Aleluia de Handel, nostalgia e sete anos de USP

Marcelo Dutra
Textando
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8 min readSep 15, 2017

Acabo de chegar em casa. A cabeça está cheia de pensamentos, memórias e emoções. Meio que sem perceber, uma etapa da vida se encerra. Entreguei a versão final, revisada e corrigida, da minha dissertação de mestrado. Você irá perceber que esse texto não terá necessariamente um argumento, nem uma lógica definida e certa. Talvez seja um contraponto a meses de minuciosas escritas de incontáveis páginas sobre a síntese de caracterização de nanomateriais como catalisadores. Apresento aqui a vocês uma colcha de retalhos de reflexões que ainda busco entender. Vamos lá.

Acordei muito cedo. Tive aula durante a manhã inteira no seminário. Saí da escola de teologia decidido a passar na Universidade de São Paulo e finalizar todas as pendências que tenho na pós-graduação. Peguei o ônibus meio sonolento, era o momento do descanso da cabeça após uma manhã cheia de desafios. Porém, a cabeça não parava. Fiquei pensando qual ponto de ônibus é melhor descer para alcançar meu destino. Lapso de nostalgia. Sou da época em que o ônibus circular da USP era cinza, demorava muito mais pra chegar, não precisava de cartão e não tinha nem metrô. Confesso que tenho dificuldade em andar nos ônibus circulares da USP hoje, não sei direito as rotas. Por isso minha cabeça não parava de pensar no melhor local da rota não muito conhecida. Não decidi, simplesmente desci. Comecei a caminhar e notei que havia descido no terminal de ônibus da USP, notei que o meu trajeto iria trazer em mim memórias dos últimos sete anos convivendo nesse campus.

Comecei a caminhar em direção ao prédio da administração da minha unidade. Passei perto do prédio de engenharia de materiais, frente ao seu centro acadêmico, ao lado de um xerox. Lapso de nostalgia. Ao lado desse xerox, existia um restaurante chamado Toca do Urso, onde eu fui almoçar muitas vezes com amigos durante a graduação. Sim, eu ia ao bandejão, mas em tempos de greves e correria acadêmica, o delicioso self-service desse restaurante era uma alternativa prazerosa de boas conversas. No meu trajeto notei que eu faria o mesmo caminho que fiz por anos para frequentar esse restaurante. Passei pela passarela/ponte, cruzando o córrego comumente chamado de Tejo (bem fedido, por sinal). Notei semelhanças e diferenças no caminho. Lembrei dos rostos de amigos, lembrei das conversas. Conversas com temas que eu nem lembro mais, possivelmente sobre a vida acadêmica, integrais, derivadas, superficialidades comuns aos estudantes de engenharia. Percebo hoje como poderíamos ter aproveitado a vida com conversas melhores e mais profundas. Não que não existissem, mas o tempo passou e oportunidades de amizades que fossem além do superficial foram perdidas. Sei lá, parece que certas amizades pertencem a certas rotinas ou lugares, tal como a Toca do Urso. O local desse restaurante ainda está lá, porém, fechado e vazio.

Caminhei pelo grande estacionamento, com seu terreno desnivelado, com o sol escaldante sobre minha cabeça. Cheguei ao prédio da administração, fui até a seção de pós-graduação e entreguei minha dissertação. A funcionária pegou o meu exemplar e foi embora. Perguntei se não precisava assinar nada, ela disse que não e se retirou. É, não há mais nada que eu possa fazer pelo mestrado. Acabou. Saí daquele prédio, onde eu comemorei com amigos e família o fim da minha graduação, vi os locais que eu tirei foto como engenheiro recém formado. Dessa vez não tinha comemoração, simplesmente fui embora. Assim como sigo minha vida após mestrado sem saber para onde vou, segui o meu percurso sem saber para onde iria. Decidi virar à esquerda. Peguei uma rota que me lembrava o passado novamente. O caminho que eu seguia por trás do prédio da administração, passava pelas intermediações da ECA/FEA e chegava ao bandejão central. Nesse caminho, lembrei de uma das melhores descobertas gastronômicas ao longo dos meus anos de USP, que também já fechou, o restaurante/lanchonete da Associação dos Servidores da Escola Politécnica, vulgo, ASEP. Fui apresentado a esse local por um dos veteranos da ABU da Poli. Decidi passar lá em frente com uma leve esperança de que estivesse aberto novamente. Não estava. De forma semelhante a Toca do Urso, o local da ASEP estava lá, porém, fechado e vazio. São boas lembranças nesse lugar. Lembro que apresentei a ASEP para todas as pessoas que eu tive oportunidade. Era um hambúrguer, longe da sofisticação das atuais hamburguerias, barato, não saía mais que R$ 5 na época. Foram momentos muito bons de compartilhar a vida ao redor de uma refeição. Diferentemente do restaurante anterior, era um local silencioso, com poucas pessoas e que proporcionava as conversas profundas e significativas. Seja porque frequentei esse local muitas vezes (mas não somente) com amigos da ABU, seja pelo preço barato (que salvava durante as greves rs), que saudade eu tenho desse lugar!

Continuei meu caminho. O corpo já tinha começado a gritar por uma refeição há um tempo. Decidi aproveitar a rota e passar nas barraquinhas da ECA. Outro local que apresentei para quase todos que tive oportunidade. Localizadas ao lado do sindicato dos trabalhadores da USP, comer por ali sempre me colocava a par dos bastidores políticos da universidade. Certa vez até imprimimos os milhares de guias dos calouros da ABU no próprio sindicato. Queriam colocar o logo do sindicato nos nossos guias, mas não deixamos. Diante das confusões políticas na universidade, sempre assumi um papel de observador, seja nas assembleias, seja nas discussões de facebook, seja durante uma refeição nas barraquinhas da ECA. Além disso, as conversas com amigos naquele local e também o tratamento excelente das mulheres que preparam os lanches davam às pessoas são marcas mais fortes que confusões políticas. Comi um excelente X- Churrasco e segui meu caminho em direção ao prédio de engenharia química. Meio que me perdi no caminho. Na verdade, tentei fazer um caminho que não é possível mais ser feito devido a várias cercas colocadas em volta da ECA. Observei as pichações nas paredes. Concordei com umas, outras não. Mas me pergunto da efetividade desse tipo de protesto (e de tantos outros) empreendido pelos grupos estudantis. Num mundo em que todos gritam, como é difícil conversar!

A parte mais difícil do meu trajeto havia chegado. A subida. Passei perto do prédio de geologia. Notei um restaurante que não conhecia. Me perguntei se era um local bom e barato. Concluí que passou o tempo de desbravar os restaurantes da USP. Um dia pergunto para alguém. Caminhei, cheguei à famigerada escadaria que me daria acesso aos blocos de engenharia química. Quem a conhece sabe do que estou falando. Subi diante do sol de 33 ºC. Apesar de eu estar me dedicando a retornar a minha forma física, cheguei ao topo sem ar e com muito calor. Antes de questionar a efetividade do meu treinamento de corridas, lembrei que ontem eu tive um treino forte e que hoje era um dia de descanso. E eu estava caminhando boa parte do campus da USP. Grande de chance de dar ruim. Aliás, os meus treinos serão o elo perdido entre eu e a USP. Não há lugar melhor para mim para correr em São Paulo. Amo correr na USP e, enquanto morar aqui, farei isso. Cheguei até minha mesa, o local onde passei parte dos últimos dois anos, lendo artigos, tratando resultados e escrevendo conclusões. Conversei com as pessoas que ficam na mesma sala. Lembrei de quantas pessoas já passaram por ali. Fiz o que eu tinha que fazer no computador. Encaminhei e-mails agradecendo as pessoas que atuaram no desenvolvimento da minha pesquisa de mestrado. E comecei a tirar todos os meus arquivos pessoais daquele computador. Há algumas semanas concluí que é necessário dar oportunidade para outra pessoa ocupar o espaço que eu ocupei na USP.

Foi difícil chegar a essa conclusão. Como seria confortável continuar no mesmo local que convivi por sete anos! Conheço cada atalho, cada pessoa, cada burocracia. Não há como negar a decepção que vivi nos últimos anos com a vida acadêmica. Ao mesmo tempo que passei a amar a pesquisa e os caminhos da ciência, me decepcionei com as amarras das estruturas que criamos nas universidades e com o massivo corte de investimentos e incentivos ao longo dos últimos anos. A reflexão que faço hoje sobre os dois últimos anos é: amei fazer o mestrado, mas não sou obrigado a me sujeitar à conta que a vida acadêmica pede de sua vida. Vou fazer o doutorado? Não sei, preciso pensar sobre tudo isso. Esse é o tempo que vivo hoje. Agora não, mas possivelmente sim.

Entendeu? Pois é, eu ainda também não. ̄\_(ツ)_/ ̄

Como a transferência dos meus arquivos ia demorar muito, resolvi ir embora. Amanhã ou semana que vem busco o restante. Andando pelo mesmo caminho que andei nos últimos anos até o ponto de ônibus, lembrei de algo. Lembrei da aula que tive hoje pela manhã no seminário. O professor contou a história de como Handel compôs o oratório do Messias, dentre as canções, a comumente conhecida como Aleluia de Handel. Me impressionei com o compositor que ficou em estado de choque diante da música que estruturou a ponto de ele clamar (aos prantos) que havia visto a Deus. Leia mais sobre essa história aqui. Durante a aula, tomei nota de que deveria ouvir essa canção mais tarde. Assim, coloquei o fone de ouvido para escutar essa música em meu caminho. A versão escolhida (não sei porque) era em inglês.

Hallelujah hallelujah hallelujah hallelujah hallelujah Hallelujah hallelujah hallelujah hallelujah hallelujah

Demorei tanto pra terminar o mestrado que o início da música tocou o meu ego ferido. A terrível utilização desses termos de forma cômica quando alguém demora para fazer alguma coisa me deixou levemente chateado. Mas a música continuou e me possibilitou retornar ao verdadeiro sentido da música.

For the lord God omnipotent reigneth

Aleluia porque o Deus onipotente reina.

And He shall reign forever and ever

Aleluia porque Ele vai reinar para sempre e sempre.

King of kings and Lord of lords And he shall reign forever and ever

Aleluia porque o Rei dos reis e o Senhor dos senhores vai reinar para sempre.

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Terminei de ouvir essa música profundamente emocionado. Deus reinou ao longo dos últimos sete anos. Deus vai reinar diante de qualquer caminho que eu vou seguir agora. Em meio a universidade, em meio a tantos conhecimentos, tantas pesquisas, tantas discussões, tantos debates, Deus reina. O que é a vida diante de um Deus que reinou ontem, reina hoje e para sempre reinará? O que são sete anos de USP diante de um Deus que reina?

Pulei de um ônibus para outro. Cheguei em casa. Tomei água (tá muito calor, gente). E precisei imediatamente abrir o meu computador para escrever esse relato de devaneios do meu dia. Deus reina.

Amém.

Aleluia de Handel, nostalgia e sete anos de USP

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