Ainda dá tempo de se reinventar em 2020?

Gabriel Martins
Textos de gaveta
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3 min readFeb 26, 2020

Mal havia chegado dezembro e minhas sugestões do YouTube já tinham sido invadidas por uma avalanche de vídeos sobre como se reinventar em 2020. Depois vieram os stories no Instagram, os artigos no LinkedIn e até mesmo alguns podcasts e tweets.

Bastou entrar em janeiro e pouco a pouco foi tudo voltando ao normal. Em meio aos intermináveis dias chuvosos, parece que as perspectivas de uma nova pele foram levadas pelas águas. Talvez até um pouco precocemente, afinal, no calendário do brasileiro, o ano novo não começa até uma quinta-feira em meados de fevereiro ou no início de março.

Depois de alguns dias de festa e um de ressaca, aí sim é que devemos renascer. O marasmo veranil das avenidas vazias, sem os pais que vão buscar os seus filhos nos colégios depois do serviço ou os universitários atrasados no horário de pico, não é propício para nenhum tipo de delírio de autoajuda.

No ano passado, tentei levar mais ou menos a sério esse devaneio. Como havia acabado de me formar, a possibilidade de uma reinvenção parecia, no mínimo, necessária. Não era mais estudante pela primeira vez em uma vida inteira e os caminhos do futuro pareciam turvos.

Coloquei as metas no papel, criei um bullet journal, tirei a poeira da estante, vendi livros em sebos, tatuei o meu braço, aprendi a fazer novas receitas, tentei me exercitar, frequentei exposições… Porém, muitas dessas coisas não passaram dos primeiros meses.

A maioria das coisas que de fato ficaram eram atividades eu tinha começado e abandonado em algum outro momento da vida. E não eram imagens projetadas de um eu ideal, que em alguns momentos parece quase antagônico a tudo o que eu construí até agora.

Capa do livro “The new me”. Fonte: Amazon.

Uma das coisas que me fez dar esse clique foi a leitura de “The New Me” de Halle Butler. Como esse tema de reinvenção já estava em mente, o título por si só já chamou minha atenção. A capa, em que uma mosca repousa sobre uma ilustração de uma jovem, atiçou minha curiosidade. Depois de ler meia dúzia de entrevistas e análises que ressaltavam o humor pungente do romance, eu estava entregue.

A protagonista do livro, Millie, é uma millennial que, após ter feito uma faculdade de ciências humanas, se encontra sempre pulando de trabalho em trabalho sem nunca conseguir uma vaga de emprego fixo. O romance se aprofunda em uma dessas experiências na qual, ao ver a mínima possibilidade de algo mais estável, a personagem começa a se projetar um novo eu ideal para si.

Porém tudo aquilo é vazio de sentido: o trabalho dela é tedioso, as relações com os colegas são insignificantes, tampouco Millie consegue se ancorar em relações amorosas, amizades ou familiares. Quando ela é demitida do seu emprego, que era a única coisa em que essa projeção ideal se apoiava, o castelo de cartas se desmorona e ela precisa recomeçar novamente.

Se há algo para tirar disso tudo, é que talvez não haja espaço para reinvenções mirabolantes. Se elas são possíveis, provavelmente só podem ser alcançadas com um esforço hercúleo de ressignificação de toda uma trajetória. A fantasia de chegar a um lugar novo e ser um novo eu imaginário é algo que mal funciona na ficção, quanto mais na vida real.

Talvez a palavra seja mais retomar do que reinventar. Examinar pedaços esquecidos do mosaico identitário. Procurar as lições que não foram aprendidas e olhar com mais carinho para si mesmo.

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Gabriel Martins
Textos de gaveta

jornalista. ocasionalmente, escrevo crônicas e textos sobre cultura pop.