O amor entre as gerações

Em memória do vô Gérson

Gui Dutra
Textando
10 min readAug 16, 2019

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Gérson, seu filho Clóvis, seu neto Guilherme e seu bisneto Benjamin (2019)

Desde pequeno eu me sentia distante dos meus avós. Conheço muitas pessoas que têm uma relação íntima e “especial” com seus avós, e eu sempre olhava essas relações com certa “saudade do que a gente não viveu ainda” pensando na minha relação com eles. Nunca tivemos conversas profundas e impactantes, nem o costume de dizer o que sentíamos um ao outro, como um “eu te amo, vô/vó!” ou “saudades de você, neto querido!”.

E isso me fez crescer, desde criança, com essa impressão de que eu não era próximo dos meus avós. Talvez o fato de eu ter crescido numa cidade distante das cidades que eles viviam tenha contribuído para que eu tivesse essa impressão de distância também relacional deles. Mas a verdade é que nós éramos (e somos) próximos sim, eu só não conseguia perceber e aproveitar disso.

Lembro-me claramente da vó Nadir (avó materna) fazendo biscoitos de polvilho salgado e doce sempre que chegávamos a Governador Valadares-MG. Recordo-me das festas, da família toda na roça, e ela sempre preocupada em servir a todos. Tenho a memória de todos nós no hospital, com meu vô Clair entre a vida e a morte, e ela indo, de neto em neto, dar 5 reais para cada um, dizendo que tinha sido o vô que havia mandado (ele estava inconsciente, mas ela fazia questão de mantê-lo vivo em nossas memórias e afetos).

O vô Clair se recuperou e, alguns anos depois, foi a vó Nadir que nos deixou. Foi a primeira grande perda que tive na minha vida (pelo menos a que eu me lembre, eu tinha 10 anos na época), e a memória que nunca me sai da cabeça é da família reunida em seu quarto, minutos após ela falecer, cantando:

“Se paz a mais doce me deres gozar

Se dor a mais forte sofrer

Oh! Seja o que for,

Tu me fazes saber que feliz com Jesus sempre sou!”

Era um de seus hinos favoritos, e ela me deixou este testemunho: seja na paz, seja na dor e sofrimento, a verdadeira felicidade está sempre em Jesus. Lembro-me também que, mesmo com uma grande família, em algum momento durante o velório eu fiquei sozinho e chorava olhando o caixão entrando no carro da funerária, chorava pois estava sentindo falta da minha vó Nadir.

Lembro-me do vô Clair (avô materno) contando suas milhares de histórias de quando trabalhava na roça, das cobras que matou, da saga dos seus negócios, das mudanças de cidades, dos imóveis que comprava e vendia, das reformas que fazia, etc etc etc. Foi o vô com quem mais conversei e ouvi histórias, sempre muito agradáveis e muitas vezes engraçadas. Lembro-me das roças que ele comprava e fazia questão de sempre reunir a família para passarmos um tempo juntos lá. Era onde eu andava a cavalo, corria das galinhas por ter “sequestrado” um de seus pintinhos, chupava manga direto da mangueira e passava horas e horas brincando com os primos.

Também tenho a lembrança de seu apartamento em Guarapari-ES, e de quando boa parte da família começou a passar o Ano Novo lá… Era sempre uma festa! Outra lembrança dessa época é do vô Clair levando os netos no clube Filadélfia para passarem o dia na piscina e jogando bola. Lembro-me de sua festa de 90 anos, todo gatão com um penteado moderno, e ele todo feliz dizendo que não era qualquer um que chegava a essa idade tão bem quanto ele estava chegando (hoje já está com 93 anos!), mas nunca se esquecendo de louvar e agradecer a Deus por essa bênção.

Lembro-me da vó Layde (avó paterna), que sempre nos recebia com a casa cheia de comida e doces quando íamos passar as férias em Três Corações-MG (sim, a cidade do Pelé). Geladinho de leite e de coco no congelador, e doce de leite na geladeira feitos por ela mesma eram sempre infinitos e comíamos o dia inteiro! Pão francês, manteiga, frios e Nescau no café da manhã. E, no almoço, não importa o que mais tivesse servido na mesa, todos os dias ela fazia (e ainda faz!) o melhor macarrão da face da terra, e todos os dias meus irmãos e eu comíamos somente o macarrão. Hoje eu ainda como uma coisa ou outra nos almoços de domingo em sua casa (que agora é em São Paulo), mas eu nunca deixo de pegar pelo menos um pouquinho do, repito, melhor macarrão da face da terra.

Tenho a lembrança de, em Três Corações, dormir sempre tarde e acordar quase só para o almoço, mas, às 5h da manhã, já se podia ouvir a vó Layde acordada, assobiando, preparando o café da manhã. E sempre me marcou também sua fidelidade a Deus, nunca deixando de ir à igreja, sempre envolvida com os trabalhos, fazendo questão de nos levar à igreja quando passávamos as férias lá.

Eu no colo do vô Gérson, e meu irmão Paulo no colo da vó Layde (1989)

Lembro-me do vô Gérson (avô paterno) que sempre nos recebia em Três Corações com uma novidade na casa. Era a rede no quintal; era o novo sistema de aquecimento à lenha do chuveiro (que ele batizou de “Apagão”, pois, se acabasse a energia elétrica, não faltaria banho quente na casa do vô Gérson e da vó Layde); era um cômodo a mais na casa, suspenso com estacionamento dos carros embaixo; sem falar na tartaruga que morava no quintal e no cachorro que pegou da rua, o Dudu… Sempre uma novidade, e sempre nos mostrava super animado! Ele era pedreiro, trabalhou em muitas e muitas obras, então, quando ficou mais velho e não tinha o mesmo vigor para as grandes obras, transferiu essa paixão para a própria casa, e era muito legal acompanhar sua empolgação ao nos contar cada detalhe.

O vô Gérson não media esforços para fazer de nossas férias no interior mineiro um momento divertido e cheio de atividades. Lembro quando ele fez o desenho de um campo de futebol no quintal, com cal e tudo, pra gente passar o dia jogando bola. Ou quando acordamos e ele estava no terreno dos fundos com o machado pegando minhocas para que nós fôssemos pescar mais tarde. Nesse mesmo terreno dos fundos tinha um barranco enorme, e o vô Gérson uma vez pegou algumas caixas de papelão pra que a gente subisse no alto desse barranco e descesse escorregando nelas.

Mas a lembrança mais marcante que tenho dessa época foi de uma cabana que construímos no quintal da casa do vô Gérson. Sim, construímos uma cabana de bambu! Primeiro fizemos a planta da cabana: um quarto, sala, cozinha, uma porta e duas janelas (não tenho certeza se era exatamente dessa forma, mas é assim que me lembro). Depois desenhamos no chão do quintal o tamanho da cabana, e aí entrou o vô Gérson: além de sua liderança como um experiente e excelente mestre de obras nos guiando em cada passo, ele passava o dia inteiro cortando e carregando bambus para que os netos pudessem se divertir e brincar de trabalhar numa construção, assim como ele havia feito a vida inteira. Deu MUITO trabalho, mas como foi satisfatório ver a cabana pronta! Hoje eu penso nisso e consigo entender um pouco o que o meu vô sentia quando terminava uma obra.

E isso me lembra a última conversa que tive com o vô Gérson, há uma semana. Ele estava com uma forte pneumonia, seus pulmões já não funcionavam bem e tinha muita dificuldade para respirar. E estava ali, internado no hospital, bem limitado fisicamente, mas com a cabeça super boa, ficando muito feliz quando viu que eu e minha esposa Daphne estávamos ali para visitá-lo. Foi um dia antes de viajarmos para o casamento de dois grandes amigos em Ribeirão Preto-SP, e contamos pra ele que iríamos viajar. Então ele começou a nos contar que já morou dois anos em Ribeirão, que construiu um hospital lá, que já construiu cinco C&As no interior de São Paulo, que era um trabalho super pesado, etc etc etc.

Foi difícil entender tudo o que ele dizia, pois falava com muita dificuldade por estar com falta de ar e fazendo inalação, mas como foi importante estar ali! Ele perguntou do seu bisneto Benjamin (meu filho), contamos que estava bem, mostramos fotos e vídeos, ele sorriu. Isso me lembrou das vezes que o vô Gérson brincava com o Benjamin, dizendo pra ele crescer logo para eles jogarem bola juntos…

Rafaela (minha cunhada) levando o Benjamin para brincar com o biso, e esse foi o momento em que ele disse para o Ben crescer logo para eles jogarem bola juntos (2019)

Recordo-me de estar no casamento dos meus amigos em Ribeirão, dois dias depois de visitar meu vô, e, na saída dos padrinhos (Daphne e eu éramos padrinhos), receber a notícia de que os médicos disseram que não havia mais jeito, que era uma questão de horas para que meu vô viesse a falecer (ele, forte como era, ainda aguentou mais alguns dias).

Lembro-me de entrar na fila da comida do casamento, onde todos estavam felizes e sorridentes (com razão), mas eu não conseguia segurar as lágrimas ali no meio do salão (ao mesmo tempo também estava feliz por meus amigos, era um misto de sentimentos). Eu era próximo do vô Gérson, e já estava sentindo a sua falta.

Olhando pra trás, revisitando intencionalmente as minhas memórias, hoje consigo entender que eu sempre fui próximo dos meus avós, mas não conseguia perceber isso. Meus avós sempre demonstraram um enorme amor por mim por meio do serviço. Eles, em geral, eram sim mais fechados em demonstrações de afeto e sentimentos, mas nunca deixaram de fazer todo o possível para o bem-estar e felicidade dos seus filhos, netos, bisnetos e agregados. Eu até entendia esses atos de serviço como um ato de amor da parte deles, mas não era o suficiente para que eu os visse e sentisse como próximos a mim.

Essa falta de percepção do amor de meus avós por mim aconteceu por conta de uma coisa: linguagens do amor. Se você não leu o livro “As cinco linguagens do amor”, vale a pena ler. O autor desse livro diz que as pessoas demonstram e recebem amor e afeto de formas diferentes. A minha linguagem de amor sempre foi “Palavras de Afirmação”. Para que eu me sentisse amado, para que eu entendesse que uma pessoa me amava e se importava comigo, eu precisava ouvir. Ouvir que a pessoa me ama, que sente saudades, que viu uma coisa e se lembrou de mim, etc etc etc. E da mesma forma, era assim que eu demonstrava amor pelas pessoas.

Já a linguagem de amor dos meus avós era “Atos de Serviço”. Eles demonstravam seu amor através de atos de serviço, fazendo algo pelas pessoas, cozinhando, recebendo bem em sua casa, levando ao clube para passar o dia, construindo uma cabana de bambu para se divertirem, etc etc etc. Ou seja, eu esperava Palavras de Afirmação, mas recebia Atos de Serviço.

O livro fala que, para evitar essa falta de percepção de amor entre duas pessoas (ele foca no casamento, mas o princípio vale para qualquer relação), ambas as partes devem se esforçar para entender a linguagem de amor um do outro, tanto para perceber um ato de amor e afeto que o outro tenta demonstrar, quanto para que os seus próprios atos de amor e afeto sejam entendíveis ao outro.

Trazendo esse conceito para a minha relação com meus avós, eles deveriam ter percebido que a minha linguagem do amor era “Palavras de Afirmação” e, além dos “Atos de Serviço”, procurar demonstrar amor por mim usando “Palavras de Afirmação”. E eu deveria ter entendido que a linguagem do amor dos meus avós era “Atos de Serviço” e, assim, perceber o amor que eles demonstravam por mim.

Mas eu não os culpo e não culpo a mim mesmo. Como saberíamos disso? Aconteceu o que deveria ter acontecido, e eu entendi isso agora, no tempo devido, escrevendo este texto após o falecimento do meu vô Gérson.

As pessoas crescem, mudam, amadurecem, e suas linguagens do amor também mudam. Hoje eu entendo que um ato de serviço pode valer muito mais que palavras de afirmação, e eu sinto muito não ter entendido isso antes para poder ter aproveitado mais os meus avós.

Infelizmente com a vó Nadir e o vô Gérson não será mais possível, mas fica o desafio de perceber quais são as linguagens do amor da vó Layde e do vô Clair, afinal eles também mudaram, não têm o mesmo vigor e condições de praticar “Atos de Serviço”. Quais seriam as linguagens deles? “Tempo de Qualidade”? “Toque Físico”? “Presentes”? Espero descobrir isso logo, para poder aproveitar o máximo possível.

Mas de uma coisa eu sei e não me esquecerei jamais: meus avós me amam demais e eu os amo muito!

Biso Gérson e seu bisneto Benjamin (2019)

E fica aqui meu agradecimento especial pela vida do vô Gérson, pelos tantos atos de serviço que realizou por seus netos, pelas tantas demonstrações de amor que fez por mim. Lembrar-me delas nesses dias de luto me incentivou a refletir sobre minhas relações com todos os meus avós e, com certeza, trouxe entendimento e cura para a minha vida.

Ao fechar o seu caixão ontem, chorando com o Benjamin em meu colo, eu só consegui dizer pro meu filho:

“Benjamin, o biso Gérson falava pra você crescer logo pra vocês jogarem bola juntos, mas agora vocês vão jogar bola só lá no Céu, tá bom?!”

Saudades, vô Gérson! Até logo! Te amo!

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PS: Compartilhe este texto e, com ele, algumas das belas memórias que você tem com seus avós!

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