The Night of e Criminal Justice: a exceção e a regra
“Nós vamos tornar o pé dele realmente importante.” — Steve Zaillian
Quando a HBO anunciou The Night Of, uma minissérie baseada na primeira temporada da serial britânica Criminal Justice, os nomes de Richard Price e Steve Zaillian como criadores já deixou a antena dos roteiristas em alerta. Richard Price é um escritor e roteirista vigoroso ( inclusive já experiente com a linguagem da HBO por assinar 5 roteiros da série The Wire), com uma carreira voltada aos personagens à margem, as tramas criminais e aos conflitos sociais das ruas nova iorquinas. Steve Zaillian não está na minha lista de roteiristas favoritos, mas sua importância como roteirista no cinema americano contemporâneo é inegável. Pensando ainda que ele é um roteirista quase que especializado em adaptações ( Tempo de Despertar, A Lista de Schindler, Hannibal, Millennium: Os homens que não amavam as mulheres, entre outros), no mínimo seria curioso ver sua “adaptação” da já excelente série britânica Criminal Justice.
E ao assistir The Night Of , o mais surpreendente aconteceu. Price e Zaillian conseguiram fazer uma série muito parecida com a original, mas completamente diferente — uma mesma fábula com tramas distintas. A primeira metade de The Night Of segue o mesmo encadeamento de ações de Criminal Justice, mas explora mais o potencial dramático das situações. A transposição cultural, não só foi bem feita como aprofundou a história, trouxe novas camadas de densidade a trama. Cada pequeno detalhe presente em Criminal Justice foi explorado em todo o seu potencial dramático em The Night Of. Detalhes que não existiam foram criados e tecidos, elevando os personagens a estudos complexos sobre o ser humano. E nada disso de forma pesada ou forçada, pelo contrário, de forma orgânica ao enredo e ao clima.
“Mas essas definições não são mais as das duas histórias do romance policial, mas de dois aspectos de toda obra literária, que os formalistas russos tinham descoberto há quarenta anos. Eles distinguiam, de fato, a fábula e a trama de uma narrativa: a fábula é o que se passou na vida, a trama, a maneira como o autor no-lo apresenta. A primeira noção corresponde à realidade evocada, a acontecimentos semelhantes àqueles que se desenrolam em nossas vidas; a segunda, ao próprio livro, à narrativa, aos processos literários de que se serve o autor. Na fábula, não há inversão de tempo, as ações seguem sua ordem natural; na trama, o autor pode apresentar-nos os resultados antes das causas, o fim antes do começo. Essas duas noções não caracterizam duas partes da história ou duas histórias diferentes, mas dois aspectos de uma mesma história, são dois pontos de vista sobre a mesma coisa.” — As Estruturas Narrativas, Tzvetan Todorov
Para entendermos como essa construção foi criada de forma tão eficiente a partir de um material original já excelente, vamos comparar algumas diferenças nos episódios pilotos das duas séries.
Personagens Típicos x Personagens Indivíduos
Criminal Justice é um estudo sobre o sistema criminal, utilizando o caso de Ben Coulter para colocar em xeque o que os próprios personagens alegam ser a melhor justiça criminal do mundo. The Night of é um estudo de personagem, utilizando o sistema criminal para testar os limites éticos e psicológicos de cada personagem. Se em Criminal Justice temos personagens “tipos” ou alegóricos que tentam provar a regra, em The Night Of temos personagens indivíduos com características psicológicas particulares que estão lá para se provar a exceção a regra.
Mais ainda, Stone como boa parte dos personagens típicos tem um acessório, no seu caso, as sandálias. São elas que mostram que Stone é um advogado que não se enquadra naquele mundo pomposo, que faz parte do baixo clero (em português, nós temos uma expressão pra isso: pé de chinelo). A antítese do poder. Em Criminal Justice, o eczema de pele é mera desculpa para que o personagem use o acessório que ajuda a definir o seu tipo.
Em The Night Of, o eczema é uma característica que ajuda a desenvolver o personagem, um conflito físico que o personagem enfrenta que revela seu caráter, sua personalidade e seus limites, além de ser uma metáfora da vida de Stone. Então, a simples diferença entre a conceituação por trás de um pé com sandálias pode parecer detalhe, mas mostra como opções diversas de caracterização de um mesmo personagem altera o desenrolar de uma trama.
Price diz que o traço do personagem foi trabalhado pelo criador de Criminal Justice, Peter Moffat, que sofria da aflição. E talvez seja uma metáfora para a jornada de Stone. “Quando eu comecei a ler os comentários, as pessoas entenderam que o eczema era uma metáfora, você sabe, para a frustração de encontrar uma solução. E é uma espécie de metáfora para todo o sistema judicial frustrante. Embora alguém disse: “Eu sempre espero os comentários sair para ver sobre o que eu escrevi.” — Richard Price
O protagonista- Ben X Naz
A primeira diferença e mais significativa é a escolha de colocar o protagonista dentro de uma etnia socialmente hostilizada no país. O protagonista passa a ser Naz, um jovem americano de origem paquistanesa. Ben é um homem branco acusado de matar uma mulher negra, enquanto Naz é um muçulmano americano acusado de matar uma mulher branca- essa mudança é ponto central da diferença de estrutura e conceituação de ambos os shows. Por isso, The Night of acaba explorando temas como a tensão racial e o preconceito, enquanto Criminal Justice foca-se no sistema de justiça criminal. Outra mudança importante é o perfil psicológico do protagonista, Ben é apresentado como um jovem, faz parte de um time de futebol, e sai em uma noite sem destino querendo se divertir. Naz é apresentado como um jovem estudioso, não muito bem visto pelos atletas, ligado a família e quer sair na esperança de conhecer meninas. Essa diferença também é importante, porque essas características são essenciais para a transformação de Naz ao longa dos episódios. Então é bom observar que as mesmas situações são enfrentadas por personagens diferentes, o personagem não foi meramente alterado, é outro personagem.
Uma tela preta, dúvida e suspeitos
Em Criminal Justice , Ben sai com o táxi do pai, encontra com uma garota que leva até a praia, onde eles conversam e se drogam. Na casa dela, eles fazem sexo. Ele desce para beber água na cozinha. Tela preta. Ele acorda na cozinha, sobe para o quarto e encontra a menina morta com uma facada no peito. Em The Night Of, Naz sai com o táxi do pai para ir a uma festa, mas se perde. Deixa uma menina embarcar no táxi e a leva ao rio, onde eles conversam e se drogam. Ao chegar em sua casa, ele é insultado por homens que passam na rua .Eles entram na casa, conversam e voltam a se drogar. Eles fazem sexo. Tela preta. Naz acorda na cozinha e volta para o quarto. Encontra o corpo dela ensaguentado no quarto. Quem assistiu a ambos sabe que existem mais diferenças, mas nosso foco aqui são os detalhes. E o local da tela preta em cada um são escolhas milimétricas para guiar o público em duas concepções opostas de trama. A escolha de deslocar a elipse temporal e aumentá-la, mesmo que em questão de poucos minutos dentro do tempo narrativo deixa em The Night Of um gosto de dúvida. Em Criminal Justice, o público não tem em momento algum a dúvida de que Ben não matou a garota. Já em The Night Of, apesar de estarmos do lado do protagonista por conta do ponto de vista da trama, ainda assim podemos duvidar se ele realmente não poderia tê-la matado e isso simplesmente pela escolha de uma elipse temporal.
Trama B — Os pais
Enquanto o piloto de Criminal Justice opta por trabalhar o segundo ato inteiro na delegacia, The Night Of trabalha com uma subtrama com os pais procurando por Naz. A escolha aparenta ser em primeiro lugar para aumentar a dinâmica do ritmo do segundo ato, evitando uma sequência grande na delegacia, ao intercalar as cenas dos pais de Naz ao telefone. Mas a escolha também introduz os pais de Naz com muito mais destaque do que em Criminal Justice. Em The Night Of, apesar de não terem o mesmo espaço que outros personagens, eles ainda tem um seus conflitos desenvolvidos ao longo dos episódios, mostrando como a prisão de Naz afetou a sua família. O final do episódio com o pai de Naz, inclusive é um grande exemplo do poder dramático presente na figura dos pais, que ainda não tomaram conta do tamanho da reviravolta que tomará conta de suas vidas.
Então, se você não assistiu Criminal Justice, assista. A série é excelente e desenvolve de forma muito focada e aprofundada a trama principal quase como se tecesse uma tese a respeito do sistema criminal britânico. Se você não assistiu The Night Of, assista. É uma aula de como explorar dramaturgicamente situações e eventos que já são dramáticos por si só.
