A Moda como Componente de Aceitação na Sociedade

Sacrifícios Psíquicos e Físicos propostospor esta Relação

Moa Marangoni
Têxtil e Moda

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— Corte seu pé. Quando se tornar rainha não precisará ficar de pé.! A garota cortou seu calcanhar, forçou seu pé para calçar o sapato, engoliu o choro e foi pra fora encontrar o príncipe. Ele colocou-a em cima de seu cavalo como sua noiva e cavalgou ao longo com ela. No entanto, eles deveriam passar a sepultura, e ali, na árvore de avelã, haviam dois pombos gritando:!

— Pru, pru, pruão!! Há sangue no sapato.! O sapato não serve,! A noiva também não!

Irmãos Grimm, Cinderela. (GRIMM e GRIMM, 2011)

Durante a vida de um indivíduo inserido em um espaço coletivo, ele é colocado à prova de muitos. Dos primeiros registros da raça humana até hoje tentamos provar nossa personalidade através do consumo, com a melhor caça, com a maior casa, com o carro mais caro, com o vestido mais falado, o último se destaca em número e grau. Os invólucros para o corpo dizem mais sobre o indivíduo do que qualquer outra mídia, é mais exposto, circulável.

Ao vestir, de modo consciente ou inconsciente, nossas características de modo geral ou parcial são impostas de modo estético, criamos portanto uma personalidade para cada elemento do vestuário.

Na literatura, peças de roupa são descritas em seu percurso. No livro Brim Azul (GANYMEDES, 2004) a história de uma calça de brim é revelada desde sua confecção, passando por seus diversos consumidores. No conto Antes do Baile Verde (TELLES, 2009) é contada a história de como uma garota prepara às pressas sua fantasia para uma noite de carnaval. Também há um pequeno conto de Clarice Lispector sobre um suéter que ganhara de uma pessoa, até então, desconhecida:

“Aconteceu-me ganhar um suéter. Até aí tudo parece simples. Mas não é.

Quem mandou o suéter foi uma moça que não conheço. Sei, por intermédio de um amigo comum, que a moça desenha extraordinariamente bem. Mora em São Paulo. Quando esteve no Rio almoçou com nosso amigo. Estava com um suéter tão bonito que meu amigo achou que ficaria bem em mim e encomendou um exatamente igual o dela. Aconteceu, porém, que a moça é minha leitora — ou estou enganada? — e quando soube para quem era o presente fez questão de ser ela própria a dá-lo a mim. O amigo aceitou.

E eis-me dona de repente do suéter mais bonito que os homens da terra já criaram. É de um vermelho-luz e parece captar tudo o que é bom para ele e para mim. Esta é sua alma: a cor. Estou escrevendo antes de sair de casa, e com o suéter. Aliada à sua cor de flama e chama, ele me foi dado com tanto carinho que me envolve toda e tira qualquer frio de quem se sinta solitária. É uma carícia de grande amizade. Hoje vou sair com ele pela primeira vez. Está ligeiramente justo demais, porém é possível que assim deva ser: admitindo como gloriosa a condição feminina, Terminada esta nota vou me perfumar com um perfume que é meu segredo: gosto das coisas secretas. E estarei pronta para enfrentar o frio não só o real como os outros.

Sou uma mulher a mais.”

Clarice Lispector, O Suéter. (LISPECTOR, 2010)

Clarice Lispector descreve em poucas palavras a experiência com a nova veste adquirida, não dispensando elogios, fazendo a personalidade do suéter transpassar a de qualquer outro elemento do texto. Os detalhes da veste demonstram certa personalidade, o centro do conto não é Clarice, nem ao menos quem a presenteia.

Quando ela escreve que ganhar um suéter não é algo tão simples, já nos dá uma prévia de que há traços singulares no evento. No segundo parágrafo ela rebaixa sua personalidade e de quem a presenteou citando o suéter como o “mais bonito que os homens já criaram”. Apesar de ser sua opinião, Clarice cria uma certa paixão pela peça, algo incomum por um simples suéter, vermelho, ou melhor, vermelho-luz, diferente de vermelho-sangue, vermelho-fogo, vermelho-cereja, usar luz para descrever uma cor (embora as cores não passem de reflexo e absorção de luz) remete a algo que ilumina, que se destaca, que dá vida ou até mesmo algo que possui vida própria. Ainda diz mais sobre a cor, que envolve, que acaba com o frio da solidão, a cor do suéter ultrapassa as características físicas, cria um elo de amizade com o suéter.

Ao relatar que o suéter está “ligeiramente justo demais” ela revela um possível defeito (o primeiro) no suéter, no entanto já ignora sua própria opinião em prol do suéter, dizendo que talvez seja esta a modelagem ideal da peça, “admitindo como gloriosa a condição feminina”. Clarice ainda agrega outro item em sua formulação para o dia que escreveu o texto, diz que vai passar um perfume que é seu segredo, algo para uma ocasião especial, o suéter merece por si complementos especiais, a primeira vez a ser usado se torna um evento singular, com destaque na vida da escritora.

Clarice termina o texto dizendo que ali se construiu mais uma mulher, que ela se tornou mais uma mulher. Além de mostrar a identidade de um suéter no texto, em um simples parágrafo ela consegue demonstrar o impacto dessa identidade em sua personalidade. A roupa na literatura, seguindo este tipo de percepção é totalmente aberta à criação de uma personalidade, ou ao menos uma extensão à personalidade dos personagens.

Os destaques de algo inanimado ultrapassa por vezes os destaques sobre personagens vivos, ou simplismente superiores. Na série de livros fantásticos Harry Potter, da escritora britânica J.K. Rowling (ROWLING, 1998), sobre bruxos e outros seres fantásticos em um mundo paralelo, os elfos domésticos são seres escravizados, o único modo de um dono libertá-lo é presenteando o elfo com uma peça de roupa.

Os principais personagens de Walt Disney também partem da suposição que um personagem sem roupas não possui voz, ou está submisso à outros. Por mais que Mickey Mouse, um rato retratado com inteligência e falas humanas, não usar um vestuário completo, ele possui algumas peças de roupas, diferente do cachorro de estimação Pluto (Imagem 01), que não possui nem roupas nem falas.

Imagem 01 — Mickey Mouse e Pluto, personagens de Walt Disney. Fonte: igetmailthereforeiam.blogspot.com

Ainda utilizando a obra dos estúdios Disney, em Fantasia (Imagem 02) (DISNEY, 1940), no capítulo Aprendiz de Feiticeiro, Mickey Mouse é retratado de forma diferente, um empregado de um poderoso feiticeiro que é obrigado a praticar serviços braçais, pensa que poderia usar magia, no entanto a magia só é possível de ser usada com o chapéu do poderoso feiticeiro, acontece que o poder da peça é tão grande que torna-se incontrolável para Mickey.

Imagem 02 — Cena de Aprendiz de Feiticeiro, capítulo do filme Fantasia, de 1940, dos estúdios de Walt Disney. Fonte: wallsave.com.

Na literatura e demais mídias, o figurino exerce portanto uma personalidade própria, ou serve de extensão às singulares ou plurais personalidades dos personagens. Intrigante a percepção de um objeto inanimado por vezes superar elementos animados, seres vivos em diversas mídias, o conceito de personagem, personalidade provoca sendo transgresso nas tramas que retratam tal situação.

O narcisismo presente em situações envolvendo elementos vestíveis é constante, paradoxalmente ele alimenta o ego e, ao mesmo tempo, toma parcialmente o ego do indivíduo. Por vezes a roupa, ou o universo da moda por um todo, extrapola a linha do saudável em seus consumidores, desde a mãe que se sente na obrigação de ser tão jovem quanto a filha, que se priva de uma alimentação regular por dias para caber em um vestido de festa sem revelar saliências, até modelos que desenvolvem transtornos alimentares (como bulimia ou anorexia) são perceptíveis em nossa sociedade. Embora a relação do gênero masculino com a moda ande se estendendo, as mulheres ainda apresentam uma relação mais íntima (às vezes beirando o amor ou o ódio) com a moda, adquirindo em escala muito maior a privação de determinados comportamentos para se compor no universo da moda (NAVARRI, 2010).

Situações transgressoras no mercado publicitário de moda tornam-se populares em diversas proporções, revelando que nossa personalidade é, por vezes, submissa às identidades das roupas ou das marcas. Nas pinturas renascentistas a beleza feminina era retratada com curvas, em uma proporção que hoje seria de alguém acima do peso.

A criação de um padrão de beleza é discutível, perfis de consumidores se formam de forma emergente, sem uma maneira organizada, para se enquadrar em grupos geracionais de consumo (MORACE, 2009) ou grupos de estilo (PHOLEMUS, 2010), as identidades de marca e roupas (assim como os traços de identidade dos próprios grupos) são impostas aos indivíduos de forma camuflada ou explícita. privando estes de assumir uma identidade singular.

As personalidades que nos são impostas, pelos grupos ou por nós mesmos, interferem por vezes de modo agressivo em elementos que estão dentro do que se refere à nossa saúde. Os transtornos alimentares, por exemplo, se originam, na sua maioria das vezes, em situações de rejeição ou desejo de interagir com determinado grupo.

A aceitação pelos grupos de estilo de alguém de fora, quando ocorrida, é feita em etapas, por vezes criadas inconscientemente por quem almeja entrar no grupo. Após a aceitação ficar explícita pelo grupo, o novo integrante goza e se vê imediatamente em um vazio (MAIA, 2012), criando espaço para novos objetivos, como exibir o grupo, ser inovador no grupo, elogiado ou até mesmo tornar-se líder. Ao tornar-se líder o integrante passa a impor novas condutas de comportamento e estilo, ou intensifica as antigas, articulando assim um fluxo constante de objetivos alcançados, podendo almejar algum dia a influência em outros grupos ou uma nova aceitação.

O ciclo de grupos na vida de um indivíduo requer mais do que características de comportamento, há também um rigoroso padrão estético. Quando a exigência do grupo é não ter exigências, a tendência é formar-se um novo padrão (NAVARRI, 2010), o alternativo torna-se popular. Por exemplo, se em determinado grupo a imposição é não haver moda, as misturas extremamente ecléticas ou o visual limpo serão soluções de cada integrante, formando um padrão, a moda se torna uma característica emergente.

No conto Cinderela, também conhecido como A Gata Borralheira, uma jovem orfã sofre com os afazeres imposto por sua madrastra e suas meias-irmãs, as únicas figuras femininas para Cinderela até então. Pela beleza da Gata Borralheira, sentem inveja, recalque, e passam a privá-la de um convívio externo à casa, em algumas versões, Cinderela possui amizade com animais da floresta, pássaros e ratos principalmente, demonstrando a falta de contato com outros humanos.

Mesmo sendo bonita, Cinderela não tinha quem lhe dissesse isso, suas meias- irmãs e sua madrastra diziam o contrário, sem ter outra referência, podemos dizer que acreditava ser feia. Todas as damas do reino são chamadas para um baile, Cinderela é impedida pelo resto da família obviamente, quando surge uma fada e, com magia, cria carruagem, cocheiro, cavalos e, principalmente um vestido e sapatos de cristal.

Os vestuários relatados nas versões do conto são de forte simbologia, podem ser interpretados de diferentes maneiras, destacando a mudança da personagem, e a suposição de que seja não mais que uma simbologia de que Cinderela passa a acreditar que possui beleza ao conhecer e ouvir uma nova personagem feminina. A auto-confiança e o narcisismo surgem na protagonista provavelmente pela primeira vez por intermédio da fada, talvez sustentando a confiança adquirida no sucesso que Cinderela obteve no baile (talvez um devaneio provocado pelo narcisismo) e a conquista com o príncipe.

A protagonista deveria correr a meia-noite para casa, pois a magia se extinguia neste horário, ao fugir para casa, com medo de sua identidade borralheira ser revelada, perde um dos sapatos de cristal. A frustração do príncipe em perceber que a moça sumiu provoca uma busca incansável pelos pequenos pés donos do sapato, alegando que a mulher do reino que conseguir calçar os sapatos se casaria com ele. As medidas tomadas pela madrastra e as meias-irmãs de Cinderela são drásticas na versão dos Irmãos Grimm para o conto, chegam a cortar os calcanhares para calçar o sapato de cristal perfeitamente, valendo muito para ser rainha.

A relação do conto com nosso cotidiano, apesar de não ser algo tão explícito e drástico, é semelhante, no sentido de cada um manter determinados sacrifícios (por vezes de maneira inconsciente) para elaborar uma personalidade diferente. A moda faz parte dessas privações, os desejos que a moda provoca são, na maioria das vezes, provenientes de uma situação quem que devemos agradar um grupo ou alguém. Conduta e destaque são, portanto, elementos fundamentais para o acolhimento em diversas parcelas da sociedade, dependendo da proporção de transgressão, o julgamento pode vir a ser feito pela sociedade por completo.

Imagens

Cover — Sapatos Christian Louboutin inspirados nos sapatos de cristal descritos no conto Cinderela. Disponível em: <http://omelete.uol.com.br/cinema/cinderela-sapatinho-de-cristal-e-recriado-por-christian-louboutin/#.U2sftq1dX-k>. Acesso em: 04 de maio de 2014.

Imagem 01 — Mickey Mouse e Pluto, personagens de Walt Disney. Disponível em: <http://igetmailthereforeiam.blogspot.com.br/2011/08/netherlands-mickey-and-pluto_1.html>. Acesso em: 30 de janeiro de 2014.

Imagem 02 — Cena de Aprendiz de Feiticeiro, capítulo do filme Fantasia, de 1940, dos estúdios de Walt Disney. Disponível em: <http://www.wallsave.com/wallpaper/1024x768/ mickey-mouse-happy-birthday-image-credit-disney-keywords-fantasia-128320.html>. Acesso em: 30 de janeiro de 2014.

Bibliografia

DISNEY, Walt (produtor). Fantasia. Estados Unidos da América: Walt Disney Pictures, 1940.

GANYMEDES, José. Brim Azul: A História de uma Calça. Coleção Entre Linhas. São Paulo: Editora Atual, 2004.

GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Cinderela. Disponível em: < http://www.pitt.edu/~dash/ grimm021.html>. Acesso em: 15 de janeiro de 2014.

LISPECTOR, Clarice. O Suéter. Disponível em: <http://escrevereprolongar otempo.blogspot.com.br/2010/06/o-sueter-clarice-lispector.html>. Acesso em: 15 de janeiro de 2014.

MAIA, Midierson. Publicidade, desejo e gozo: uma leitura psicanalítica da Enunciação Publicitária no consumo de moda. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes — Universidade de São Paulo, 2012.

MORACE, Francesco. Consumo Autoral: as gerações como empresas criativas. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009.

NAVARRI, Pascale. Moda & Incosciente: Olhar de uma Psicanalista. São Paulo: Senac, 2010.

POLHEMUS, Ted. Street Style. Londres: PYMCA, 2010

ROWLING, J. K. Harry Potter e a Câmara Secreta. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.

TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2009.

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