Isto não é um Editorial — Um ano de Tertúlia Narrativa

Tertúlia Narrativa
Tertúlia Narrativa
4 min readApr 20, 2016

Ou como a incompreensão narrativa de uma sociedade leva a incomunicabilidade

Em tempos de crise política como a que passamos atualmente no Brasil, parece trivial e naif falar sobre roteiro audiovisual ou narrativa. Por isso, pausamos temporariamente os posts e artigos do site já que parecia haver “assuntos mais importantes a serem discutidos agora”. Mas hoje, nós gostaríamos de falar um pouco sobre narrativa e também sobre política. Quando criamos a Tertúlia, há exato um ano atrás, fizemos uma escolha. E esta escolha nós carregamos em nosso nome: Tertúlia Narrativa. Nós chegamos a nos questionar se narrativa não seria um termo abrangente demais. Agora, temos certeza que não. Afinal o dramático é sempre narrativo, mas o narrativo nem sempre é dramático. Independentemente do seu (e do nosso) posicionamento político no atual cenário brasileiro, nós precisamos entender que ele é majoritariamente narrativo, uma narrativa que está presente em nossa vida de forma invisível, mas constante.

Vemos as pessoas se dizendo bombardeadas de informações, quando na realidade estão sendo bombardeadas de narrativas. O que menos temos é informação. Quem diria que um dos motes do storytelling “Less information, more drama” (menos informação, mais drama) seria seguido a risca por nossos jornais e quase ignorados por nosso cinema. Não é cômico e é trágico. Política, assim como a narrativa, é algo que só existe coletivamente, com o outro e para o outro, por isso não podemos apontar heróis ou vilões, já que todos somos anti-heróis de nossa própria história.

Se fala muito do Fla x Flu que se tornou a discussão política do país, mas se nós tivéssemos que definir esse bipartidarismo, ele não seria entre azul contra o vermelho ou dos esquerda caviar versus os coxinhas. A atual divisão brasileira é narrativa. De um lado, aqueles que acreditam nas narrativas que lhes são contadas e, de outro, aqueles que criam uma narrativa própria, sob sua medida ideal para acreditar. Os que compram e os que criam narrativas.

Os que creem nas narrativas prontas são aqueles que canonizam notícias veiculadas por grandes grupos midiáticos, compartilham factóides de blogs duvidosos, se contentam em se informar com a chamada de uma matéria sem ao menos lê-la. “Compram” uma narrativa fechada, simples para ser facilmente compreendida, feita em escala industrial para servir a maioria e ser amplamente reproduzida e consumida.

Os que criam sua própria narrativa, fazem recortes de um pouco de tudo o que há no mundo e colam essas informações de forma que esta trama evolua para montar uma colcha de retalhos ideológica, onde só as informações pertinentes ao seu posicionamento formem uma tese, comprovando o que elas já acreditam, mesmo que isso implique em ignorar fatores fundamentais para a equação geral. “Criam” uma narrativa fechada, complexa para disfarçar os furos de roteiro, mas tão autocentrada, que só convence a si mesmos ou a seus iguais.

Esses posicionamentos narrativos podem ser encontrados em ambos os lados da discussão. E eles se apresentam não como narrativa, mas como uma verdade absoluta, dividindo o mundo em bons, aqueles que compartilham meu ponto de vista, e os maus, aqueles que ousam ter experiências e opiniões distintas da minha.

Narrativas maniqueístas são compostas por personagens rasos, sem as idiossincrasias do ser humano, que só estão presentes na história para reforçar o discurso moralizante de seu autor. Quando transferimos esta forma narrativa para nossa vida social, perdemos a empatia e a capacidade de debater de forma saudável com pensamentos adversos.

Ao contrário da arte, que pode ser chiaroscuro, a realidade está muito mais para um grande degrade de tons de cinza. Assim, percebemos que os heróis e vilões presentes na ficção, na realidade só podem existir como protagonistas e antagonistas. Sendo o protagonista o personagem em torno do qual se constrói a história, e em geral sob qual o ponto de vista da história é apresentado, o antagonista não é um ser malévolo, é apenas um opositor, um dissonante do discurso apresentado.

Mas esta construção de heróis e suas jornadas é tão primitiva, está tão profundamente arraigada em nós, que nós a reproduzimos e nós a defendemos, sem nos dar conta. Esquecemos de fazer perguntas básicas como “Quem conta esta história?”, “Sob que ponto de vista?”, “Para quem conta esta história?” “Com que intenção/objetivo?”.

Escritores são leitores, e acima de tudo, leitores do mundo. A sintaxe presente em textos dos grandes veículos de comunicação, dos blogs, das revistas, dos discursos políticos são maquiagem para um subtexto, onde cada palavra é posicionada para bem vender ao leitor/ouvinte um ponto de vista. É preciso estar atento (e forte) para ler a narrativa, e não apenas o texto.

Quando falamos em narrativa, não estamos falando apenas em aprender ferramentas para contar histórias, mas a aprender a observar as construções narrativas presentes no cotidiano. Isso vai das articulações politicas até as suas representações na mídia, do ponto de vista de seus parentes na mesa de jantar aos memes aparentemente inofensivos das redes sociais. Se não podemos identificar as construções dramáticas, as funções narrativas de determinados personagens em nossa sociedade, se desconhecemos as esferas de ação em que estamos inclusos, como podemos criá-los na ficção? Se nos portamos como personagens planos, como podemos escrever personagens esféricos? Se reproduzimos em nossa vida narrativas enlatadas, prontas para o consumo, como poderemos criar obras complexas e relevantes? Que narrativa queremos para nossa sociedade? E acima de tudo, que história queremos para nosso futuro? Já é passada a hora de começarmos a escrevê-la.

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Tertúlia Narrativa
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A Tertúlia Narrativa é um coletivo de criação e estudos de roteiros que tem como missão, propiciar o debate e o desenvolvimento das narrativas audiovisuais.