Orando os Salmos — o ímpio não é o outro

Marcelo Dutra
Textando
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7 min readJun 26, 2020

Recentemente retomei a leitura de Salmos nos meus momentos devocionais de meditação e oração na Bíblia. Esse retorno ao livro de Salmos é um marco importante para mim. Foi uma decisão parecida com essa há oito anos atrás que revolucionou a minha prática devocional. Foi lendo Salmos que aprendi a importância da Palavra na oração. Foi lendo Salmos que pude aprender a orar. Foi lendo Salmos que pude orar mesmo quando eu não conseguia expressar em palavras a minha oração.

Passar por Salmos me fez perceber o quão profundo a Palavra de Deus vai nos nossos corações e como a oração é esse ambiente em que Deus trata as profundezas da nossa almas, tanto as partes obscuras como as partes mais bonitas.

Porém, esse exercício de ir salmo a salmo (1, 2, 3 até — daqui uns anos — 149, 150) é um desafio. Primeiro, porque requer persistência. Nem sempre é animador iniciar algo que você sabe que irá demorar e não tem previsão de fim. Segundo, porque tem sido difícil discernir quando você deve passar de um salmo para outro. No passado, eu fazia um salmo por dia (menos pros salmos gigantes). Dessa vez, o desafio é ficar no salmo o quanto der (dois, três dias, ou uma semana). O objetivo disso é realmente saborear com mais profundidade os diferentes aspectos do texto, as diferentes agendas levantadas, além do fato de que o eu de hoje pode perceber um ponto do texto, mas o eu de amanhã pode perceber outro. Assim, ficando mais tempo no texto, podemos aproveitá-lo melhor.

Em último lugar, esse exercício é um desafio porque nem sempre o texto que você está lendo tem uma relação direta com algo que você vive ou desperta alguma agenda para reflexão e meditação que te pareça necessária naquele momento de leitura. Então, se na primeira leitura do salmo isso acontece, eu medito daquele jeito mais ou menos, faço uma oração até por outras coisas — e isso acontece com mais frequência do que eu gostaria — com que ânimo eu vou voltar para o mesmo texto no dia seguinte?

Algo assim aconteceu comigo nessas últimas semanas enquanto eu lia o Salmo 10:

“Senhor, por que estás tão longe? Por que te escondes em tempos de angústia?

Em sua arrogância o ímpio persegue o pobre, que é apanhado em suas tramas.

Ele se gaba de sua própria cobiça e, em sua ganância, amaldiçoa e insulta o Senhor.

Em sua presunção o ímpio não o busca; não há lugar para Deus em nenhum dos seus planos.

Os seus caminhos prosperam sempre; tão acima da sua compreensão estão as tuas leis que ele faz pouco caso de todos os seus adversários,

pensando consigo mesmo: “Nada me abalará! Desgraça alguma me atingirá, nem a mim nem aos meus descendentes”.

Sua boca está cheia de maldições, mentiras e ameaças; violência e maldade estão em sua língua.

Fica à espreita perto dos povoados; em emboscadas mata os inocentes, procurando às escondidas as suas vítimas.

Fica à espreita como o leão escondido; fica à espreita para apanhar o necessitado; apanha o necessitado e o arrasta para a sua rede.

Agachado, fica de tocaia; as suas vítimas caem em seu poder.

Pensa consigo mesmo: “Deus se esqueceu; escondeu o rosto e nunca verá isto”.

Levanta-te, Senhor! Ergue a tua mão, ó Deus! Não te esqueças dos necessitados.

Por que o ímpio insulta a Deus, dizendo no seu íntimo: “De nada me pedirás contas! “?

Mas tu enxergas o sofrimento e a dor; observa-os para tomá-los em tuas mãos. A vítima deles entrega-se a ti; tu és o protetor do órfão.

Quebra o braço do ímpio e do perverso, pede contas de sua impiedade até que dela nada mais se ache.

O Senhor é rei para todo o sempre; da sua terra desapareceram os outros povos.

Tu, Senhor, ouves a súplica dos necessitados; tu os reanimas e atendes ao seu clamor.

Defendes o órfão e o oprimido, a fim de que o homem, que é pó, já não cause terror.”

[Salmos 10:1–18]

ímpio — Essa palavra pode parecer estranha para nós hoje. Popularmente está associada com alguém que despreza as coisas religiosas, o sagrado. Apesar de isso ser verdade, quero chamar mais atenção ao “ímpio” que é posto pelo texto bíblico como a antítese do “justo”, conforme podemos ler no Salmo 1.

Eu li esse salmo e consegui perceber os principais temas presentes:

  • Sentimento e percepção da ausência de Deus (v. 1);
  • Descrição de um estilo de vida de alguém que o salmista chama de “ímpio” (v. 2–11);
  • Clamor a Deus (e reafirmação de quem Deus é) diante de uma situação de opressão e injustiça (v. 12–18)

Esse salmo é um prato cheio de oração em tempos de pandemia, em que somos confrontados constantemente com as dores da humanidade, as desigualdades estão cada vez mais evidenciadas, os poderosos fazem o que querem e parece que nada faz sentido debaixo do sol. Foi assim que orei no primeiro dia. No entanto, ao retornar ao mesmo texto em outro dia (não necessariamente foi no dia seguinte), o que mais me chamou atenção foi a descrição que o salmista fez do ímpio. Por que raios ele foi gastar mais da metade do salmo descrevendo essas coisas horríveis que o ímpio faz?

O desafio (e a crise gerada) foi como orar com base nesses versículos sem nutrir em mim um olhar para fora, desenvolvendo um ressentimento cada vez maior por esse tipo de pessoa descrita. Se eu for listar as coisas ruins que a pessoa para quem eu aplico essa parte do texto faz, eu vou terminar essa oração mais a odiando do que a amando. Isso faria mais mal para a minha relação com essa pessoa do que bem. Sem contar o fato que a descrição que o salmista faz do ímpio é tão pesada que a tendência dela seria me fazer pensar mais mal de alguém do que bem, mesmo que na prática essa pessoa não fosse tão má assim.

Bom, não estou querendo deslegitimar a oração que fazemos quando trazemos a Deus as injustiças que sofremos. Esse tipo de oração é necessário. É necessário a gente falar, sabendo que Deus ouve e responde (o salmo deixa isso bem claro). Porém, o desafio para mim nessa segunda leitura do salmo, principalmente diante desse trecho relatando o estilo de vida do ímpio, ao invés de olhar para fora, para o estilo de vida do ímpio na vida do outro, resolvi olhar para dentro, para o estilo de vida do ímpio dentro da minha própria vida. Com isso, fui confrontado com os seguintes trechos:

  • Em sua presunção o ímpio não o busca; não há lugar para Deus em nenhum dos seus planos.” (v. 4) — Não buscar o Senhor revela a presunção do meu coração. Quando eu não busco o Senhor, eu me assemelho a um ímpio. Qual tem sido o lugar do Senhor nos meus planos? Tenho feito planos como um ímpio?
  • Os seus caminhos prosperam sempre; tão acima da sua compreensão estão as tuas leis que ele faz pouco caso de todos os seus adversários, pensando consigo mesmo: “Nada me abalará! Desgraça alguma me atingirá, nem a mim nem aos meus descendentes”.” (v. 5–6) — O ímpio também prospera, então, prosperar em algum caminho que estou trilhando não significa que está tudo bem. Eu não sou alheio às realidades de dor e desgraça que existem nesse mundo, muita coisa ruim pode acontecer comigo.
  • Pensa consigo mesmo: “Deus se esqueceu; escondeu o rosto e nunca verá isto”.” (v. 11) — O ímpio vive inconsequentemente como se Deus não se importasse pela maneira que vivemos. O quanto achamos que Deus não se importa e buscamos viver por nossas próprias razões e segundo os nossos próprios desejos?
  • Sua boca está cheia de maldições, mentiras e ameaças; violência e maldade estão em sua língua.” (v. 7) — A minha língua tem sido instrumento para proferir maldições, mentiras, ameaças, violência e maldade? O quanto estou ferindo as pessoas com as coisas que eu falo?
  • Fica à espreita perto dos povoados; em emboscadas mata os inocentes, procurando às escondidas as suas vítimas. Fica à espreita como o leão escondido; fica à espreita para apanhar o necessitado; apanha o necessitado e o arrasta para a sua rede. Agachado, fica de tocaia; as suas vítimas caem em seu poder.” — Tenho planejado ou desejado o mal contra alguém? Nos meus anseios e ambições, que meios tenho buscado trilhar: integridade ou rebelião/enganação? Como eu lido com as pessoas que se colocam no meu caminho?

A surpresa para mim ao longo dessas leituras é que há muito mais de um estilo de vida ímpio em mim do que eu pensava. Temos sempre a tendência de pensar o melhor dos melhores de nós mesmos e o pior dos piores dos outros (já diria a música, “o inferno são os outros”). A régua que usamos para medir o outro, em geral, é sempre injusta e desigual para o outro.

Ficar um pouco mais de tempo nesse salmo me fez voltar para dentro, lidar com as minhas imperfeições e, o melhor de tudo, me fez colocar tudo isso em oração a Deus. Orar muitas vezes nos faz lidar com a realidade do que há de pior em nós, mas graças a Deus somos também inundados com o seu acolhimento, amor e perdão, que estão sempre disponíveis a nós e confirmados em Cristo.

Antes de olhar para o outro e a vida de ímpio que o outro leva, que possamos nos atentar para a nossa própria vida, os caminhos que temos trilhado, que nos levam a um estilo de vida ímpio e à destruição.

O ímpio não é o outro.

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