saul (S02E04), Nacho narra a Mike o dia em que o pedaço de um crânio se alojou em sua pele na tentativa de convencê-lo a tomar uma atitude irreversível, despertando empatia e criando vínculos com o interlocutor e com o público .

A escolha de contar em vez de mostrar, neste caso, não distancia o espectador do personagem que vivencia o fato. Muito pelo contrário, nos aproxima do personagem que relata o fato. Estamos diante de um narrador diegético, que faz parte da trama, e não mais um narrador externo à história como nos épicos da dramaturgia clássica. Este narrador é o personagem complexo pelo qual fazemos uma incursão psicológica, através de sua forma de narrar. Suas ênfases, suas pausas, sua construção de discurso são opções narrativas que colaboram na construção do personagem e na verticalização de sua personalidade. Sem a necessidade de que se dramatize a cena através de um flashback. Isso não importa. A cena já está produzida dentro da cabeça do espectador com eficácia muito maior do que uma cena dramatizada. Portanto, a regra do mostre, não conte não é transgredida com o intuito de contrariá-la, mas de se incorporar o ato da contação à própria linguagem da imagem, ou contar para mostrar. E assim, através da desobediência de uma regra dogmática, pode-se inovar na narrativa.

Episódio 3 de Horace and Pete é completamente narrado. Uma atuação magistral de Laurie Metcalf.

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Lucas Zacarias
Tertúlia Narrativa

Roteirista, documentarista e pesquisador de narrativas tortas