Moda e Transgressão

Como Vivienne Westwood tornou-se referência em ultrapassar limites ao longo de sua carreira: do punk ao luxo.

Moa Marangoni
Têxtil e Moda

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“O palácio do Imperador era considerado a coisa mais bela do mundo inteiro; era todo feito com a porcelana mais fina, mais cara, mas ao mesmo tempo tão frágil, que só se poderia tocá-la com o maior cuidado.

No jardim existiam as flores mais extraordinárias; as mais bonitas tinham campainhas de prata presas nelas, as quais repicavam continuamente, de maneira que era impossível passar por perto das flores sem fitá-las.”

Hans Christian Andersen em O Rouxinol e o Imperador. (ANDERSEN, 2012)

A definição de luxo pelos dicionários apontam para um estilo de vida caracterizado pelo supérfluo, pelo fausto, pela ostentação. No conto O Rouxinol e o Imperador do escritor Hans Christian Andersen, publicado por volta de 1843, fica evidente o excedente ao necessário nas descrições do palácio, vestes e refeições que nunca poderiam se repetir na vida. As descrições do imperador não se desenquadram do que se poderia imaginar do estilo de vida: pálido, muito magro e de unhas muito longas.

Não muito diferente do conto fantástico de Andersen, as preciosidades consumidas pelos chefes de estado e suas respectivas cortes eram entregues, e muitas vezes produzidas, por seus súditos, como um ato de devoção ao que seria, no conceito da nação, o representante de determinado deus na terra. Segundo Suzana Avelar, pesquisadora brasileira e professora da Universidade de São Paulo:

“O cacique e o rei — como os faraós, por exemplo- eram os representantes dos deuses na Terra, os seus comunicadores. Acreditava-se, portanto, que deveriam estar sempre rodeados daquilo que existia de melhor na Terra, daquilo que garantisse sua plena sobrevivência, sua prosperidade. O excesso e o luxo estavam presentes nos objetos e nos rituais oferecidos aos deuses como prece por longevidade” (AVELAR, 2011)

Em meados do século XVIII, com o Renascimento, o luxo como estilo de vida passa a abranger um público além da nobreza e pela primeira vez se desvincula de algo sagrado, se relacionando cada vez mais com o universo feminino (LIPOVETSKY e ROUX, 2005).

O mercado do luxo se desenvolveu e se definiu em diversas áreas de consumo, dentre elas as roupas e acessórios. Hoje grandes grupos são responsáveis pelas marcas de luxo, reunindo diversas grifes de moda, desejadas pelo público, são, para o bem ou para o mal, copiadas, além de as próprias grifes lançarem diversas linhas, não se resumindo à alta-costura ou ao prêt-à-porter de luxo, onde o consumidor tem diversos meios e definições de acessibilidade ao consumo dessas marcas (AVELLAR, 2011).

A alta-costura, mesmo tendo uma parcela muito pequena de consumo no mundo, divide os consumidores. Alguns consumidores adquirem um vestido em cada coleção de determinada grife, outros compram em algum evento especial de suas vidas. Devido ao alto custo dos materiais, a mão de obra extremamente restrita, o valor da marca, a exclusividade e os rigorosos critérios para uma grife ingressar no Chambre Syndicale de la Couture Parisienne tornam os preços muito elevados, uma alternativa mais acessível é o prêt-à-poter de luxo, que movimenta as semanas de moda pelo mundo nas principais capitais.

As reformulações da moda no prêt-à-porter gera a cada semana de moda expectativas e surpresas em relação às criações dos estilistas, tanto as roupas e acessórios, quanto a produção de todo o evento procura cada vez mais chamar a atenção do consumidor e intensificar as marcas.

O consumidor é atualmente mais exigente e procura em possíveis itens de compra algo que expresse o que ele é ou o que ele pretende ser. Os consumidores não são mais facilmente divididos em grupos de consumo pensados de forma mercadológica, o consumo se torna autoral, é o que sugere o sociólogo italiano Francesco Morace, presidente do Future Concept Lab, onde se estuda minuciosamente os consumidores e seus respectivos comportamentos (MORACE, 2009).

A procura por inspiração nas coleções de prêt-à-porter passaram por diversas mudanças em caminhos sinuosos e arriscados. Os olhares voltaram-se para as ruas e para a cultura popular de forma muito repentina, Yves Saint Laurent procurou representar os grupos de estilo por diversas vezes em suas coleções, um dos pioneiros em popularizar o prêt-à-porter, tanto em vendas quanto em conteúdo popular para semântica de suas coleções (BAUDOT, 2002).

Com a febre do Rock n’ Roll nos anos 1960 os olhares migraram de Paris para Londres, destaque para as cenas na Carnaby Street, no bairro Soho, onde jovens gastavam suas mesadas em roupas todos os fins de semana e ouviam The Beatles e Rolling Stones. Londres se torna a capital da cultura pop, da geometria nas roupas (bem explorada na época por Pierre Cardin) e das mini-saias criadas pela estilista inglesa Mary Quant:

“[…] Ela colocou as cinturas para baixo, usou faixas horizontais e inserções triangulares de pregas na linha da bainha para permitir o movimento; manteve os acessórios no nível mínimo e, mais significativamente, diminuiu as saias.” (HAYE e MENDES, 2003)

Londres fica então mais conhecida ainda a partir da década de 1960 pela moda casual e transgressora, estilistas procuram suas inspirações na capital inglesa desde então, transformar a cultura pop em moda se torna um hábito cada vez mais frequente, incluindo paradoxalmente as anti-modas geradas pelos grupos de estilo (POLHEMUS, 2010).

O reduto jovem mundial migra de Londres para São Francisco (EUA) no final dos anos 1960 pelo auge do movimento hippie, pregando paz e amor. Em contrapartida, Vivienne Westwood abre, na Londres de 1971, a boutique Let It Rock, na King’s Road número 430, iniciando-se com as roupas de Teddy Boy que Vivienne costurava para Malcom McLaren, na época seu marido e empresário da principal banda de punk rock, os Sex Pistols (MARANGONI NETO, 2011).

Vivienne Westwood se destaca no universo da moda já com uma carga de subversividade. Nascida logo após a Segunda Guerra Mundial, mudou-se para Londres com apenas 17 anos para dar aulas de inglês. Casou-se muito cedo com Sam Westwood, estudou moda na Faculdade de Arte de Harrow, divorciou-se e começou um relacionamento com seu sócio, o famoso Malcom McLaren (WATSON, 2013).

Para Westwood e McLaren não havia muita importância em relação às grandes tendências, logicamente que existia um público para a boutique Let It Rock, no entanto, eles praticamente ignoraram o movimento hippie, eles não queriam paz e amor, eles queriam promover a próxima geração, elaborar protestos, definitivamente protestos não passivos (MARANGONI NETO, 2011).

Em 1976 a boutique já havia passado por diversos nomes: Let It Rock, Too Young to Live, To Fast to Die, Seditionaries e Sex (Imagem 1), além de estar no auge assim como os Sex Pistols e o movimento punk. O contato com os punks era proporcional ao contato com o luxo, o número 430 na King’s Road é até hoje um endereço privilegiado, um dos maiores centros de compras em Londres (MARANGONI NETO, 2011).

Imagem 1 — Boutique Sex, na King’s Road, por volta de 1975. Fonte: punkflyer.com.

No início da década de 1980 Vivienne Westwood lançou sua primeira coleção própria, intitulada Le Pirate, com peças assimétricas, culotes, botas de canos largos e saltos altos, um grande repertório para cantores como David Bowie e Boy George, nos auges de suas respectivas carreiras na época (HAYE e MENDES, 2003).

Nos primeiros anos da marca, as inspirações foram diversas, mas nunca perderam o cunho de protesto, como a coleção Punkature (Primavera — Verão de 1983), inspirada no filme Blade Runner (1982), ou a coleção Witches (Outono — Inverno de 1983 — 1984) com estampas claramente inspiradas pelo artista plástico Keith Haring (Imagem 2). Na coleção Primavera — Verão de 1984, lança a coleção Hypnos, inspirada no homônimo deus grego do sono, gerando um resultado oposto à imagem de inspiração, uma coleção elétrica, com muita vitalidade (VIVIENNE WESTWOOD, 2014).

Imagem 2 — Convite para o desfile da coleção Outono — Inverno de 1983 — 1984, intitulada Witches, com ilustrações do artista plástico Keith Haring. Fonte: viviennewestwood.co.uk.

Ainda nos primeiros anos da marca, Westwood tenta acabar com a silhueta masculinizada das coleções femininas dos anos 1980, os ombros altos eram ausentes e as saias curtas e cheias são frequentes (VIVIENNE WESTWOOD, 2014), inspirações talvez ligadas à separação de Malcom McLaren (WATSON, 2013).

Nota-se que mesmo abrangendo um público mais aberto do que somente os punks, Westwood continua com inspirações que retratam os paradoxos e marginalizações da sociedade na época, a mulher feminina, que não queria lutar por poder estava retratada, assim como o ativismo homossexual, ou a discussão filosófica do filme Blade Runner.

Após os primeiros anos, inicia-se o que a própria marca denomina como The Pagan Years (1988 — 1992) (VIVIENNE WESTWOOD, 2014), onde a feminilidade é retomada de forma explicita, com inspirações profundas. A poética era mais detalhista e profunda, sobre a coleção de Outono — Inverno de 1987 — 1988, Vivienne diz:

“Toda ideia para essa coleção foi adquirida através de uma garotinha que vi no metrô um dia. Ela não deveria ter mais do que 14 anos. Ela tinha um pequeno coque trançado, uma jaqueta Harris Tweed e uma bolsa com um par de sapatilhas de balé dentro. Ela parecia tão cool, composta alí de pé.” (VIVIENNE WESTWOOD, 2014)

Tanto nos anos Pagãos quanto na época seguinte, Anglomania (1993 — 1999), onde ela utilizou a História das vestes das realezas francesa e britânica a partir do século XVIII (VIVIENNE WESTWOOD, 2014), Vivienne propõe releituras de modas bem desconstruídas do que seriam as que lhe inspiraram, o luxo se torna mais evidente em suas coleções, mesmo assim, mesmo com metaliguagem, a transgressão é presente.

As décadas de 2000 e 2010 se trata de uma época de popularização da marca (assim como ocorreu com grande parte do mercado de luxo) e do próprio rosto da estilista, que posa para as campanhas fotográficas de suas coleções (Imagem 3).

Imagem 3 — Vivienne Westwood (de bege) posando para campanha de sua própria marca. Fonte: viviennewestwood.co.uk.

A poética que permeia a proposta de discussão, com questionamentos interessantes, sobre assuntos que partem de cunho antropológico para o político, ainda permanece nas criações de Vivienne Westwood. Recentemente o incansável apelo sobre questões ambientais estão nas entrelinhas de suas coleções.

Podemos dizer que o produto de luxo volta a ser consumido sob a tendência que tinha antes do século XVIII, ou até mesmo no tempo fantástico do conto O Rouxinol e o Imperador de Hans Christian Andersen, abordado no início do texto, onde o luxo não é apenas frívolo, há um propósito para este estilo de vida. Vivienne Westwood e sua marca deixa clara esta posição desde o início, abordando a reinvenção, retratando uma causa, ou no mínimo uma discussão.

A ostentação, lifestyle mais contemporâneo impossível, apesar de muito antigo, é praticamente nula quando há um conteúdo plausível pelo público nos bastidores. Talvez seja o início de uma tendência de consumo no mercado de luxo: inserir um conteúdo intelectual em seus elementos, propor discussões, apoiar causas, transgredir e questionar a moda de maneira constante.

ANDERSEN, Hans Christian. Best Fairy Tales. Londres: CRW Publishing, 2011.

AVELAR, Suzana. Moda, Globalização e Novas Tecnologias. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011.

BAUDOT, François. Moda do Século. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

HAYE, Amy de La; MENDES, Valerie. A Moda do Século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LIPOVETSKY, Gilles; ROUX, Elyette. O Luxo Eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

MARANGONI NETO, Moacyr. Análise de Figurinos de Videoclipes de Música Pop: Geração de Propostas para Vestuários em um Clipe Musical. Limeira — SP: Faculdade de Administração e Artes de Limeira, 2011.

MORACE, Francesco. Consumo Autoral: as gerações como empresas criativas. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009.

POLHEMUS, Ted. Street Style. Londres: PYMCA, 2010.

VIVIENNE WESTWOOD. Vivienne Westwood Web Site. Disponível em: <http://www.viviennewestwood.co.uk/>. Acesso em: Janeiro de 2014.

WATSON, Linda. Vogue On: Vivienne Westwood. Londres: Quadrille Publishing Ltd., 2013.

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